Por Rogério Lima Barbosa, de Coimbra, Portugal
Nesta semana, por causa da reportagem Para onde vai o dinheiro que a Raríssimas recebe? Com a jornalista Ana Leal, da TVI, em Portugal, estamos presenciando uma verdadeira enxurrada de informações sobre a Associação Raríssimas e, mais precisamente, sobre a sua presidente Paula Brito e Costa.
Em tom investigativo a reportagem apresenta documentos, entrevistas com antigos tesoureiros e funcionários, uma série de irregularidades com as finanças da Associação. Tais irregularidades vão desde a compra de vestidos caros, aluguel de carros de luxo, passagens por Spas no Brasil até ao pagamento, como consultores, de agentes ligados ao governo. Ainda apresenta uma presidente que exige que os funcionári@s se levantem a sua passagem e, em reuniões, diga que o filho é “o herdeiro da parada”, uma clara alusão a Associação.
Se não fosse uma associação, provavelmente, não haveria qualquer mal sobre o que ela fez, apesar de podermos dizer que é imoral. Mas quando é uma associação o contexto é totalmente outro Porque não deve existir a finalidade de lucro. O trabalho associativo é árduo como outro qualquer, mas com um fim totalmente diferente, que é o cuidado com aqueles que dizemos representar. Quando a empresa assume a associação, o pensamento muda, a entidade muda, tudo se altera e passa a ser uma busca pelo lucro. O cuidado com a pessoa, que era a ideia incial, se perde pelo caminho.
O trabalho árduo e em prol do outro não é sinônimo de precarização. Isso quer dizer que é um trabalho como outro qualquer, e por isso ele pode ser pago. Assim, devemos defender que a pessoa que opte por abdicar de sua vida individual, familiar e profissional para cuidar dos outros, deve ter uma remuneração justa[1]. Por aqui, em terras Lusas, esse pensamento parece estar cristalizado. Porque apesar do ordenado da presidenta Paula ser igual a de Ministros de Estado, o que a pessoa comum reclama nos jornais, televisões e rádios refere-se ao uso do dinheiro para outros fins, nomeadamente, para a ostentação de uma vida baseada no luxo.
Se todos os problemas da Raríssimas se restringissem ao lado europeu do Atlântico, teríamos apenas que lamentar que mais uma Associação se lambuzou no pensamento do que “Eu faço porque eu posso! ”. Mas nós, no Brasil, dirigentes e voluntários de Associações, devemos nos preocupar e muito! Caso não se lembrem, já comentamos aqui sobre o trabalho que a Raríssimas Brasil importou de Portugal, o Linha Rara. Em nosso comentário alertamos que o serviço estava aquém do que se propagava e, por isso, deveria ser visto com cautela.
O serviço da Linha Rara no Brasil é uma proposta do Instituto Vidas Raras e tem o apoio da Raríssimas de Portugal e da Raríssimas Brasil. Conforme a nota de divulgação encontrada no site do Instituto “A Linha Rara é o resultado de um convênio com as instituições Raríssimas Portugal, Raríssimas Brasil e também do apoio integral do Instituto Vidas Raras. ” Além deste canal, também foi aceito para o Brasil, com pouquíssimas adaptações, o livro Doenças Raras de A a Z.
E porque devemos nos preocupar?
Bem, por aqui, a imprensa catapultou uma ânsia por se saber o que ocorre com a Raríssimas. As delegações da instituição do Centro e do Norte, convocaram o público para uma Assembléia Geral afim de determinar a saída da presidente. Antes que tal Assembléia se reunisse, a presidente Paula se demitiu. A reboque dos acontecimentos o Ministro da Saúde, que foi um dos consultores “contratados”, também se demitiu. E há várias propostas que podem ser organizadas em alguns movimentos (ver aqui algumas perguntas e respostas sobre a Raríssimas http://observador.pt/explicadores/oito-perguntas-para-entender-a-polemica-da-rarissimas/ ).
