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“O senhor escreveu que as pessoas com NF1 toleram menos o calor e depois falou sobre convulsões e febre. Como saber se uma criança com NF1 está com calor ou febre? ” TR, do Rio de Janeiro.

Cara T, obrigado pela sua excelente pergunta, pois ela me permite explicar melhor as diferenças entre os sinais físicos de uma pessoa com calor ou com febre.

Calor

Começo pela pessoa que ficou exposta a um ambiente quente durante certo tempo realizando uma atividade física qualquer, ou um esporte ou um trabalho braçal. À medida que absorvemos o calor do ambiente (por exemplo, dos raios solares), nosso corpo vai aquecendo e sua temperatura aumenta. Quando fazemos atividades físicas, os músculos produzem calor e também aquecem o nosso corpo. Se somarmos as duas fontes de calor, ambiente quente e exercício físico, nosso corpo aumentará ainda mais rapidamente a sua temperatura.

Sabemos que nosso cérebro só funciona bem dentro de uma faixa normal de temperatura. Quem desejar saber mais sobre este assunto pode ver meu livro para crianças chamado “Cabeça fria é que faz gol” (AQUI).

Para manter a temperatura do cérebro dentro da faixa saudável, o corpo distribui uma parte do sangue sob a pele e começa a suar. Por isso a nossa pele fica avermelhada pelo sangue (chamada de rubor) e umedecida pelo suor. Se você colocar um termômetro na axila desta pessoa suando e com a pele quente, especialmente nas extremidades (mãos e pés, que continuam secos), poderá encontrar a temperatura um pouco aumentada, como se fosse febre, mas não é. É aumento da temperatura do corpo por causa do ambiente e/ou do exercício.

Se o suor evaporar, a evaporação retira calor da pele, que resfria o sangue, que então resfria o cérebro. Se o suor não puder evaporar, como nos ambientes úmidos (da floresta amazônica, por exemplo), o calor vai acumulando e aquecendo o cérebro e prejudicando as suas funções a partir de uma certa temperatura, geralmente acima de 40 graus centígrados.

O nível de tolerância de uma pessoa ao aumento da sua temperatura cerebral depende de quanto está acostumada com o ambiente quente e com o exercício (condicionamento) e de seu estado de saúde. Diversas doenças, incluindo a NF1, reduzem a tolerância das pessoas ao aumento do calor corporal.

Febre

No aumento do calor corporal por causa do ambiente e do exercício nosso corpo QUER jogar calor para fora e baixar a temperatura, mas NÃO CONSEGUE. Ao contrário, na febre, o corpo QUER conservar calor para aumentar a temperatura e assim combater a infecção que o está atingindo, possivelmente atrapalhando o crescimento de algumas bactérias.

Então, na febre, o organismo vai fazer ao contrário do que no ambiente quente: vai retirar o sangue da pele, para evitar a perda de calor para o ambiente, e por isso ficamos pálidos. Além disso, enquanto a febre estiver subindo, o corpo não vai suar. Se estas duas tentativas não forem suficientes para aumentar a temperatura em 1 ou 2 graus, o indivíduo começa a tremer para produzir calor por meio de contrações musculares involuntárias.

Esta é a primeira fase, na qual a febre está subindo (ver figura acima). Nesta fase as pessoas sentem frio, calafrios e outras manifestações de desconforto, fadiga e desânimo. Esta fase pode durar alguns minutos ou mesmo horas, dependendo da doença que está causando a febre.

Assim que o acúmulo de calor atinge a temperatura corporal que a evolução selecionou como sendo a mais adequada para aquela infecção, a palidez melhora, o tremor desaparece e a pessoa se sente mais confortável, apesar de estar com a temperatura interna acima de 38 graus centígrados. Esta é a fase estável de febre (ver figura acima), e pode durar várias horas.

No momento em que o organismo entende que a causa da febre diminuiu (a produção de certas proteínas pelas bactérias ou pelas células que combatem a infecção), começa então a última fase da febre, na qual o corpo tenta eliminar o excesso de calor que acumulou nas fases anteriores. Neste momento começa a vermelhidão da pele, a produção de suor e a sensação de calor que faz com que as pessoas retirem as cobertas e as roupas quentes (ver figura acima).

Tratamentos?

