Depoimento de Rogério Barbosa Lima
2020
Informações sobre o autor disponíveis em: https://www.google.com/amp/s/
O diagnóstico da doença que é rara como fator de mudança de vida
A jornada pelo diagnóstico
– Neurofibromatose!
Foi a primeira palavra que eu lembrei quando, em 2010, longe de casa, acordava em um hotel localizado em uma região um tanto assustadora da violenta São Paulo. Quando me recordo daquele momento, tenho a impressão de vislumbrar uma outra vida. Porque a única coisa que se mantém daquela época refere-se a mim, minha esposa e as minhas crianças. Todo o resto, seja profissionalmente ou de expectativa para a vida, é completamente diferente. Daquele hotel e daquele momento, lembro-me de estar sentado na cama, esfregando a nuca com cuidado ao mesmo tempo que tentava lembrar-me do que tinha acontecido. O corpo doía, a mente girava e eu tinha dificuldades de recordar o porquê daquele sentimento de completo abandono.
Sei que passei a noite no computador, lembro do meu sentimento de aflição e do choro sofrido que me corroía cada vez que eu ia à net. Também estava na minha cabeça o rápido diálogo que eu tive com um amigo, por mensagens digitais, que ele estaria comigo e poderia ajudar-me. Este amigo, que trabalhava como consultor ficou disponível para me apoiar em uma nova colocação.
Mas por quê eu tive aquela conversa com ele? Por quê do choro, da dor e da vontade imensa de ir para casa? Ver as minhas crianças e a minha esposa. Por quê o meu corpo doía como se tivessem me jogado em um buraco? Ao mesmo tempo, aquele curso em gerenciamento de processos, que era a razão da minha estadia naquela cidade cinzenta, poderia proporcionar mais uma melhora na minha carreira? serviria para o quê? Havia sentido em tudo o que estava a acontecer comigo? Qual seria o sentido da vida? E Deus, o que era aquilo? Como era possível eu estar ali, sozinho, se a minha criança tinha a Neu… peraí porque é difícil de pronunciar, a minha criança tinha a Neu-ro-fi-bro-ma-to-se. Pronto! Assim é mais fácil de pronunciar. Mas, caramba! O que é isso? Como é que eu cheguei até aqui?
A suspeita
Bem, eu e a minha esposa temos três crianças. Cada uma possui a sua própria demanda e uma delas, desde 2010, tem o diagnóstico da Neurofibromatose do tipo 1 – NF. Apesar de ter nascido com as manchas café com leite, o diagnóstico da NF foi realizado por volta dos quatro anos, durante o início de sua trajetória escolar.
A Alice começou a frequentar a escola com 2,5 anos. Ela adorava o ambiente em que passava todas as suas manhãs. Amava estar com seus colegas, suas professoras, correr pelo pátio só de calcinha, se sujar com lama até a última ponta do fio de cabelo, enfim, adorava estar naquele espaço. Como ela conhecia aquele local pelas outras duas de nossas crianças e, porque, quem sabe, a mãe era uma das professoras daquele local, o nosso problema nunca foi deixá-la na escola, mas, pelo contrário, ter que levá-la para casa. Era o seu local de segurança, a somatória de um lugar pequeno, seguro e cheio de pessoas que ela amava.
Durante o seu primeiro ano escolar, ela não apresentou qualquer sinal de dificuldade de adaptação ou outra coisa parecida. Pelo contrário, interagia com toda a gente, era brincalhona e muito feliz. A sua participação não diferenciava das outras crianças e não houve qualquer situação que demandasse alguma atenção. No entanto, como as outras crianças, ao entrar na escola, as idas aos pediatras e, principalmente, às emergências começaram a ficar mais comuns.
Como toda família de classe média, éramos atendidos por algum plano de saúde e intercalávamos o atendimento com um pediatra privado e o serviço do plano. No nosso caso, o acompanhamento de nossas crianças era realizado com um pediatra particular e os profissionais que encontrávamos nos postos de emergência médica dos hospitais. Assim, estávamos acostumados com esse atendimento tanto particular quanto pelo plano de saúde. No entanto, de maneira muito peculiar, os atendimentos com a Alice eram um tanto diferentes do que estávamos acostumados. No caso dela, era comum que, em qualquer consulta, os profissionais que nos atendiam pedissem exames complementares e adicionais às demandas que nos levavam até eles. Desta maneira, independente dos motivos que nos conduziam à consulta, sem muitas explicações sobre o porquê ou com explicações muito supérfluas, seguíamos para os tais exames complementares. Esses, eram os mais variados possíveis como, por exemplo, de coração, audição, oftalmológico, tórax, cérebro, sangue e um tanto de outros. Fizemos tantos exames que eu nem lembro o nome de todos e, quando lembro, confundo tudo. O pior não era ficar andando de médico em médico, ou fazer aquela quantidade de exames, o que mais machucava era não ter respostas conclusivas dos tais exames e, para piorar, ter que informar para diferentes profissionais, quais que ela já tinha feito. As respostas que tínhamos variavam muito pouco do:
– Não se preocupem! Queremos apenas saber como anda a funcionalidade do [órgão x]. Ou, pior
– Não é nada sério. É somente exame de rotina.
Se os profissionais da emergência a enchiam de exames, o pediatra privado não dava qualquer indicação parecida ao que víamos nos hospitais. Nós já o conhecíamos e gostávamos bastante dele. E, então, aquela constância de pedidos sem respostas mais o silêncio por parte do pediatra, começaram a nos deixar um tanto preocupados e “com a pulga atrás da orelha.”
Em relação a Alice, começamos a perceber que as suas manchinhas começaram a aumentar. De tamanho e quantidade. Por isso, diante de um quadro que se distanciava do que experimentamos até ali, com as nossas outras crianças, passamos a suspeitar que algo não estava a correr muito bem.
Foi por volta do segundo ano em que a Alice estava na escola que eu e a minha esposa começamos a perceber que ela apresentava alguma dificuldade na fala. Na verdade, foi a esposa quem primeiro percebeu essa particularidade e marcou um encontro com a psicóloga da escola. Conhecíamos a psicóloga e tínhamos um carinho muito especial por ela. Assim, a conversa foi a mais franca e abrangente possível. Do nosso encontro, entendemos que devido a idade de Alice, o melhor a ser feito era acompanhar e aguardar o seu desenvolvimento natural. Portanto, assim como a resposta dos profissionais de saúde, a da escola foi para não nos preocuparmos.
No quadro da falta de uma indicação assertiva dos médicos sobre os exames que solicitavam, das dificuldades que se faziam notar na escola e do aumento das manchas café com leite que, para mim, eram umas sardinhas e manchinhas muito charmosas, fomos à procura de algo que pudesse nos ajudar a entender se havia alguma relação entre todas essas características. Desta maneira procuramos um local que acreditávamos ser onde conseguiríamos alguma informação. O que nos levou a tentar uma consulta no hospital de referência em Brasília.
O Hospital de Referência é uma sumidade no que toca o aparelho locomotor e os estudos da neurociência. Como hospital de referência é, seguramente, um local que os usuários confiam bastante.
– Como ninguém nos esclarece o porquê de tantos exames ou o quê são essas manchas, vamos buscar ajuda no Hospital. Lá, sabemos que vão virar a nossa pequena do avesso mas, pelo menos, saberemos o que são essas manchas. – Foi uma das frases da conversa com a esposa.
Como? Neuro… o quê?!
Confesso que, apesar de sentir a necessidade de buscar a consulta no Hospital, estava confiante que as coisas correriam bem e acreditava que não haveria nada para ser constatado. Como já tínhamos passado por uma quantidade enorme de exames, pensava que a consulta no Hospital, muito provavelmente, não apresentaria qualquer problema. De toda forma, como ninguém falava sobre as manchas que teimavam em aumentar de tamanho, achávamos que a consulta no hospital era uma boa ideia.
O agendamento da consulta foi realizado por meio telefônico. Nós conseguimos a consulta em dois meses. No nosso caso, foi a madrinha da Alice que tratou da marcação da consulta. Ela conseguiu fazer o agendamento e durante um de nossos encontros familiares, ela perguntou:
– Você já ouviu falar em neurofibromatose?
– Neuro, o quê?
– Neurofibromatose!
– Não, nunca! Por quê?
– Quando eu estava falando com a telefonista, eu explicava porque estávamos procurando a consulta, falando das manchinhas, enfim, respondendo aquele checklist que eles sempre fazem. Aí, ela me perguntou se a Alice tinha o diagnóstico de Neurofibromatose.
– É a primeira vez que ouço isso.
– Bem, não deve ser nada demais. O que importa é que conseguimos a consulta.
Eu fico pensando e remoendo este momento para ver se realmente foi aqui que ouvi falar em Neurofibromatose pela primeira vez. Por mais que eu dê voltas e converse com a esposa, sempre voltamos para esse diálogo. Por incrível que pareça, apesar de todos os exames que nossa filha realizou, foi no contato para o agendamento da consulta de nossa criança que ouvimos essa palavra pela primeira vez.
– Como pode uma telefonista saber o que se passa com a nossa filha? – Foi a pergunta que ouvi algumas vezes.
– Deve ser nada, não se preocupe. Fizemos todos aqueles exames e não nos disseram nada. Com certeza, se houver alguma coisa, o Hospital vais nos dizer. – Respondia um tanto ansioso e muito confiante na consulta.
Ao tentar lembrar dos primeiros contatos com o hospital, eu não consigo ir muito além da hora do agendamento. Acho que eu estava um tanto afastado de casa, pensando no trabalho e seguro que tudo correria bem. Por isso, a vida, simplesmente, me levou para longe das preocupações diárias de nossa casa. Longe o bastante para eu deixar a esposa e a Alice passarem, sozinhas, por muitos dos exames que faziam. Foi um mês de exames na área de pediatria, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia, neuropediatria, oftalmologia e genética. A nossa filha, literalmente, foi “virada do avesso”. O trabalho era muito meticuloso e em equipe. E nós continuávamos a andar com a nossa vida por aquelas consultas todas.
– Está tudo caminhando bem, né?! Então olha só! Eu vou para São Paulo fazer aquele curso em gerenciamento de processos e assim que você souber do resultado ou alguma coisa, me avisa, tá?! – Disse eu ao decidir sobre o curso.
Como tudo andava como o planejado, seguimos com os nossos planos e eu fui fazer mais um curso para a minha área. Na época em que a equipe médica do Hospital marcou o retorno para nós, eu fui à São Paulo realizar o curso que eu tinha planejado há mais de três meses. Isso fez com que as duas, mãe e filha, fossem receber o diagnóstico sozinhas. Ainda hoje esse momento é um tanto confuso. Mas, o diagnóstico em si foi o seguinte:
– Bem, depois de todos os exames que fizemos, chegamos a conclusão que a sua filha tem 80% de chances de ter o diagnóstico de Neurofibromatose. – Foi o que o geneticista, de seu pedestal, disse para a mãe de Alice.