Um se refere a uma caça à figura da Presidente da Instituição. São pessoas que dizem ser um absurdo tudo o que aconteceu, invadem todos os meios de comunicação da Associação para insultar, questionar e exigir a prisão de Paula.
O outro, concentra-se em exigir uma averiguação para perceber até que ponto o Estado tem responsabilidade nesses acontecimentos. Porque se há uma associação que recebe recursos públicos, do Estado ou de pessoas, que é regida por leis e normas, possui exigências a cumprir, o acontecimento da Associação nada mais é do que resultado do compadrio entre amigos e da omissão do Estado. Inclusive, é nesse compadrio que algumas pessoas focam toda a atenção. Pois o raciocínio é lógico. Se a Instituição é uma entidade civil regida pelo Estado, o Estado que deve garantir o seu perfeito funcionamento.
Ainda há um outro, que é o resultado dos dois acima. As pessoas vão a público para dizer que não acreditam em mais nada. Se não se pode confiar nas associações e nem no governo, onde haverá alguma confiança?
Pensamos que o último movimento é o mais perigoso. Porque se trata da desesperança. E, hoje, em nosso Brasil, o que mais há é a desesperança com os rumos que nos forçam seguir. Esses caminhos são da destruição de todo e qualquer serviço público. E, se por um acaso, tivermos o infortúnio da lambança lusa chegar em nossas terras, por meio de suas representantes nacionais, teremos um impacto muito maior.
As associações serão desacreditadas por completo e o Estado, novamente, será criminalizado. E, neste mar de perigos, o agente que emergirá de maneira natural é o Mercado, mais precisamente, a Indústria Farmacêutica. Aí, a mesma indústria que fomenta as associações na corrida para o encontro e a venda de remédios, cria apadrinhados políticos para aprovação de leis, alcança os cumpinchas técnicos, avança sobre o Estado para governar a saúde e é quem realmente conhece e mantém o que foi encontrado na Raríssimas, sairá como o ileso, o belo e o modelo a ser seguido. Corremos o risco de criminalizarmos a nós mesmos.
Para criarmos um movimento contrário e de posicionamento, é preciso que as Associações, principalmente aquelas que são representadas pela Raríssimas Brasil e as suas congêneres, cobrem um posicionamento desta instituição. O movimento deve partir de dentro, não somente para dar a oportunidade da Raríssimas Brasil de demonstrar a seriedade e a transperência sobre como conduz as suas ações como, também, criar a oportunidade para que nos distanciemos de qualquer perfil semelhante ao que se encontrou em Portugal. Se escolhermos a pró-atividade podemos pensar que demos um passo em direção à defesa da Associação Civil como um bem público.
Ver também abaixo o artigo publicado sobre esta questão em: https://www.publico.pt/2017/12/29/sociedade/opiniao/o-caso-rarissimas-e-uma-questao-associativa-ou-do-mercado-1797522
O caso Raríssimas é uma questão associativa ou do mercado?
Por que ainda não foi, no mínimo, levantada a participação das indústrias farmacêuticas?
Nos últimos dias fomos inundados com as notícias sobre a Raríssimas. Quem nunca ouviu falar em doença rara ou alguma coisa parecida, provavelmente nunca deu muita atenção às notícias associadas à instituição. Mas quem conhece o diagnóstico de alguma doença rara, seja da própria pessoa ou de algum familiar, seguramente já visitou o site da Raríssimas ou algum dos canais que ela deixa disponível, especialmente o Linha Rara.
A outra maneira faz parte da investigação de mestrado em Sociologia que desenvolvi entre os anos de 2012 e 2014, na Universidade de Coimbra. E é esse enquadramento que realmente vale a pena para o momento em que vemos tantas notícias. Porque antes de buscar alguma culpabilização do que aconteceu na Raríssimas, creio que podemos analisar o caso de alguns ângulos. Destes, destacam-se o do associativismo, das indústrias farmacêuticas e do Governo.