Dependendo do aumento da temperatura corporal causado por ambiente quente e exercício, ele precisa ser combatido com medidas urgentes como interromper a atividade física e retirar a pessoa do calor, dar banhos de água fria e acomodá-la em ambiente com ar condicionado. Algumas vezes estas medidas podem ser de emergência, pois a insolação (ou hipertermia) pode ser fatal ou deixar graves sequelas.

Outras formas raras de aumento da temperatura corporal, chamadas hipertermias malignas, que ocorrem por sensibilidade a determinados medicamentos, especialmente anestésicos, devem ser tratadas intensivamente pois podem ser fatais.

Por outro lado, estou convencido cientificamente de que não há necessidade de tratarmos a febre comum, causada por infecções bacterianas e virais, porque ela segue seu curso natural das três fases descritas acima, mesmo nas crianças que apresentaram algum episódio de convulsão febril (ver aqui). A febre em si não causa qualquer dano, pois ela geralmente é autolimitada a menos de 40 graus, ou seja, abaixo dos limites para causar problema cerebral.

Uma exceção que justifica o tratamento da febre alta seria para aquelas pessoas com insuficiência cardíaca grave, pois o aumento do metabolismo causado pelos tremores musculares poderia ser o bastante para descompensar a função cardíaca que já está muito limitada.

Além disso, a primeira fase da febre costuma durar menos tempo do que o tempo necessário para um antitérmico por via oral fazer seu efeito (a não ser os injetáveis). Também não faz sentido tratar a febre na sua fase dois, em que ela está estável, já atingiu seu limite natural e a pessoa já está mais confortável. Menos necessário ainda seria o tratamento na terceira fase da febre, na qual ela está espontaneamente desaparecendo.

Parece-me que muitas vezes damos os medicamentos antitérmicos apenas para aliviar os sintomas de desconforto e fadiga causados pela febre. No entanto, estes sintomas são restritos apenas à fase inicial da febre e fazem parte das defesas do organismo para ficarmos mais quietos e protegidos num momento em que nosso corpo está empenhado no combate à infecção.

 

“Meu filho tem NF e apresentou uma crise convulsiva quando tinha 1 ano de idade durante uma febre e depois nunca mais. Ele pode ter epilepsia no futuro? “ EPCR, de Campanha, MG.

Cara E, obrigado pela sua pergunta, bastante útil a muitas outras famílias.

Inicialmente devemos lembrar que cerca de 7% das pessoas com NF1 apresentam convulsões ao longo de sua vida, o que representa uma chance dez vezes maior do que a população em geral. Nas pessoas com NF1, geralmente as convulsões estão associadas a alguma anormalidade no desenvolvimento cerebral e não a tumores cerebrais. Por outro lado, convulsões também podem ocorrer em 8% das pessoas com NF2, mas neste caso podem estar associadas a tumores intracranianos, como os meningiomas.

O início das convulsões nas pessoas com NF1 pode acontecer desde o começo da infância até a vida adulta. A maioria delas é do tipo focal, ou seja, convulsões restritas a uma parte do corpo, e respondem bem ao tratamento medicamentoso, que é semelhante ao tratamento usado nas pessoas sem NF1. Raramente ocorrem as formas mais graves de convulsões nas pessoas com NF1.

Na NF2 as convulsões podem ocorrer a partir da adolescência e vida adulta e a sua gravidade pode ser um dos critérios para a intervenção cirúrgica nos meningiomas ou outros tumores intracranianos.

As chamadas “convulsões febris” são aquelas que surgem associadas à febre em situações em que NÃO há infecções do sistema nervoso central (meningite, por exemplo). Geralmente estão associadas a uma sensibilidade especial do sistema nervoso ao aumento da temperatura causada por fatores genéticos, por alterações no desenvolvimento cerebral ou por alterações metabólicas.

Na população em geral, as convulsões febris geralmente ocorrem entre 2 meses e 5 anos de idade (80% ocorrem em torno de 1 ano e meio de idade) e geralmente apresentam uma evolução benigna. Algumas infecções viróticas parecem causar mais convulsões febris, como o vírus Influenza A.