Tenho a lembrança que, já em São Paulo, ao chegar no hotel, logo depois do curso, liguei para a casa. Aos prantos a minha esposa relatou a última consulta que, entre outras coisas, a nossa filha tinha 80% de chances de ter Neurofibromatose. Ela foi me falando algumas coisas e eu, do outro lado da linha, via borbulhar várias questões em minha cabeça. Mas como assim 80%? A minha filha estava lá em Brasília, fez todos os exames que pediram e nos dão um índice? E o que é essa Neurofibromatose? Lembrei da música do Zeca Pagodinho “Você sabe o que é caviar? Nunca vi, não comi e só ouço falar.” Eu podia pensar porque eu nunca tinha ouvido falar em Neurofibromatose. Nem me lembrei da telefonista. Naquele momento, a nossa comunicação era entrecortada por lágrimas, soluços, dúvidas e frases soltas. Não conseguíamos nos entender e, muito menos, assimilar a informação daquela palavra que nem sabíamos dizer direito, Neu-ro-fi-bro-ma-to-se. Daquele diálogo, daquilo que eu consegui entender, eu vi a seguinte cena: Tanto a equipe médica quanto a esposa e a Alice estavam no consultório médico. Uma equipe, composta pelos médicos que a examinaram mais o geneticista, sentou-se em frente as duas, em um formato de arco onde o centro era ocupado pelo geneticista. A psicóloga também fazia parte desta equipe. Então, com a frieza comum de um matemático e distante de qualquer sentido de partilha, o geneticista dá a notícia numérica para a esposa e ponto. Não há maiores desenvolvimentos sobre aquele diagnóstico. Naturalmente, a esposa reagiu àquilo de seu jeito, tentando entender aquela informação ao mesmo tempo que buscava compreender as ocorrências de saúde para nossa filha que, por sinal, estava em ao seu lado e a brincar. Certamente, ao ver as atitudes da esposa, a psicóloga, sentada no trono ao lado do geneticista, perguntou se estava tudo bem com ela.
– Como assim tudo bem? Eu trago a minha filha aqui durante mais de um mês, vocês fazem todos os exames que querem, estou aqui sozinha e vocês me falam de um índice e de uma doença que eu nunca ouvi falar? É lógico que não está tudo bem porra! Estou sozinha, meu marido está fora da cidade e ainda tenho duas crianças que precisam de uma mãe forte e presente. Pode, pelo amor entre as pessoas, me dizer o que é essa doença que vocês dizem e o que significa essa merda de estatística! seguramente, foram as palavras que ficaram na cabeça dela. Contudo, como uma boa menina, resiliente, respondeu: Sim, está tudo bem.
– Então, agora, a Alice é a nossa paciente e ela será acompanhada anualmente ou quanto existir algum problema.
Pronto! Foi desta maneira que a nossa filha, de uma hora para a outra, virou uma doente a ser acompanhada regularmente.
Eu e a esposa conversamos logo após o veredicto para o destino de nossa criança. Eu soube da “fineza” dos profissionais do Hospital que acreditam que um diagnóstico preciso em números é mais importante que o acalento a uma família que não conhece a informação que, simplesmente, é cuspida na sua cara. Tivemos que assimilar aquela informação sozinhos e longe um do outro. Eu, em São Paulo e a fazer mais um curso que não tinha a certeza sobre o seu retorno, e a Sandra, em Brasília, a cuidar de nossa criança, que agora era uma doente, e das outras crianças.
Um barco muito pequeno para um rio muito grande
O diagnóstico foi como o lançamento de um barco de madeira, ou será de papel? em um rio extremamente violento, com correntezas fortes e cheio de pedregulhos. Pela primeira vez, senti-me sozinho. O sentimento era de solidão misturado com o total desamparo. Desamparo porque sempre busquei fazer as coisas certinhas, como mandava a religião católica, ser uma pessoa humilde, participante de grupo de jovens, ajudar as pessoas e, agora, encontrava-me naquela situação, sem eira nem beira. E agora Deus? Cade você!? O diagnóstico suscitou um monte de perguntas e, na mesma proporção, uma intensidade enorme de falta de respostas.
O diálogo ou fúria com o divino é um exemplo de um drama pessoal. Em consequência de minha educação católica, a busca de acalento na religião foi uma das primeiras coisas que eu tentei fazer. No entanto, ao contrário do que eu pensei, ao invés de sentir-me acalentado, via-me mais culpado, mais triste, mais desesperançoso, enfim, mais sofrido.
Primeiro, eu pensei que poderia ser um punimento por tudo o que eu fiz em minha juventude. Nunca fui exagerado com drogas, mas experimentei algumas, bebia bastante, participava de todas as festas que podia e sempre estava envolvido com garotas. Eu passei a me culpar por cada sorriso e momento que considerei de prazer na minha juventude. Na verdade, eu passei a me culpar por tudo o que fiz. Afinal, estava sendo castigado pelas infelicidades que provoquei às outras pessoas. Ou poderia ser, quem sabe, um punimento às minhas palavras?
Ao saberem que eu teria uma filha, os meus amigos mais próximos sempre brincavam comigo, uma vez que eu tinha a ideia de como agir com as meninas. Nos nossos encontros, em clima de brincadeira e, na maioria das vezes, alcoolizado eu brincava que ninguém ia querer alguma coisa com ela porque ela teria alguma deficiência. Tão estúpido! Tão burro! Tão grosseiro!
Ao lembrar-me desses momentos, enquanto escrevo essas linhas, somente faz o meu coração gelar e a tristeza me acossar por ter dito tão grande estupidez. Por que falar isso? Que tristeza enorme ao lembrar desses encontros. É aquele tipo de coisa que se pudéssemos voltar e alterar o que dissemos, faria isso no ato. Hoje eu sei que a mutação ocorreu muito antes de eu falar aquelas asneiras. Mas isso não impede que meu coração continue a gelar quando eu lembro daquilo e a aflição ainda me persegue. Na época em que eu tentava entender o diagnóstico, eu passei a associar a Neurofibromatose com alguma maldição para me lembrar que não se pode brincar com as coisas divinas. Não somente o desgosto de não conseguir fazer voltar as palavras que proferi como o medo em viver em maldição passaram a ser os fardos de minha rotina de vida.
Mas além desse pensamento pessoal, que já é bem complicado, nessa particularidade com Deus ainda aconteceram algumas coisas bem estranhas.
Para completar o cenário conflituoso que eu estava a me colocar por causa da religião, há uma situação um tanto surreal que vivemos no condomínio que passamos a residir. Quando mudamos para esse condomínio, a Sandra estava grávida. Mudamos para lá para ficarmos perto do terreno que compramos, com a ajuda de minha Tia. Apesar de estarmos felizes em morar lá, vivenciamos uma situação muito estranha e um tanto bizarra. Tentarei ser o mais claro possível para mim mesmo, sabendo que não vou conseguir cumprir essa tarefa.
Em um dia como outro qualquer, a nossa vizinha nos chamou para fazer o seguinte relato:
– Olha só, sabe a casa que fica em frente ao seu terreno? Pois é, lá moram duas mulheres. Elas são bem legais e até converso com elas. Um dia elas me falaram que não queriam que vocês construíssem a casa porque elas perderiam a vista que possuem para o vale. Acontece que, ontem, eu vi uma coisa muito estranha no seu terreno, que é logo aqui ao lado do meu. Eu ia dormir quando ouvi um barulho. Fui ver o que era e percebi que havia algumas pessoas com vestido preto e velas lá no seu terreno. Para mim, aquilo era algum trabalho para vocês não construírem a casa de vocês.
Não levamos a sério essa história, porque parecia mais com fofoca de vizinhos e um tanto de discriminação por “mulheres” viverem naquela casa. Mas o fato é que alguns dias depois, fazendo uma limpeza no terreno, encontrei algumas velas pretas e outras vermelhas em baixo de uma árvore que ficava no meio daquele espaço. Eu não acreditava muito nesses “trabalhos”, mas por via das dúvidas, no mesmo dia, também enterrei algumas imagens de santos nos quatro cantos do terreno. O fato é que, no fim, não construímos nada lá e ainda tomamos um prejuízo enorme na venda do terreno. Ao mesmo tempo que faço este relato, me lembro das conversas com a minha avó sobre os referidos “trabalhos”. Segundo ela, a mulher grávida é a mais propensa em ser afligida por essas coisas. Assim, para conseguirem fazer com que não construíssemos a nossa casa, o efeito do trabalho foi para a nossa filha.
Nossa! Que canseira!!! Escrever essas coisas até dói a cabeça. Parece até coisa da imaginação.
Mas então, para resumir esse particular com o céu, a maldição que fizeram eu acreditar que vivia era devido a 1. Minhas más ações na juventude; 2. Minhas más palavras e 3. Minha má relação com Deus. Enfim, eu estava todo errado e era o culpado do diagnóstico da minha amada filha.
Nossa! Quanta coisa! Além do diagnóstico, buscar entender o porquê pela via divina, fazia-me ir ao limite da sanidade. Na verdade, acho que até hoje, ainda estou neste limiar.
Por algum tempo eu ainda fui à igreja. Mas já não sentia tanto aconchego como antes, sentia-me cada vez mais deprimido e tudo aquilo começava a não fazer qualquer sentido para mim. Por sorte, a minha participação em alguns grupos não religiosos começou a me ajudar a entender um pouco o que aconteceu e a aliviar um tanto a carga que eu assumi como minha. Aprender sobre a energia que existe em todo o universo e como todos nós podemos estar conectados, foi o caminho que eu encontrei para a não punição e o aceite das coisas como elas são. Eu e minha família não vivemos qualquer maldição, punição de Deus ou o resultado de trabalhos espirituais. Vivemos uma situação que poderia acontecer com qualquer pessoa e não há qualquer problema connosco ou com alguma de nossas crianças. Se existe algum, seguramente é o que experimentamos quando não tivemos um diagnóstico preciso e nos levou a procurar o seu significado em todos os locais menos na medicina.
O trabalho que, algum tempo depois do diagnóstico, fiz na associação civil foi a forma que eu encontrei de cuidar de minha família. E a experiência de poder contar com outra pessoa, no dia-a-dia, foi o que potencializou a mudança da minha visão de mundo. Tudo acontecia da maneira que eu precisava. Como passei a dar mais atenção ao que se passava comigo, também comecei a aceitar eu mesmo, com todas as minhas experiências, limitações e dificuldades. Posso dizer que eu acredito na solidariedade das pessoas e nas relações que conseguimos criar umas com as outras. É isso que nos move e faz sentido para mim. O processo de distanciamento de algo que me fazia sofrer aconteceu em par com a minha capacidade de entender o que é a NF.
De alguma coisa que era difícil até soletrar, hoje, eu percebo que a NF é uma condição genética que pode ser hereditária ou acontecer por mutação nova, ocorre nos genes 17 ou 22 e, atualmente, possui três classificações, a NF 1, que até onde eu entendo afeta todo o indivíduo, desde a sua identidade até o entendimento de mundo, a NF 2 acomete a audição e a Shewanomatose. A NF 1 é a mais comum. Até a realização do meu doutorado, considero-me como uma pessoa que não conhece a NF. Por orientação do “Papa” da NF, deixei a questão biológica da condição. Foi assim que um médico super atencioso e gentil me foi apresentado pela associação que conheci no Rio de Janeiro.
O “Papa” é o tipo de profissional que todas as pessoas que vivem alguma situação semelhante a minha tinham que conhecer. É muito calmo, sabe o que fala, as orientações são muito sensatas e em um exame clínico, confirmou que a nossa criança tinha a NF. Não em índice, mas baseado no cuidado que essa informação deve ser dada a quem não tem a menor ideia do seu significado. A nossa primeira consulta com ele foi muito boa. Conseguimos as respostas para todas as nossas dúvidas sobre a NF e a forma que ele nos acolheu foi surpreendente. Com o tempo eu vi que há muitos outros profissionais que podem ser considerados “Papas” e, invariavelmente, estão envolvidos com alguma associação civil.