Em relação ao associativismo, não há dúvidas que o setor em que a Raríssimas se coloca, o das doenças raras e os medicamentos órfãos, possui uma lacuna de atendimento. Por isso, é justo a criação de associações que lidam com as ditas “doenças raras”. E, no mesmo sentido, foi justo o posicionamento dos trabalhadores da Raríssimas para não haver a criminalização da instituição. E se não vale a pecha de criminosa sobre a instituição, muito menos vale para todas as outras que desenvolvem um trabalho de voluntariado sério e comprometido. Estas devem ser protegidas e preservadas.
Curiosamente, a indústria farmacêutica é a única que ainda não foi falada. Foi dada a ação livre para citar nomes de pessoas do Governo, primeiras-damas, princesas e tudo aquilo que a imprensa acha que tem que falar. Mas por que ainda não foi, no mínimo, levantada a participação das indústrias farmacêuticas? Afinal, empresas como a Shire, Novartis, Pfizer e outras são parceiras da Raríssimas e qualquer outra associação, em qualquer lugar do planeta, que tenha o mesmo foco que esta organização. Assim como essa ligação pode ser vista em rápidos cliques, também podemos encontrar informações sobre as projeções para o mercado das drogas órfãs. Desde 2013, o mercado anuncia o crescimento do mercado das drogas órfãs e “doenças raras”. Num dos relatórios financeiros para o sector, as drogas órfãs é o que tem a maior perspectiva de ganhos financeiros até 2022 e suas projeções perdem somente para os medicamentos genéricos. Portanto, o discurso de que não há interesse da indústria nas chamadas “doenças raras” é, no mínimo, superado.
O Governo, que acaba por ser exposto nas ligações com a entidade, é o agente que pode regular as relações entre associação e mercado. No entanto, quando ele se apequena diante das investidas do capital, transforma a saúde em nada mais que um bem a ser comercializado. A Raríssimas tem uma história de mais de dez anos e é claro que os seus contatos com o Governo não são de agora e muito menos são desconhecidos das pessoas que atuam na arena das doenças raras.
A partir do que foi captado na dissertação de mestrado, percebe-se que Portugal levantou uma linha que está encarafuchada nos novelos das diretrizes europeias e que acabam por influenciar outros continentes como, por exemplo, o Brasil. Pois, assim como recebi o contato da Sra. Paula, no Brasil, ela, certamente, recebeu a visita de alguém da Eurordis, entidade europeia para doenças raras, em Portugal. A parceria que a Raríssimas criou no Brasil é solidificada pela Raríssimas Brasil e pelo Instituto Vidas Raras. Hoje, o Brasil é visto como o lugar para as drogas órfãs. Por causa de nossa virtude de reconhecer a Saúde como um direito, há toda uma engrenagem voltada para a venda de medicamentos. No meio das relações entre as associações, mercado e Governo, encontramos aquele que continua a precisar de cuidados, a própria pessoa com o diagnóstico. A engrenagem que coloca a pessoa com o diagnóstico apenas como um meio para se alcançar os lucros individuais foi nomeada de Modelo Utilitário do Cuidado.
Acredito que o novelo que a sra. jornalista puxou está muito mais emaranhado do que somente uma busca entre o que a associação fez e os representantes do Governo fizeram. É um novelo que precisa de continuar a ser puxado até chegar a quem realmente entende o que vimos nos jornais, nomeadamente, a indústria farmacêutica. A nós, além da esperança do esticar do fio, cabe somente a pergunta: terá o brio luso a coragem de seguir em frente? Ou, para um ajuste do foco, terão os países do Sul a capacidade de fazer frente ao mercado da Saúde?
[1] Na AMANF não há qualquer tipo de remuneração por serviços prestados. Somos 100% voluntários.