Segundo a definição internacional, a febre deve ser com temperatura maior ou igual a 38 graus centígrados medida na temperatura timpânica ou na temperatura retal, mas no Brasil geralmente utilizamos a medida da temperatura axilar. Num estudo realizado em 2004 (por Letícia C. Marques sob minha orientação no Laboratório de Fisiologia do Exercício da Universidade Federal de Minas Gerais) observamos que a temperatura axilar foi cerca de meio grau mais baixa do que a retal. Então a temperatura axilar de 37,5 corresponde à temperatura retal de 38 graus centígrados. No entanto, a temperatura axilar é mais sujeita às variações das condições do ambiente e pode não refletir a verdadeira temperatura interna do corpo.

A febre é um sinal de infecção (ou inflamação), uma resposta do organismo que provavelmente surgiu como mecanismo de defesa para dificultar a sobrevivência de alguns tipos de bactérias ao aumentar a temperatura do corpo produzindo mais calor (tremor muscular) e conservando este calor internamente (constrição dos vasos da pele – palidez).

Portanto, a febre não é a causa do problema de saúde, mas apenas um sinal de que o organismo está reagindo a uma infecção (ou inflamação) e não precisa ser tratada por si, embora os sintomas associados (mal-estar, tremor e calafrios) possam ser desconfortáveis e mereçam ser aliviados com medicamentos apropriados.

As convulsões relacionadas à febre são o tipo de convulsões mais comum na espécie humana e ocorrem em cerca de 2 a 6% da população em geral e em 2% das pessoas com NF1. Após uma convulsão febril há uma chance de outro episódio em cerca de 40% das crianças, especialmente nas mais novas abaixo de 1 ano e maio de idade.

É importante registrar que, apesar do pavor que as convulsões febris causam nos pais, não há um único relato na literatura médica de morte causada por convulsões febris (ver revisão recente sobre isto aqui AQUI) .

É preciso identificar a diferença entre uma convulsão febril e um desmaio (síncope por calor ou reflexos intestinais) e outra doença chamada mioclonia febril (contrações involuntárias ocasionais, tiques, geralmente apenas nos membros superiores, sem perda da consciência).

As convulsões febris que afetam todo o corpo, duram menos de 10 minutos e ocorrem apenas uma vez durante uma infecção (uma virose, por exemplo) são chamadas de “simples”. Aquelas que afetam apenas partes do corpo (focais), duram entre 15 e 20 minutos e se repetem durante uma infecção, são chamadas de “complexas”. As crianças com convulsões febris “simples” apresentam uma chance de 3% de apresentarem epilepsia posteriormente. As convulsões febris “complexas” apresentam uma chance maior de até 15% de epilepsia posterior.

O tratamento durante a convulsão febril deve ser direcionado para interromper a convulsão (benzodiazepínicos intravenosos, bucais ou retais). Ao contrário do que nos diz a nossa intuição, os antitérmicos não parecem ajudar, pois demoram mais tempo para fazerem seu efeito do que a própria convulsão (as simples, pelo menos) e não reduzem a chance de novas convulsões. Da mesma forma, molhar o corpo com panos umedecidos com água fria não diminui a temperatura interna, portanto, não atinge o objetivo de reduzir a febre. Álcool jamais deve ser usado nestas compressas.

Após uma convulsão febril, além de afastar a meningite em determinados casos, nenhuma investigação clínica parece necessária ou útil, incluindo eletroencefalograma, tomografia ou ressonância magnética, além daquelas necessárias ou relacionadas com a doença que causou a febre (infecção viral, bacteriana, etc.). Recomenda-se um retorno à clínica médica dentro de uma semana especialmente para que os pais possam se assegurar de que tudo está bem.

A recomendação atual científica é que nenhum tratamento medicamentoso deve ser recomendado para prevenir novas convulsões febris ou mesmo prevenir a epilepsia depois de uma convulsão febril. Caso novas convulsões ocorram sem a presença de febre, então o diagnóstico de epilepsia (chance de 3 a 15%, como vimos acima) deve ser considerado e a medicação apropriada deve ser usada.

Finalmente, a presença de convulsões febris em mais de um parente de primeiro grau sugere a possibilidade de haver na família uma mutação genética dominante que produz uma forma rara de epilepsia (em inglês denominada GEFS+, que significa “Genetic Epilepsy with Febrile Seizure plus”). Nestes casos, a investigação genética pode ser necessária.

Cara E, espero ter respondido sua pergunta. Em breve falarei sobre a diferença entre febre e aumento da temperatura do corpo causada pelo calor e exercício.