No nosso encontro eu soube que ele estava lançando o seu livro sobre a NF. Eu pedi um exemplar para poder entregar ao pediatra de Brasília. Ele me entregou lacrado e com a seguinte indicação:
– Do jeito que eu lhe entrego esse livro você tem que me prometer que ele chegará em Brasília.
Eu não abri o livro e tampouco, durante o doutoramento, eu pesquisei a NF para além do que acreditava ser necessário. A indicação para eu não me aprofundar no conhecimento biológico sobre a NF foi ótima. Porque sinalizou para eu viver um dia de cada vez, deixando o futuro longe de meus pensamentos e onde ele deveria estar. O “Papa” e o contato com a Associação Civil foram uma agradável surpresa. Além de finalizar as nossas buscas, me demonstraram como podemos ser ajudados pela sociedade organizada.
Foi por meio de uma associação civil que eu conheci não somente alguns Papas mas todo o trabalho de atendimento aos familiares e pacientes que uma associação é capaz de fazer. A Associação do Rio de Janeiro, foi um porto em que eu pude ancorar o nosso barquinho que estava fraquinho, cheio de furos e quase a afundar.
O tratamento?
Planejando o futuro
- O apoio da associação foi espetacular! – Era a minha usual frase para representar todo o cuidado que recebemos no Rio de Janeiro.
Depois da experiência com a Associação, voltei para Brasília com a cabeça fervilhando.
Primeiro, eu estava impressionado com a facilidade de apoiar as pessoas por meio de uma associação. Foi uma agradável surpresa experimentar o cuidado ofertado pela ação social.
- Sem dúvidas! Com o apoio da Associação, agora eu sei o que acontece com a minha criança e o que são aquelas manchinhas. E tem mais, com um atendimento daqueles eu estou pensando em mudar para o Rio de Janeiro e ajudá-los de alguma forma.
Como nós não tivemos apoio em Brasília, eu estava pensando seriamente em mudar para o Rio de Janeiro e me aproximar da Associação. Lá eu teria a oportunidade de ajudar outros/as pais/mães que se encontravam em uma situação semelhante a minha e, ainda, garantir um bom atendimento à minha criança.
- Acho que é uma boa ideia! – Estava conversando com a Sandra – imagine o que acontece com as pessoas que não possuem as mesmas oportunidades que nós? Apesar de estarmos na capital do Brasil, sermos da classe média, o nosso network não nos ajudou! Se conseguirmos ajudar a associação do Rio, talvez, podemos chegar em outros pais/mães que estejam na mesma situação que nós.
A solução que encontrei para enfrentar o mundo que me foi aberto pelo diagnóstico da Neurofibromatose, foi trabalhar em uma associação civil, longe de minha cidade. Isso porque é um mundo que mesmo impregnado com desolações ainda existe acolhimento e suporte entre a sua população.
O meu plano não era nada impossível de acontecer. Como eu trabalhava para uma grande empresa em Brasília, não era difícil conseguir alguma posição no Rio de Janeiro. E mais, a minha experiência e expertise eram boas o suficiente para conseguir algum trabalho no Rio de Janeiro que, na época, vivia um boom por causa do planejamento para a copa do mundo e jogos olímpicos. O primeiro passo que dei para alcançar os meus objetivos foi avisar o gerente de minha área sobre as minhas intenções e planejamento.
Depois do que se passou no Rio de Janeiro, os rumores sobre o que aconteceu com a minha família e comigo se espalharam rapidamente por toda a minha rede de contatos e, inclusive, na empresa em que eu trabalhava. Toda a gente perguntava sobre os meus planos e os meus desejos para o futuro. Como resultado de tanta turbulência e especulação, alguns dias após eu dar a notícia na empresa, algo inesperado aconteceu.
– Rogério, por que você quer mudar para o Rio de Janeiro se você pode começar uma associação em Brasília?
Peguei você! – O processo de recrutamento
Com aquela pergunta, uma colega me parou, em frente ao elevador do edifico em que trabalhávamos, em algum momento antes do almoço. Até ali eu nunca havia pensado em iniciar uma associação em Brasília. Para mim, era inimaginável porque o trabalho com associações civis deveria ser voluntário ou deveria montar uma estrutura associativa que, naquele momento, eu não tinha qualquer condição de montar. Por isso eu pensei na possibilidade de ir para o Rio de Janeiro. Pois continuaria o meu trabalho regular e nos meus dias de folga ou depois da hora laboral poderia ajudar a Associação. A ideia de iniciar uma associação significava o investimento do meu tempo como diretor de uma associação em oposição ao investimento do tempo em uma atividade formal e remunerada. Frustrado com aquela “grande ideia” dei de ombros e fiquei em silêncio.
– É brincadeira! Como essa mulher pode dizer isso para mim neste momento? Eu não preciso de mais trabalho, eu preciso é melhorar a minha remuneração – pensei.
– E fique tranquilo, é possível fazer algum dinheiro no terceiro setor! – Ela disse sorrindo e adivinhando o que eu pensava.
– Está bem! Conversamos depois.
Eu entrei rapidamente no elevador porque aquela era uma informação importante e eu queria entendê-la melhor. Na verdade, depois daquele rápido instante, a minha vida mudou completamente. E, depois daquela conversa em frente ao elevador, aquela colega começou a ser uma personagem constante em minha vida, chamando-me para diferentes encontros e momentos. Eu fui para todos os encontros que ela marcou. Sempre me lembrava das perspetivas para o terceiro setor e a possibilidade de ajudar as pessoas por meio do meu trabalho, sem comprometer a minha vida pessoal ou ter alguma perda financeira. Mas não mostrava os caminhos práticos. Eram conversas de motivação sem a demonstração de um percurso real para encontrar os financiamentos ou o sustento da Associação e a minha família. Nesta mesma época e entre um encontro e outro, ela me enviava um grande número de contatos que, em suas palavras, poderiam me ajudar com alguma informação sobre a NF (na verdade, com o tempo, percebi que nenhum destes contatos me ajudou com alguma informação sobre a condição ou algum atendimento de minha criança). Uma conversa usual com ela pode ser exemplificada como a que segue:
– Imagina Rogério! Você pode ajudar outras pessoas, encontrar os pacientes e, ao mesmo tempo, continuar em Brasília, com a sua família e sendo remunerado pelo seu próprio esforço!
– Legal!
– Claro que é! Vou te encaminhar alguns contatos que podem ajudar com a NF. Na verdade, vou apresentar-lhe um amigo meu. Ele trabalha em uma indústria farmacêutica, a Spire.
Para mim era como um sonho. Finalmente encontrei uma ajuda real (era o que imaginava) para a minha filha e toda a minha família. Foi uma época de muito entusiasmo e de alargamento das pessoas conhecidas.
Uma das vezes em que eu voltava para casa, após um longo dia de trabalho, tive a seguinte conversa por telefone:
– Hei Rogério! Aqui é o Rondy, da Spire. A Márcia falou-me de você e estou feliz por poder ajudá-lo com qualquer coisa.
– Está bem Rondy! Obrigado.
– Eu liguei apenas para dizer um alô e me apresentar. Assim que possível, nos encontramos pessoalmente. Bye, bye!
Há um sussurro no ar
– Você sabe alguma coisa sobre o Dia das Doenças Raras?
– Não Márcia! Eu nunca ouvi alguma coisa sobre isso.
– É um evento de um dia, apoiado pela Eurordis, com o objetivo de espalhar informações sobre as doenças raras. É uma boa ideia fazer um dia desses em Brasília.
– Sim! Mas estou viajando no próximo mês com a minha família e voltamos somente em dezembro.
– Não se preocupe! Podemos trabalhar por email ou usando o skype. O que você pensa?
– Claro que é uma boa ideia mas não temos a menor condição de fazer alguma coisa dessas.
– O que isso significa? Se for dinheiro, acho que a Spire pode ajudar!
– Bem, com dinheiro, conseguimos fazer alguma coisa. Vamos manter contato!
Isso é fantástico! Faremos um evento? Isso é ótimo! Agora, o que eu devo fazer? – Pensei assim que desliguei o telefone.
Para entender o mundo das doenças raras eu li tudo o que consegui encontrar. A Eurordis tinha/tem excelentes publicações para ajudar tanto os pacientes e seus familiares, quanto aqueles que atuam com as associações.
– Alô Márcia, como você está?!
– Tudo bem. Como vai a viagem?
– Está legal. Estou cheio de ideias!
– Ótimo! Olha só, a Spire vai nos ajudar. E talvez seja importante usar essa atividade para iniciar a associação.
– Excelente notícia! Vamos a isso!
Com essas novas, conseguidas a partir de um café no centro de Fortaleza, voltei para a minha família que me esperava na praia.
– Sandra, lembra-se daquela ideia de fazermos um evento em Brasília? O Dia das Doenças Raras?
– Mais ou menos. Pode explicar de novo, por favor?
– Claro! A Eurordis é uma associação francesa para doenças raras. Nas pesquisas que realizei ela é a associação mais importante neste campo e aparece, como parceira, em um monte de outras associações. No último dia de fevereiro eles planejam fazer o Dia das Doenças Raras. A intenção é fazer um dia para o advocacy e a conscientização sobre as doenças raras. É importante a presença de pessoas ligadas ao poder legislativo, executivo e, também, pacientes e familiares. Não é um dia de comemoração, pelo contrário, é um dia de construção de uma consciência coletiva sobre as doenças raras. Assim, a Márcia e eu estamos planejando em fazer esse dia lá em Brasília. O que você pensa?
– Eu não sei. Por que faremos isso?
– Para ajudar outras famílias. Você se lembra como é difícil entender o diagnóstico e o tratamento da NF? E mais, a Márcia ajudará na estruturação dessa associação. Ela disse que é possível ter alguma remuneração com esse tipo de trabalho.
– Eu não sei. Está sendo um momento muito difícil para nós. Você está tentando construir algo que não tem certeza se será bom?
– Com certeza será bom! Não há qualquer chance de sair errado. A Márcia está me ajudando e tem uma pessoa ligada a uma grande empresa farmacêutica nos ajudando.
– Eu não sei. Faça o que você achar melhor! Parece alguma coisa equivocada, ainda mais neste momento. Mas é o teu trabalho e as tuas responsabilidades.
A Sandra sempre teve alguma relutância com a ideia sobre a Associação e, com o tempo, a Associação passou a ser um problema em nossa casa.
– Hei Márcia! Está tudo certo! A Sandra está um tanto preocupada, mas não é nada muito sério. Podemos planejar a nossa ação em Brasília.
– Que notícia ótima! Veja que é importante criar uma associação.
– Hummm…
– Olha só! Quando chegar em Brasília, conversamos sobre isso.
– Está bem!
Com essas notícias eu passei o resto de minhas férias fazendo planos para o evento. Eu passava o tempo todo em Cyber Cafés, enviando um monte de emails a procura de informações e ajuda.
Quando cheguei em Brasília, comecei a procurar apoio a partir das pessoas que eu conhecia. Essa experiência foi a melhor de todas e tenho somente boas lembranças! Toda a gente queria ajudar de alguma forma para o evento acontecer. Meus colegas de trabalho, familiares, amigos/as, amigos/as de amigos/as, a ajuda veio de todas as partes! Ainda hoje, tenho um sentimento de imensa gratidão por tanta ajuda. A partir do apoio dos meus contatos, eu encontrei pessoas no parlamento, nas universidades, no movimento social… Enfim, em todos os lugares que eu precisava. Todas as atividades para a realização do primeiro dia das Doenças Raras estavam indo muito bem.
Apesar das atividades de planejamento do evento estarem avançadas, ainda não havíamos discutido de maneira aprofundada a criação da Associação e o seu nome. Na verdade, eu não tinha muita preocupação com isso porque, como havia aprendido com a Eurordis, para iniciar uma associação, era importante encontrar pessoas que convivessem com diferentes doenças. Por isso, a minha maior atenção era para encontrar as pessoas da associação durante o evento que planejávamos. Mas, de toda forma, como a Márcia esclareceu, era importante dar um nome para a suposta associação uma vez que ficava mais fácil para as pessoas entenderem o que era.
– Pessoal! Temos que fazer um encontro e pensar no nome para a nossa associação!
Falei isso com os/as amigos/as mais próximos/as e familiares. Planejamos nos encontrar em um restaurante para encontrarmos o nome da associação. Neste encontro estavam eu, Sandra, meu irmão, uma grande amiga de Sandra e a Márcia. Como eu tinha estudado muito sobre a formalização de uma Associação, eu tinha algumas pistas sobre o que fazer e, inclusive, tinha o rascunho de um estatuto. Aprendi que a Associação deveria ser uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).
– Gente, há um modelo de estatuto que pode ser usado por qualquer associação, por isso não precisamos perder muito tempo discutindo regulamentos que já estão disponíveis para nós. Acho que o mais importante é encontrarmos o nome da associação.
– Beleza! Talvez algo que possa abranger todo o Brasil.
– Sim, é uma boa ideia, mas porque pensar somente no Brasil se podemos abranger a América Latina? – Mais outra ideia.
– Pode ser algo como Associação Latino-americana de apoio aos familiares e pacientes com doenças raras.
– Boa pedida! Como subtítulo podemos usar: Apoiando você com informações sobre doenças raras na América.
– É muita coisa! Vocês estão viajando! Porque não fazer algo somente para o Brasil? – Sandra, sempre atenta, argumentava.
Toda a gente estava dando sua contribuição com ideias, algumas grandes demais e outras nem tanto. A Márcia estava um pouco quieta e, de repente, dispara:
– Eu acho que devemos colocar o nome da Alice!
– ….
Silêncio total! Ninguém pensava em algo próximo daquilo. Eu e a Sandra nos olhamos com os olhos cheios de lágrimas. E a Márcia continuou com a sua ideia:
– Tudo isso está acontecendo por causa dela. Por isso, nada mais importante que colocar o seu nome na associação.
Eu, Sandra, todos nós, estávamos sem reação.
– Márcia é expert nesse assunto, talvez seja uma boa ideia. – Pensei em silêncio.
– Tá bom pessoal! Vamos pedir o almoço! – Alguém desconversou.
Todo o almoço seguiu sem qualquer menção sobre o nome e surgiram outros assuntos, sem qualquer um ter conexão com a associação.
Logo depois de dar a sua ideia, Márcia teve que ir embora e não ficou para o almoço.
– Márcia, obrigado pelo suporte! – Falei enquanto a acompanhava até o seu carro.
– Não se preocupe! É parte do meu trabalho! Eu encontro pessoas como você e ajudo a iniciar uma associação, porque as associações podem encontrar outras pessoas na mesma situação.
– Eu não sabia desta parte de seu trabalho.
– É porque é um freelance para a Spire.
Shhhhhh……. Eu ouvi o sussurro em meu ouvido. Como assim? Eu não sabia até aquele momento. Várias cenas foram rememoradas como se eu estivesse a ver um filme. Como, por exemplo, a reação pouco entusiasta de meus colegas de trabalho quando a Márcia alardeava: Gente, agora todo o mundo vai trabalhar com o Rogério! Vendo o carro da Márcia se afastar, eu somente relembrava todos os passos desde aquele encontro no elevador. Agora entendi quando a Márcia falava que era amiga do Rondy… Na verdade, todo suporte que consegui veio de um só lugar, a Spire! Mas eles apoiam a Eurordis! Eu ainda tenho a chance de fazer alguma coisa boa! Oh! Com tudo quase feito e com todas as confirmações, ainda há alguma opção para mim? Eu mobilizei grande parte de meu network, convidei as pessoas para o evento, reservei o auditório… Não, mas não é possível que seja algo errado! Está tudo certo e tudo correrá bem. Como eu posso usar o nome de minha filha? Ela é tão pequena, fofa e é a minha filha! Sem chances! Como eu posso mobilizar tantas pessoas, colocar tanto esforço para a realização do evento e, ao mesmo tempo, olhar para ela e ver a minha filhinha? Isso não é possível! Aquele momento foi um tanto de conflito. Em não somente conhecer as engrenagens como, também, por sentir que eu já tinha ido longe demais para voltar. Ao mesmo tempo, aquela ideia de colocar o nome de minha criança não funcionava muito bem em minha cabeça.
Depois do encontro, o debate sobre o nome da associação aumentou a medida que o evento se aproximava. E eu conversava com todo o mundo. A ideia parecia boa, mas era o nome de minha filha.
– Meu amigo! Olha só! Eu compreendo a sua preocupação e concordo com você! No entanto, pense que o nome de uma associação, o nome de uma pessoa, é muito diferente de qualquer outro nome, proporciona personalidade à associação. Entendo a tua visão mas veja Alice é a tua filha, e aLLice é a Associação. Eu sei que isso é um detalhe mas pode significar muito para você! – Era o que me falava um amigo da área de Marketing.
– Você não está totalmente errado. A ideia faz sentido. aLLice é a associação que estamos construindo e Alice é a minha pequena, a minha filha.[1]
Foi mais ou menos assim que surgiu o nome da Associação. Apesar de um sussurro em meu ouvido não parar desde o encontro no restaurante e, suspeito, que a Sandra ouvia esse sussurro de maneira mais clara, eu nunca tive muito tempo para pensar nele porque estava a organizar o primeiro Dia das Doenças Raras na minha cidade.
Em consequência do volume das atividades que surgiram desde o planejamento do Dia das Doenças Raras, somente fui me lembrar do momento crucial do restaurante no final do meu mestrado. O mestrado também me ajudou a perceber que eu era um modelo a ser perseguido. De acordo com o prof. Novas os diretores das associações de pacientes são, na sua maioria, brancos, da classe média e com uma extensa rede de contatos. Eu me encaixo nas duas últimas características. Ainda, em um dos artigos do prof. Novas, havia um ponto significante para mim. Em uma das associações que ele analisou, o diretor era um pai da classe média e gerente de projetos. Portanto, exatamente igual a mim! As publicações de Novas e Rose faziam sentido para mim. E, talvez, se naquela época eu tivesse conhecido muitos dos trabalhos académicos que utilizei no meu doutorado, eu poderia ter ouvido o sussurro de maneira mais forte: Cuidado com essa gente!
O 1° Dia das Doenças Raras
O Confronto!
Sem qualquer sombra de dúvidas, o ano de 2010 representa uma divisão na minha vida que pode ser identificada em duas perspetivas: a relação que eu tinha com os outros e a comigo mesmo. A relação com os outros, trouxe-me muitas das questões discutidas anteriormente: o que está acontecendo com a minha filha? O que eu posso fazer para ajudar outras pessoas? Por que eu tenho que começar uma associação civil? Essas questões estavam ligadas a minha pesquisa para conseguir alguma informação que pudesse ajudar a minha filha. Seja por meio dos profissionais da saúde ou com a ajuda das associações civis. Também, essas relações ajudaram-me na busca pelo tratamento. Para isso, eu estava em contato não somente com médicos, familiares, amigos e associações mas, também, com as indústrias farmacêuticas. Curiosamente, ao tempo que o meu contato com diferentes pessoas dependiam do meu esforço, o contato com as indústrias farmacêuticas e de biotecnologia veio em posição contrária, a partir delas. Eu não fiz nada para encontrá-las.
Enquanto eu tinha que falar e me fazer entendido para o mais variado público, eu conheci as indústrias a partir delas. Tudo começava com algo parecido com o momento com o Rondy. Eu recebia a ligação, havia uma breve apresentação e depois era marcado um encontro. Eram contactos telefônicos para encontros, almoços e tudo sobre a grande ideia de se montar uma associação. Até pessoas de Inglaterra ligaram no meu número para conversarmos. Ao olhar para aquela época, penso que, para o mercado, eu estava na hora e no local certos. E o tema das doenças raras tomou uma relevância até então desconhecida que toda a gente conseguiu o seu proveito. Mas enfim, cada um com as suas próprias motivações.
Com toda a certeza, a aproximação da indústria foi algo que sempre me chamou a atenção. Ao mesmo tempo, pensava que o envolvimento da Eurordis era como um anteparo e um modelo que eu acreditava poder seguir.
– Talvez a ideia da Associação seja boa. A Eurordis anda fazendo um bom trabalho para as doenças raras. Mas porque será que a Márcia comentou que toda a gente da indústria farmacêutica adora o trabalho da Eurordis?
Essa questão me perseguiu por um bom tempo. A revolução interna que acontecia por um (re)posicionamento de vida, seguia o passo da questão sobre o porquê de uma associação civil ser ótima para os capitalistas? Por acaso, os maiores capitalistas do mundo, a indústria farmacêutica. A resposta para essa divagação somente foi encontrada no final do meu curso de mestrado, quatro anos depois. Naquela época era uma questão de fundo que tinha a Eurordis como resposta.
Ao mesmo tempo desta questão, um outro mundo se descortinou. Eu já não fazia parte da maioria. Por causa do diagnóstico, eu e minha família passamos a fazer parte de um grupo minoritário e excluído da totalidade de nossa rede de contato. Como um grupo de excluídos, o espaço para divulgar as nossas preocupações e dilemas era muito limitado.
– Pessoal, temos que fazer muito barulho para podermos ser ouvidos! – Nas conversas com pessoas da associação, me lembrava desta frase constantemente.
Esse pensamento estava tão enraizado que durante o tempo que fiquei a frente da associação, nossas ações contavam com uma média de 100 participantes. Por isso havia tantas pessoas em contato comigo, inclusive, de fora do país.
No final de 2010, portanto, eu passei a colocar em confronto direto a teoria que passei a conhecer pelas leituras académicas e o mundo real das associações. Em oposição ao que eu estava conhecendo, a receção que tive no Rio de Janeiro, em um modelo muito diferente do utilizado pela Eurordis, me ajudava a ter esperança da possibilidade de ajudar as pessoas distante do modelo de exploração capitalista. Inconscientemente, meus pequenos passos dentro da academia e a experiência de ser atendido em uma associação prepararam-me para enfrentar a influência do mercado.
A importância do nome
O diagnóstico da NF e a própria temática sobre as doenças raras vem me jogando em um mundo completamente novo desde 2010 e, hoje em dia, percebo que é um mundo muito diferente do que eu pensava para mim e para a minha família. A constância é a dúvida e um refazer contínuo da rede de contatos. Eu ainda não tenho qualquer ideia sobre como será o meu futuro profissional. Por outro lado, no início de 2011, a partir da inspiração da Spire eu imaginava o meu futuro laboral no terceiro setor, trabalhando como diretor de alguma associação.
Como dito anteriormente, a minha intenção inicial era mudar para o Rio de Janeiro e ajudar a associação de NF. Eu tinha possibilidades reais de sucesso. Contudo, como a sabedoria nos lembra: Havia uma pedra no meu caminho. A indústria, de uma maneira muito sutil, influenciou ou inspirou as minhas ações, principalmente, com a ideia de iniciar uma associação civil.
A influência da Spire é claramente reconhecida em momentos chaves para construção do meu entusiasmo para trabalhar no terceiro setor: encorajamento para construir uma associação, incentivo constante com informações sobre associações civis e como eu poderia apoiar a minha família, apresentação e apoio financeiro para a execução do Dia das Doenças Raras e a ideia de usar o nome de minha filha na associação. Dentre todas as influências, a última foi a jogada de mestre.
Uma jogada de mestre é uma jogada sem erro. Por mais que eu tentasse, quando eu trabalhava para alguma atividade da associação, era impossível desconectar o nome de minha filha e o nome da associação.
– Tem o nome de minha filha! Não pode ser uma associação menos que a melhor de todas!
Para tanto, coloquei todo o meu conhecimento e experiência sobre Gerenciamento de Projetos em ação. Eu fiz de tudo para que a ideia da associação se transformasse na melhor associação do Brasil e conhecida internacionalmente. A sua primeira e crucial atividade foi o Dia das Doenças Raras em Brasília.
Eu estava dedicando toda a minha atenção e tempo para os preparativos do Dia das Doenças Raras. Meus colegas de trabalho ajudavam a cobrir o meu tempo de absenteísmo e o gerente da área apoiava as minhas atividades. Uma colega de trabalho ajudou a encontrar o slogan: Porque RARO é ser IGUAL! Eu estava em um processo intenso de elaboração de convites, cartas, toda a parte administrativa do evento, ligando para potenciais apoiadores, ou seja, fazendo tudo o que podia durante o meu horário de trabalho e em minha casa, dormindo de 3 a 4 horas por dia. E todo esse trabalho tinha um objetivo certo.
– Tem que ser a melhor associação de doenças raras do Brasil!
Quantas formigas nós somos?
Eu tive o meu primeiro contato com a Secretaria de Saúde do Distrito Federal no início de 2011. Foi um momento emblemático para perceber a importância dos números e um reforço para construir uma associação guarda-chuva no campo das doenças raras.
– Olá, meu nome é Rogério e eu liguei para a secretária do Sr. Marcando uma reunião.
– Sim, eu sei.
– Bem, minha filha tem o diagnóstico de Neurofibromatose e eu estou formando uma associação para ajudar não somente os pacientes como, também, seus familiares. A incidência da Neurofibromatose é 1 em 3000 nascidos.
– Humm… – O agente público murmurou.
– Também, estou organizando um evento, para fevereiro, para compartilhar as experiências com a doença entre pacientes e familiares. Assim, penso poder começar um diálogo sobre como melhorar o cuidado para essa população. Esse evento é apoiado pela Eurordis, uma Associação Europeia para Doenças Raras.
– Deixa eu ver se entendi. Você fará um evento sobre as doenças raras mas vai discutir, na maioria do tempo, a Neurofibromatose.
– Sim! Essa é a ideia.
– Filho…
O quê? Filho? Como assim? Por que esse cara está me tratando desta forma? Por que parece tão distante de minhas preocupações? Será que ele não acha isso importante? Não quero acreditar! – Esses pensamentos pululavam em minha cabeça.
– Está vendo essa pilha de papel em minha mesa? Pois é, é um monte de coisa para fazer e muito trabalho. Bem, diga-me o que você pensa fazer ou o que você quer da Secretaria de Saúde?
– Eu quero somente algum apoio de vocês. Não se trata de dinheiro, mas um apoio formal e a presença no evento.
– Filho!
De novo!!! Que caceta! – Não aguentava aquele tratamento.
– Como você disse, a incidência da neurofibromatose é uma em três mil nascidos, certo?! Em Brasília, talvez, é um problema para mil pessoas. Na minha perspetiva, é mais importante eu gastar o meu tempo com dez mil pessoas do que essas mil que você quer representar.
Atônito, eu pensava: O quê? Não acredito!! Ele está mensurando a vida? Isso é completamente novo para mim! O que eu devo fazer ou falar? Mostrar que estou nervoso, manter-me calmo! O que eu faço?!
Durante os meus pensamentos, o agente continua:
– Olha só! Entenda que o governo é um grande elefante! Se você é apenas uma formiga, o elefante não vê você. Mas muitas formigas podem incomodá-lo.
Beleza! Entendi! Eu sou a formiga que não incomoda o elefante, no caso você! – Lógico que somente respondi:
– Ok! Obrigado! Eu entendi.
Eu saí daquela sala um tanto confuso porque eu nunca tinha tido aquele tipo de conversa ou, muito menos, sobre aquele assunto. Por outro lado, apesar do tratamento impessoal e arrogância, aquele agente me ajudou bastante. Depois da reunião, eu percebi que, primeiro, é uma perda de tempo encontrar essas pessoas sozinho ou sem qualquer planejamento cuidadoso, segundo, a agenda deve ser direta e objetiva e apresentada sem perda de tempo e, o mais importante, eu sou o responsável por falar da minha própria experiência, como um “Paciente Especialista”.
Em consequência daquele primeiro contato e porque eu era somente uma formiga, escolhi falar sobre as doenças raras em geral e não somente sobre a NF. O encontro na Secretaria de Saúde ajudou a definir o campo de ação da associação civil, o debate sobre as doenças raras.
– Tudo está me direcionando para o campo das doenças raras. O trabalho da Eurordis é sobre as doenças raras no geral, a Spire sinaliza constantemente a intenção de atuar neste campo e aquele agente, definitivamente, me empurrou para esse campo. O mais importante, agora eu tenho a oportunidade representar não somente mil, como a incidência da NF, mas uma população de mais de 100 mil “formigas”.
A importância das Mídias Sociais
Com a ajuda, ou melhor, como as pessoas do marketing ordenaram, eu criei um blog, uma conta no Twitter e outra no Facebook. Alimentando essas ferramentas com informações sobre doenças raras, NF, movimentos sociais, meus encontros, postando fotos e deixando mensagens pessoais eu entendi que todo o mundo seguia as minhas atividades. Em consequência de todo o trabalho, um jornal local me procurou.
A intenção do jornal era divulgar o que eu estava fazendo. Eu gostei muito de participar desta primeira reportagem. Com bonitas imagens de Alice e minha família, a reportagem foi bastante positiva. Uma vez que tinha não somente informações básicas sobre a condição, mas como ela pode alterar toda a dinâmica familiar.
Eu devo confessar que o meu mundo novo estava somente se alargando vertiginosamente. Como tudo era novo, eu não fazia outra coisa a não ser aquilo que as pessoas mandavam. Eu estava, literalmente, seguindo a ventania, ou furacão, tormenta ou, sei lá, fazia muita coisa que eu não entendia porque estava fazendo, apenas fazia o que o outro mandava. Se sugeriam eu encaminhar uma mensagem para uma emissora, eu encaminhava, se falassem para procurar o parlamentar X, eu ia lá na Câmara e aguardava o tempo necessário para falar com a pessoa, literalmente, eu fazia o que ordenavam.
Meu conhecimento sobre o movimento social, comunicação social, como lidar com problemas sociais e políticos era mínimo. Como membro de uma família de Classe Média, no Brasil, meu conhecimento político era muito fragmentado e superficial. Por isso eu coloquei toda a minha confiança na rede que começava a crescer a minha volta. Assim, eu sempre estava fazendo algo que a Eurordis indicava para fazer ou que alguém disse que eu deveria fazer.
A exposição do meu drama familiar ajudou a encontrar apoio e muitos parceiros. Meus contatos com a classe política resultaram em dois importantes projetos. Um contribuiu para criar o Dia das Doenças Raras oficialmente no calendário do governo do Distrito Federal, o qual foi comunicado no dia de nosso evento. O outro, apoiou os meus contatos com a Secretaria de Saúde, ajudando a associação conseguir uma cadeira no Conselho de Saúde do Distrito Federal. Apesar de todo o meu esforço, eu não consegui apoio da Secretaria de Saúde para participar do evento. Mas, por outro lado, a Secretaria de Justiça encaminhou uma de suas pessoas para os representar. Assim, terminamos a agenda e começamos a planejar uma intensa divulgação, duas semanas antes do evento.
– Temos dois representantes de associações, um representante da Secretaria de Justiça, um especialista local sobre a NF, uma jovem com Esclerose Múltipla e dois deputados vão abrir o Dia das Doenças Raras. Ótimo! A agenda está fechada! E agora? – Era a pergunta para uma colega de meu irmão que trabalhava com organização de eventos.
– Bem! Primeiro de tudo, você tem que parar de encaminhar essas comunicações em word. Você tem que usar o formato em PDF. Segundo, você tem que comprar um telefone celular. É impossível você continuar sem um. E, mais importante de tudo, tente ser um pouco mais profissional!
– Profissional?! – Exclamei meio a sorrisos.
– Sim! Você tem que parar de contar a sua história e essas coisas pessoais! Ninguém quer saber disso!
– Desculpe, mas é impossível fazer isso! Eu quero contar a minha história, acho que é justamente isso que as pessoas querem saber. É necessário que outra pessoa, uma pessoa igual a mim, leia o que aconteceu connosco e pense: Poderia ser eu!
– Pode até ser, mas não tenho certeza se é necessário! É muita exposição!
– Além do mais, assim como li no material da Eurordis e em alguns artigos da Universidade de Coimbra, os pais e mães devem se considerar como um “paciente especialista”. Somente nós sabemos realmente o que acontece quando passamos a conviver com o diagnóstico. Ninguém, melhor que eu para saber o que acontece em minha família. Ninguém! Os médicos não conhecem a NF e o cuidado está disperso no sistema de saúde. Somente eu e a minha família sabemos as dificuldades que estamos passando. Eu tenho que contar isso!
Finalmente perdi a minha batalha contra o uso do telefone celular. Eu evitei comprar um telefone até onde eu pude. A conclusão da conversa que estava travando com a pessoa do Marketing que chegou como mais uma ajuda, encerrou com a minha anuência.
– Ok! Farei tudo o que você está dizendo, menos alterar a minha narrativa pessoal. Vou comprar um telefone, usarei o PDF em todas as minhas comunicações e otimizarei o uso das Mídias sociais. E, sinceramente, em relação as Mídias, não entendo muito bem como usar isso ou o porquê, mas o farei da mesma forma.
Como tudo era novo, não perdia muito tempo pensando nos conselhos que me davam, eu os tomava e simplesmente passava a executá-los. Se o conselho fizesse sentido ou quem o dava era um profissional ou uma pessoa que eu confiava, eu simplesmente o tomava como certo e começava a colocar toda a minha energia para o fazer.
As leituras acadêmicas, a experiência no campo social e político, o aprendizado sobre as Mídias sociais e linguagens técnicas de comunicação, tudo isso, aconteceu ao mesmo tempo. E, seguramente, toda essa efervescência de vida impactaram em minha vida pessoal, familiar e fez emergir um novo eu
Finalmente: Uma Associação
A universidade me ajudou muito a entender o campo das doenças raras. Depois do meu entendimento sobre o “paciente especialista”, eu nunca mais senti a obrigação de seguir algum tipo de “regra social” durante os meus encontros com as mais diferentes pessoas. Não me interessava onde ou com quem eu falava, eu era o especialista no assunto que tratava e ninguém poderia me discriminar ou me tratar de alguma maneira fora da boa educação e atenciosamente. Assim, passei a conversar com qualquer interlocutor no mesmo patamar, nenhum pouco a mais ou a menos. Eu estava a mesma altura que qualquer político, agente público, médico, profissional de saúde, enfim, a altura de qualquer um!
– Se eu posso contestar Deus, por que devo ficar quieto perto de alguém?
Isso não significa que eu estava certo, muito pelo contrário, em muitas vezes eu estava pensando algo completamente diferente do meu interlocutor e vivenciei alguns momentos bem embaraçosos. O que eu mais vivamente me lembro, foi a minha participação em um Congresso sobre Biossimilares. O tópico era completamente novo para mim e eu fui ao evento para falar sobre algo que não entendia as drogas biossimilares. Eu me preparei, fiz a minha apresentação no powerpoint e estudei o tema. Nada do meu esforço foi suficiente. Após a minha participação era a vez de um especialista. A sua primeira frase foi:
– Bem, como todos sabemos e pudemos perceber, as drogas Biossimilares ainda é desconhecida da grande maioria das pessoas.
Ai!!! Essa doeu!
Quantas vezes eu participei de reuniões em que enquanto eu falava, percebia a “cara de paisagem” dos outros participantes e, assim que eu terminava, ouvia frase: Bem… Voltando ao assunto… Foram momentos engraçados, mas que me ajudaram bastante.
Ainda mais que eu sempre pensei que, apesar de tudo, eu poderia ajudar qualquer debate uma vez que tinha um outro ponto de vista. Mas, hoje, lembrando desses momentos, não tem como perceber que eu era completamente sem noção. Não deixa de ser momentos engraçados e, confesso, que ainda me acho um tanto descolado das coisas que estão ao meu redor. Mas enfim… como o de costume, voltando ao assunto…
– Institucionalmente, tudo está pronto para a realização do primeiro Dia das Doenças Raras. Meu irmão reservou o auditório de seu trabalho, compramos as passagens para os palestrantes de fora, enviamos os convites, pagamos todos os custos com o apoio da Spire, eu tenho o meu telefone e o apoio das associações está garantido. Todos os papéis de comunicação estão em PDF, também. Excelente! Agora, precisamos somente de chamar as pessoas!
O chamar as pessoas, na verdade, era a coisa mais importante a ser feita. Não sei se eu trabalhei ou aprendi mais quando estava preparando o evento. O que sei é que fiz muito das duas coisas. Eu trabalhava intensamente, com cada vez menos horas de sono, menos momentos com a minha família e menos cuidado a oferecer. Eu trabalhava movido pelo bumbo: Tem que ser a melhor!
Por outro lado, eu também, aprendi muito. Primeiro, eu me surpreendi com a capacidade de influência das Mídias sociais. Por meio delas eu consegui chegar a uma diversidade de pessoas muito grande e consegui todo tipo de apoio e de todos os lugares, principalmente o apoio com a divulgação do evento. Segundo, apesar de sabermos que nossos familiares e amizades próximas podem nos ajudar, quando nos deparamos com algo novo e precisamos de novas respostas, esses laços não conseguem oferecer a ajuda que precisamos porque a realidade compartilhada é muito próxima. Foram as pessoas mais distantes da minha rede que cheguei até os parlamentares, agentes do Poder Executivo e Judiciário.
Eu fiz vários tipos de convites para o evento. E eles eram elaborados de acordo com o público. A indicação da quantidade da população que convive com alguma doença rara era a única constante dessas comunicações. Para pessoas ligadas a academia e políticos, dava-se foco ao teor militante e do movimento social. Para o público em geral e associações, eram utilizadas frases inspiradoras. As Mídias sociais foram o canal para divulgar todas essas comunicações. Contudo, nas instituições públicas eu entregava os convites pessoalmente e solicitava o protocolo institucional. Assim que entregava a carta e conseguia o protocolo eu fotograva e publicava na net. Quando conseguia entregar pessoalmente, era melhor ainda.
– Pessoal! Mais um convite entregue! Vamos nessa! O 1° Dia das Doenças Raras está chegando! – Era a legenda constante das fotos.
Eu utilizava todos os tipos de Mídias disponíveis, Facebook, Blogue, Twitter e emails pessoais, ou qualquer outra coisa que me mandavam. As mensagens tinham somente um objetivo: Sensibilizar as pessoas. Sempre tentava usar expressões motivacionais, contando a minha história, tudo que fosse possível para conseguir me aproximar de quem recebia a mensagem.
Com essa racionalidade conseguimos chegar em diversos lugares, seja na Câmara dos Deputados Federal, Senado, Ministério da Saúde, Universidades, Ministério da Justiça, etc. A minha rede de contatos foi totalmente reorganizada. Pessoas que eram próximas se afastaram e outras que estavam distantes se aproximaram. A minha rede sofreu um grande aumento para as instituições públicas. O trabalho de divulgação fez com que meus antigos colegas de escola e os amigos dos amigos passassem a conhecer a história de minha família e, de repente, eu estava conversando com um pai ou mãe que recebeu a minha mensagem, o estudante ou profissional de saúde que viu um dos papéis de comunicação, o político que queria ajudar de alguma forma, o paciente que não conseguia tratamento, o jornalista que queria entender a situação, enfim, eu estava conversando com toda a gente que tinha algum interesse no campo das doenças raras ou na Neurofibromatose e o evento nem tinha acontecido ainda.
Neste momento, escrevendo essas linhas eu somente penso: Como eu consegui fazer tudo aquilo? Foi muito trabalho, muito esforço e muito tempo despendido para alguma coisa que eu não tinha a menor ideia do que poderia acontecer. E, acho, que foi por fazer as coisas sem pensar muito no futuro que aconteceu tanta transformação em minha vida pessoal, profissional e familiar. A única certeza que movia as minhas ações era o amor que eu sentia pela minha família. Foi o sentimento de amor que me empurrou para essa jornada, assim como foi esse mesmo sentimento que impulsionou todas as pessoas a participarem não somente daquele dia mas também das atividades que promovíamos pela associação. O amor de pai, mãe, filho/a, imão/ã, parente, amizade que moveram e move o que fizemos.
O 1° Dia das Doenças Raras foi um sucesso completo. Houve a participação de mais de 300 pessoas entre amigos, familiares, parentes, políticos, pesquisadores, profissionais da saúde, pacientes e estudantes. Os veículos de comunicação cobriram o evento e houve a sua divulgação no jornal da noite. Eu somente tenho que agradecer todas as pessoas que nos ajudaram, cada pessoa merece a nossa sincera gratidão porque, além de tudo, aquele evento definiu a constituição formal da associação. A primeira direção da associação nasceu deste evento e as ações que se seguiram no futuro foram impactadas pela dinâmica criada naquele sábado de fevereiro de 2011, no Clube Asbac de Brasília, onde foi realizado o 1° Dia das Doenças Raras em Brasília.
Fonte: Relatório de Atividades da Associação AMAVI
Reflexões
O evento proporcionou a formação da diretoria da Associação. Tenho profunda admiração pelas pessoas que começaram a associação junto comigo. Afinal, assim como eu, entraram em um mundo onde apenas uma coisa era compartilhada por todos nós: a experiência de viver com aquilo que chamam de doença rara. A essas pessoas devo o mais profundo sentimento de gratidão. Cada uma conhece as suas motivações pessoais que a levaram para aquela associação. Para mim, eu apenas estava seguindo os meus sentimentos.
Como um pai, não somente no momento do diagnóstico, tem sido difícil aceitar que não importa o quanto de dinheiro ou a quantidade de contatos que eu possa ter, a condição genética está lá e não é possível mudá-la. A minha maior preocupação, portanto, não são os efeitos da doença, mas como a minha criança vai encarar os possíveis sintomas em um ambiente social hostil à diferença.
O meu medo não é com a minha filha porque sei que ela faz o seu melhor para ser feliz, mas como o ambiente condicionado ao trabalho que vivemos pode torná-lo de difícil convivência àqueles que podem estar um pouco a margem da grande maioria. É de todo sabido que a escola é o local onde se começa o treinamento para o mercado de trabalho e quanto mais próximo da idade laboral, mais eficiente é a máquina de fazer profissionais como é a realidade da grande maioria das faculdades que produzem cursos em menos tempo e com mais estudantes. A convivência do presente com o futuro também é uma das contestações de pais/mães. Ao mesmo tempo que ficamos apreensivos, tentando adivinhar um futuro e fazer com que ele seja o melhor para aqueles que amamos, devemos nos preocupar com as situações escolares e necessidades diárias. Atividades que parecem simples para alguns, podem se tornar um tanto complexas. Como um exemplo é o de informar ou não que a nossa criança possui uma condição genética.
Se por um lado essa informação pode ajudar a criança, por outro, pode ser que não seja tão bom. E, particularmente, isso assume uma proporção imensa nas minhas preocupações de escrever sobre o que aconteceu connosco. Eu assumi a decisão de divulgar a nossa história, mas, em nenhum momento eu perguntei para a minha filha se poderia fazer isso. De uma forma ou de outra, eu divulgo parte de sua história. É claro que isso me faz pensar bastante, principalmente, sobre o que ela vai imaginar quando ler essas linhas tortas e, algumas vezes, um tanto confusas. A minha tarefa é conseguir explicar que as linhas que escrevo se referem a processos que não dependem dela, são exteriores a sua vontade e, por isso mesmo, influenciam não somente a sua vida mas a de todos nós.
Independente do que fazemos ou deixamos de fazer, sempre seremos criticados. Seja porque somos gordos demais, magros demais, estúpidos demais ou espertos demais, porque somos muito altos ou muito baixos, temos um pé muito grande ou muito pequeno, usamos determinada roupa e não a outra, combinamos demais ou de menos a meia com a camisa, o cinto com o sapato, enfim, as pessoas criticam somente porque estamos andando. É para isso que não devemos dar importância. Porque a crítica explícita é, no fundo, uma censura a si mesmo. Da pessoa querer ser sempre igual as outras, buscar se comportar como as outras, ter as mesmas posses que as outras, enfim, viver a vida da outra pessoa. Não por acaso, existe o ditado: A grama do vizinho sempre é mais verde. Para a nossa vida pessoal, acredito que o mais importante que conhecer a fundo a doença, é estarmos atentos aos eventos de saúde que podem aparecer e se vão aparecer no presente. É o cuidado com o presente que formata o ambiente do futuro.
Do lado profissional, inevitavelmente, a indústria farmacêutica me influenciou bastante. Poucos meses após o evento da associação, confiante na possibilidade de trabalhar no terceiro setor, eu pedi demissão de meu trabalho. Pensando naquela época… Nossa! Quanta confusão e loucura eu estava vivenciando. Como eu pude sair de meu trabalho? Cortar a minha única fonte de recursos? Como eu disse, de uma maneira estranha, a NF foi emancipatória. Mas voltando para as reflexões, onde eu estava mesmo? A sim! Eu pedi demissão do trabalho. Se no fim de 2010 eu estava devastado e perdido, no fim de 2011, além disso, eu estava desempregado, vivendo com o dinheiro da minha rescisão de trabalho e morando de favor na casa dos pais da Sandra. Pura decadência, foi horrível. Se por um lado eu estava nesta lama, no mesmo período, curiosamente, a Márcia e o Rondy, cujo os contatos ficaram cada vez mais escassos, estavam em uma ótima situação. A Márcia saiu da companhia e fundou sua própria empresa, o Rondy alcançou uma posição melhor em uma empresa concorrente da Spire. Como uma pessoa pode usar outra desta maneira? Como será que a influência na constituição da associação é indicada nos seus currículos? Claro que não foi somente por causa deste trabalho, mas até onde ele impulsionou a carreira deles? Essas eram as minhas questões, porque para a minha situação, não havia qualquer pergunta uma vez que eu vivia a resposta.
Desde que eu comecei a associação, minha vida pessoal e profissional sofreram um grande impacto negativo. Profissionalmente, como eu sempre estava pensando nas atividades da associação (lembre-se: Tem que ser a melhor associação do Brasil!) perdi um monte de oportunidades enquanto eu estava na companhia e a minha produção somente decresceu. Quando “eu pedi as contas” a empresa me ajudou muito, pagando todos os direitos que poderia se isentar e me livrando de algumas multas que ela poderia exigir. A verdade é difícil de ser dita! Depois de tanto trabalho e quase 20 anos de vida laboral, na altura dos meus trinta e poucos anos, com família constituída, eu passei a depender da ajuda de minha mãe. Eu não tinha tempo para a minha família ou para mim. Eu apenas trabalhava duramente imaginando que, um dia, tudo o que foi dito pela Márcia poderia se tornar realidade. Eu recebia várias mensagens de apoio, participava de reuniões em diferentes sítios, militava onde fosse preciso, mas a noite, quando colocava a cabeça no travesseiro, eu não sabia até onde eu poderia ir com a gasolina que estava no carro. Meu sentimento era que cada pessoa estava arrancando um pedaço de minha carne mas ninguém queria saber realmente como as coisas andavam com a minha família e comigo. Eu não posso culpar ninguém porque as escolhas foram minhas. E, no fim, quer dizer, hoje, eu posso até ponderar se foram corretas. Um dos meus mantras para suportar o que eu vivia era que a associação ajudou-me a alcançar o meu sonho de ser presidente de uma organização reconhecida internacionalmente. Mas é claro que o mantra não trazia dinheiro para a nossa casa. As contas continuavam a chegar, a aumentar e Sandra passou a não suportar a menor menção sobre a associação. Foi um período muito difícil para nos mantermos unidos. Eu não sei se eu me dei o direito de enlouquecer uma vez que nenhum maluco se reconhece como tal, mas que eu estava em outro mundo, isso tenho certeza que eu estava.
A Sandra sempre foi muito sensata e o seu tempo é muito diferente do meu. Algumas pessoas dizem que sou acelerado, mas o fato é que, na época, acho que ela conseguia ver algumas coisas que eu não via. Tudo começou a mudar naquele mundo esquisito quando eu fiz um trabalho remunerado para a Spire. O trabalho era ajudar a estruturar uma associação civil em uma cidade remota de um dos estados mais pobres de nosso país. Eu precisava do dinheiro e, na minha cabeça, eu estava ajudando uma organização civil a se organizar. Mas, então, eu tive a oportunidade de compartilhar algumas ideias daquelas pessoas da indústria em seu próprio campo de trabalho.
Eu tive a primeira clarificação do que eu estava fazendo por lá, logo nas primeiras horas de minha chegada naquela cidade que não tinha asfalto, o hospital público tinha péssimo aspeto, mas o prédio que ficava ao lado da entrada principal, mantido pela Spire, onde atendia os “seus” pacientes, contrastava com o resto ao seu redor. Depois de conhecer essas instalações, a equipe profissional e o geneticista, pela insistência do indivíduo que me acompanhava, fui conhecer as pessoas que queriam formar a associação. Ao chegarmos em uma casa simples e muito bem arrumada, uma senhora na casa dos sessenta anos, com olhar aguçado e sorridente me depara:
– Meu filho! Obrigado por tudo! A Spire me levou para aquele evento no início deste ano de 2013, que você fez na Câmara dos Deputados, com todas aquelas pessoas. Eu tenho que dizer para você a verdade, esse pessoal fica me falando que eu tenho que tomar um remédio deles, mas eu não tomava porque eu achava que não era necessário. Mas quando eu vi você lá, com toda aquela gente, eu percebi que tenho que tomar esse remédio porque esse pessoal é realmente sério.
Ah?! Como?! Por mais que nunca tenha falado sobre remédio ou vinculado qualquer evento da associação com remédios ou drogas órfãs, aquela senhora viu sentido entre a medicação e as atividades que realizávamos? Além da imagem dos desenhos em que aparecemos com orelhas de burro surgir em minha mente, foi nauseante perceber que, literalmente, eu contribui para outros atingirem resultados que eu não concordava.
Para fechar essa minha viagem ao remoto município, a cereja do bolo foi colocada na viagem de volta em que, parte dela, foi realizada de carro. Nele estavam algumas pessoas da empresa e um médico geneticista. Era um carro grande e eu estava no banco dobrável que fica no espaço da bagagem. Foi impressionante perceber a relação que eles faziam entre o atingimento de metas e prêmios, com a quantidade de pessoas que poderiam encontrar na cidade onde a associação iria começar. Cada pessoa era quantificada no preço do remédio e o geneticista transcendia o aconselhamento genético para o rastreamento genético. Eram feitas contas e elucubrações sobre a quantidade de possíveis doentes em cada núcleo familiar. Esse não é o único exemplo das situações que eu passei mas, com certeza, foi decisivo para eu tentar retomar o rumo de minha vida.
Ao reler este texto consigo perceber a recorrente referência as leituras acadêmicas que realizo. Eu tenho claro que ao assumir para a realidade brasileira o que eu li da Europa, beneficiei aqueles que já eram os mais beneficiados de todos, a Indústria Farmacêutica. O pior é que, em determinada altura, algumas pessoas do campo acadêmico aproximaram de mim. Como eles buscavam um espaço no campo das doenças raras e também assumiam o discurso europeu, não tive qualquer anteparo e o que eu lia era a verdade. Não percebi que mesmo sendo o paciente especialista e nunca promover qualquer evento alinhado com as drogas órfãs ou que, de alguma forma, fizesse menção a remédios, a medicação sempre teve o seu lugar.
Se a necessidade do tratamento medicamentoso é real para algumas pessoas, não há dúvidas que a sua regulamentação é uma via justa. Mas fazer do remédio a solução para todas “doenças raras” é equivocado porque deixa as demandas diárias, vividas nos relacionamentos interpessoais de lado.
O 1° Congresso Ibero-americano de Doenças Raras – Um olhar social para o Paciente (ICDR) foi realizado em Brasília, em setembro de 2013. Esse evento foi uma tentativa de colocar mais pessoas do campo social que do médico na temática sobre as doenças raras. Não faltou assunto e as intervenções para longe do medicamento foram contundentes para a necessidade de priorizarmos temas no campo social.
O ICDR, para mim, foi a minha despedida da Associação. Pensava em realizá-lo desde a primeira reunião que fiz em minha casa, em 2010. Somente quase quatro anos após aquela reunião, e com um sentimento de libertação, que foi possível concretizar a sua execução. Já como um estudante da Universidade de Coimbra, esse Congresso foi uma união entre a academia e o movimento social. Pessoalmente, demonstrava que eu estava mudando o meu campo de atuação para a pesquisa acadêmica. O evento foi muito gratificante. Além de todo o apoio que conseguimos, tivemos uma participação de mais de 500 pessoas e, pela primeira vez, conseguimos colocar em uma mesma mesa os representantes das Indústrias Farmacêuticas e do Ministério da Saúde para falarem sobre as “doenças raras”. Foi um momento inesquecível. Seguramente, foi o evento mais importante que já realizei em toda a minha vida.[2] E mesmo a pensar em mudar o nome da Associação, porque estava de saída da diretoria, um querido amigo lembrou que a organização já não era minha. Ela tinha alcançado outros lugares e feito sentido para outras pessoas. Porque ela não era mais a minha ou a associação com o nome da minha filha. Na verdade ela poderia até ter o nome de minha filha, mas ela não tinha o seu significado pois, no fundo, ele passou a ser a Vitória de várias Marias!. Ao lembrar desse diálogo o meu coração somente se enche de amor e gratidão por tantas boas pessoas passarem pelo meu caminho.
1º Congresso Ibero-americano de Doenças Raras
Fonte: Página da associação AMAVI.
A vivência que consegui experimentar a frente da Associação, foi muito profunda em todas as áreas de minha vida. Os bons momentos superam qualquer adversidade ou mals momentos. Mas esses eram constantes, aborrecidos e, particularmente, centrados no seio das próprias associações. Particularmente, lidar com uma associação de São Paulo e a sua presidente foi uma tarefa dificílima. Na verdade, aprendemos que São Paulo vive o seu próprio ambiente de associações.
Apesar da tristeza de perceber que as pessoas agem em benefícios mesquinhos, não tenho qualquer emoção por algumas pessoas envolvidas com Associações, mesmo que elas façam da instituição um meio para emplacar os seus políticos. Elas fazem o que acham que devem fazer e pronto. O problema está nas pessoas do Governo que dão mais importância ao que ouvem de seus “cabos eleitorais” de associações, do que aquilo que é visto e pode ser confirmado com rápidas pesquisas. Cada um fala o que quer, mas é do governo a responsabilidade de diferenciar entre a fantasia e a realidade.
O trabalho associativo também me fez perder muito do idealismo que eu tinha ao iniciar a minha militância. As associações estão literalmente jogadas a própria sorte. Se não é o mercado que coopta suas ações é o Estado que as utiliza como instrumento de politização e a Academia que as encobre para os seus projetos e dizer para elas o que deve ser feito. As pessoas que estão na associação fazem o melhor que podem com as ferramentas que conseguem encontrar. Qualquer ganho que pode existir para os pacientes de doenças raras e para a saúde no geral é resultado direto das ações das associações e do movimento social. Mas, hoje, para o meu caso, vejo somente uma chance para retomar a minha trajetória, buscar o meu espaço acadêmico. Mesmo sem saber como será a nossa vida após o encerramento da minha pesquisa doutoral, não consigo me ver usando terno e trabalhando dentro de uma empresa novamente. Seria como eu tomar uma cápsula do tempo e viajar para um mundo muito, muito distante. Pior é eu tentar voltar para o trabalho associativo. Ou eu aceito voltar a conviver com a vergonha por não conseguir pagar as despesas mensais de minha casa ou aceito a ser o peão do jogo de xadrez que busca conquistar o grande mercado de consumidores de medicação no Brasil.
Finalmente, reconheço que a Neurofibromatose me impulsionou para um mundo novo. Não é um mundo totalmente obscuro como outrora eu pensava, mas um mundo onde temos as nossas próprias preocupações, problemas e, também, as suas resoluções. Percebo que o diagnóstico foi decisivo na minha mudança de vida. Se fosse possível escolher, eu não mudaria nada na questão biológica de Alice. Não tem como mudar o seu cabelo louro e encarolado que é lindo, a sua constituição física que a faz forte e apta para o esporte que tanto gosta e, muito menos, os genes que a fazem simplesmente ser a garota viva e sagaz que conquista toda a gente. Se fosse possível a escolha, eu optaria por receber o diagnóstico de algum “Papa”. Eu não lembro de ouvir qualquer coisa em específico a não ser para eu não tentar conhecer a NF. Mas o seu olhar e a sua maneira de nos receber, de entender o meu choro e falar da minha criança, é o que eu desejo para qualquer um que tenha que ouvir: A sua criança tem Neurofibromatose.
Sobrevivendo no campo das “Doenças Raras”:
- Não se engane! Todas as boas maneiras, encontros, congressos e tudo que os representantes das indústrias farmacêuticas proporcionam para você, no fundo, possui um único objetivo: Lucro. Para eles, claro!
- Não se engane! Alguns agentes do governo estão atados com o mercado e o pensamento capitalista: Explorar o seu tempo de trabalho.
- Entenda rápido: muitas vezes o Estado e o Mercado possuem os mesmos interesses;
- Entenda rápido: especialmente no Brasil mas, também, em alguns países do “Sul Global”, vivemos um processo de colonização, novamente. No sul global, toda a gente simplesmente cumpre a agenda que outros criaram. Como no caso do Brasil, em que as indústrias farmacêuticas e de biotecnologia apenas cumprem as metas e os objetivos criados pelas suas matrizes na Europa do Norte e nos EUA;
- Mantenha a cabeça erguida! Se você pretende trabalhar no terceiro setor, deixa claro para toda a gente a sua intenção. Você deve ser pago pelo seu serviço. Seja transparente com toda a gente e em qualquer lugar;
- Mantenha a cabeça erguida! Ninguém quer sinceramente saber quais os problemas que você passa. Todos estão preocupados com os seus próprios problemas. Por isso, busque contatos, compartilhe suas ações e apoie outros a atingirem objetivos semelhantes aos teus;
- Acredite em sua rede de contatos. Eles vão lhe lançar a muitos e diferentes “mundos”. Também, vão te surpreender de duas formas: para o bem ou para o mal;
- Cuide-se! Apenas inicie uma associação civil quando você realmente entender a sua motivação e quando não for possível apoiar alguma outra;
- Não se preocupe, você faz um bom trabalho! Trabalhar em uma associação é sempre bom, especialmente para as outras pessoas. É uma oportunidade de ajudar de maneira direta quem precisa. Mas você tem que estar preparado para saber o que lhe será exigido em troca;
- Siga o teu coração! Se você pensa em iniciar alguma associação, principalmente, no campo das condições genéticas é porque alguém que ama, incluindo você, tem alguma condição de saúde. O amor é o ponto central de suas preocupações, então deixe que ele guie os seus passos;
- Lembre-se, você não é doente! É difícil pensar que uma condição genética é uma doença. A doença pode ser curada. Sua criança e/ou você, quando olha no espelho, é uma doença ou um indivíduo?
- Não há qualquer monstro! Tenha a certeza que encontrará gente de todos os tipos. Toda a gente está fazendo o seu melhor para atingir aquilo que acredita. Portanto, faça o mesmo e, quando possível, faça amizades;
- Seja feliz… e CONSCIENTE!
[1] Eu persegui essa definição ao rigor. Fazia questão de fazer esta diferença em todas as comunicações e quando mencionava a organização sempre utilizava Associação aLLice. Nunca mencionava o nome sozinho. A época de deixar a associação, somente não exigi a alteração do nome porque um querido amigo mostrou-me a importância de seu significado para outras pessoas.
[2] Todas as informações sobre o evento podem ser encontradas em http://www.ces.uc.pt/publicacoes/cescontexto/index.php?id=11610 ou http://congressoiberoamericanodedrs.blogspot.co.uk/
Depoimento de Élcio Neves
Chamo-me Élcio Neves, resido em Vitória, capital do Espírito Santo e possuo seis irmãos, todos nós diagnosticados com uma doença genética rara denominada de Neurofibromatose (NF), a qual atinge uma a cada 3.000 três mil pessoas nascidas com vida.
Ao buscarmos informações e atendimentos nos mais variados órgãos, de saúde, educação e assistência social, tanto a nível estadual quanto municipal, não obtivemos a atenção devida. Nem tampouco nos foram repassadas informações satisfatórias sobre nossa condição.
Muitas vezes, esses contatos trouxeram mais angústias do que compreensão acerca do modo pelo qual a doença poderia afetar a nossa vida e a de nossos familiares.
Diante dessa triste realidade, começamos então incessantemente a buscar informações em todos os meios, mas principalmente em sites de buscas na internet. No mundo virtual apareceram informações desencontradas e segmentadas sobre a doença, dando-se ênfase nos casos mais graves, sem muita compatibilidade, portanto, com os nossos objetivos.
Olhava para minha família ao passo que via casos semelhante em algumas situações e não possuía meios de obter maiores informações sobre a doença e como poder melhorar as condições de vida dessas pessoas que se encontravam na mesma situação. Enfim, toda sorte de desinformação possível.
Um fato me revoltou bastante. Em agosto de 2014, quando me encontrava em estágio avançado da doença, quatro neurocirurgiões diferentes, todos atuando pelo Sistema Único de Saúde – SUS, se negaram veementemente a realizar os necessários procedimentos cirúrgicos para a descompressão de alguns tumores que tenho na medula.
Diante desse quadro de debilitação física e psíquica, coloquei-me a imaginar como seria a minha vida dali em diante; meus sonhos; desejos; medos; angústias; sobrevivência; etc.
Detinha o conhecimento adequado para concluir que não poderia, pois, fruir do meu tempo de vida com minha família, exercer regularmente minha atividade laboral, minhas atividades culturais, de lazer e esportes, a religiosidade dentre tantas outras atividades, que em razão do meu quadro se faziam impertinentes, me fez pensar bastante sobre o que é vida e, como realmente ela é, como diria Gonzaguinha, “bonita, é bonita, é bonita”.
Para um cidadão com NF, é usual a vida com acompanhamento médico periódico, a realização de alguns exames de rotinas e algumas cirurgias, bem como a convivência com os olhares furtivos de nossa sociedade, ainda preconceituosa em nossas diversidades.
O mais grave, no entanto, foi perceber a falta de informação da comunidade acadêmica/científica das Faculdades de Medicina. Os profissionais que acompanhavam a minha vida não ajudavam em praticamente nada!
Felizmente, acabei, após incansáveis buscas, encontrando o Dr. Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues, mais conhecido como Dr.Lor, do Hospital das Clínicas da UFMG e um dos idealizadores do Centro de Referência em Neurofibromatose, localizado no referido Hospital.
Com muito esforço conseguimos agendar uma consulta e arcar com os custos de viagem e hospedagem na cidade de Belo Horizonte, e, após a abençoada consulta, realizada de forma gratuita (com recursos públicos), fomos agraciados com uma outra visão da doença.
A partir de então, ficou claro que:
* As manchinhas cor de café-com-leite, que possuímos desde o nascimento são uma das características básicas da NF. O número e local das manchas podem caracterizar o tipo da NF.
* A doença possui causa genética e, no meu caso, foi herdada do meu pai. Qualquer casal, independente se seus pares possuírem ou não a NF, pode conceber um filho (a) com NF. Relativamente à minha situação, o meu pai é o acometido primário.
* A manifestação da doença é vasta, pode ocasionar o aumento dos órgãos e ossos até pequenas erupções na pele, chamadas neurofibromas.
* Os sintomas podem aparecer em fases distintas da vida: ao final da infância; na puberdade; na gravidez, etc. Enfim, pelo que se sabe, nas fases em que há maior produção hormonal é mais provável o aparecimento da doença.
* A doença não tem tratamento específico e a melhor forma de se conviver com ela é tendo paciência e gerenciamento. Primeiro, porque não adianta ficar imaginando o que vai acontecer. Segundo, porque sempre temos de fazer acompanhamento médicos.
* Ela exige acompanhamento multidisciplinar: fonoaudiólogo, psicólogo, neurologista, educadores, ortopedista e às vezes cirurgião plástico, além de outros profissionais especialmente designados a depender das manifestações específicas em cada paciente.
Com o atendimento realizado e os procedimentos que se seguiram no Centro de Referência em Neurofibromatose, bem como após ter ciência das informações repassadas, pudemos então buscar os profissionais corretos para nos auxiliar a obtenção de uma vida mais digna e condizente com nossas expectativas.
Minha vida, atualmente, portanto, é igual a qualquer outro cidadão, com as ressalvas acima expostas, e aguardo, assim como meus irmãos, a produção e comercialização de medicamentos para amenizar as manifestações e reações da NF, haja vista que vários desses medicamentos já estão em fase de desenvolvimento e testes.
Passei, dede então, a ser um defensor da causa, buscando o reconhecimento de direitos das pessoas com Neurofibromatoses em especial o exato diagnóstico, a correta divulgação de informações e o tratamento multidisciplinar adequado.
Muitas conquistas já foram e estão sendo concretizadas, mas a luta é constante e árdua. Num país em que os direitos humanos são diariamente aviltados, as minorias como a nossa sofrem muito para obter o devido respeito da sociedade em geral e do Estado.
No entanto, graças ao esforço e dedicação de muitas pessoas envolvidas com o problema, em de fevereiro e março de 2018 realizamos mais uma semana dedicada à atenção às Doenças Raras (nas quais se inclui a NF) no Estado do Espírito Santo.
Participaram das palestras e eventos realizados, as pessoas com NF e demais espécies de doenças raras; familiares; representantes do Poder Público (executivo e legislativo), de universidades, estudantes, assim como também muitas outras pessoas interessadas.
Em novembro de 2018 foi realizado o Primeiro Congresso Mundial em Neurofibromatoses na cidade de Paris, França.
Com relação à Associação Mineira de Apoio às Pessoas com Neurofibromatoses (AMANF), da qual sou participante, a mesma foi constituída no ano de 2002, a partir da iniciativa da família de André Bueno Belo(o primeiro presidente da entidade) e de outras famílias que possuíam membros com Neurofibromatoses (NF), residentes em Belo Horizonte e outras cidades de Minas Gerais.
Os participantes são pessoas com NF, seus familiares, amigos e profissionais da área de saúde.
A AMANF, como outras associações de apoio às pessoas com NF existentes no Brasil, pretende acolher as pessoas com NF de todas as formas possíveis, estimulando o conhecimento sobre a doença, discutindo ideias, trocando relatos e experiências, além de incentivar o atendimento e pesquisas em saúde sobre as Neurofibromatoses.
A mesma conta com apoio de diversos associados com formação profissional na área de saúde, como os médicos Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues e Nilton Alves de Rezende, pais de pessoas com NF1, que nos ajudam a produzir material didático e científico com informações corretas sobre os tipos de Neurofibromatoses.
A partir de março de 2005, as pessoas com NF, associados ou não à AMANF, passaram a contar com o Centro de Referência em Neurofibromatose de Minas Gerais, onde recebem atendimento médico público pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
As reuniões da entidade são abertas ao público e realizadas no último sábado de cada mês, às 16:00 horas, no seguinte endereço: FACULDADE DE MEDICINA DA UFMG – Avenida Alfredo Balena, 190 – Belo Horizonte – MG.
A AMANF está ajudando a divulgar nossas intenções e a constituir a ACANFES – Associação Capixaba de Apoio às Pessoas com Neurofibromatoses – ACANFES, que será constituída como uma associação sem fins econômicos que terá como missão realizar ações de saúde, assistência social e educação, voltadas às pessoas com NF no Estado do Espírito Santo.
Quem quiser contribuir mais efetivamente com a causa poderá fazer parte dos quadros de associados e participar da tomada de decisões, inclusive, caso haja disponibilidade, poderá atuar em um dos órgãos diretivos da entidade.
Para mais informações, contate-nos, através do Prof. Élcio Neves, por um destes meios: 1) Telefone – (+55) 27 3325-9931
2) E-mail – elcioneves16021967@hotmail.com
Caso haja a necessidade de: I) realizar o diagnóstico com segurança com pessoas experientes em NF; ii) avaliar as complicações existentes e aquelas que podem ainda ocorrer; iii) identificar e buscar somente os tratamentos realmente necessários; iv) reavaliar anualmente a existência de sintomas ou sinais novos, telefonar para 31 3307 9560 (ligar de terça a sexta de 7 às 10 horas) ou nos casos de alguma urgência enviar e-mail para rodrigues.loc@gmail.com .
Todo o apoio fraternalmente dado é sempre muito bem aceito.
Elcio Neves