Gliomas nas pessoas com NF1

Texto elaborado pelos médicos Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues, Nilton Alves de Rezende e Vanessa Waisberg – atualizado em dezembro de 2017

Informações gerais importantes

Os gliomas são um tipo de tumor do sistema nervoso central e são os tumores mais comuns nas pessoas com Neurofibromatose do Tipo 1 (NF1).

Os gliomas (também conhecidos como “astrocitomas”) acontecem em cerca de 20% das pessoas com NF1.

Cerca de 70% dos gliomas nas pessoas com NF1 acontecem nas vias ópticas e 30%% em outras regiões do sistema nervoso central.

Os gliomas fora das vias ópticas acontecem no tronco cerebral e na fossa posterior (67%), no cérebro (28%) e mais raramente na medula (5%) (ver no final deste texto algumas informações sobre estes gliomas fora das vias ópticas).

Sabe-se também que os gliomas em geral têm uma evolução mais benigna nas pessoas com NF1 do que nas pessoas sem NF1, mesmo quando se tornam malignos, o que é uma situação muito rara.

Gliomas nas vias ópticas (GVO)

Cerca de 15 em cada 100 pessoas com NF1 apresentam gliomas que são localizados nos nervos ópticos ou em partes do cérebro relacionadas com a visão, e por isso são chamados de Gliomas das Vias Ópticas (chamaremos de GVO a partir deste momento).

Os GVO nas pessoas COM NF1 se comportam de forma radicalmente diferente dos GVO encontrados nas pessoas SEM NF1. Como a NF1 é uma doença rara, é comum que vários médicos desconheçam esta diferença. Este desconhecimento faz com que muitas pessoas com NF1 e GVO sejam submetidas a tratamentos totalmente desnecessários (quimioterapia, radioterapia ou cirurgia).

Os GVO são frequentes nas pessoas com NF1 e quando confirmados na ressonância magnética do encéfalo (cérebro), constituem um dos sete critérios para o diagnóstico de NF1 (ver neste site a página especial sobre como fazer o diagnóstico da NF1).

Uma parte dos GVO na NF1 é descoberta por acaso quando se realiza uma ressonância magnética do cérebro por algum outro motivo, porque apenas cerca da metade das pessoas com NF1 e GVO apresenta algum sintoma (ver abaixo os sintomas). Muitas pessoas com NF1 e GVO nunca apresentam sintomas e nem todos que apresentam sintomas precisam de tratamento (ver adiante).

A maioria dos GVO geralmente é diagnosticada entre os 3 e os 7 anos de idade nas pessoas com NF1. Há, inclusive, uma hipótese de que os GVO sejam congênitos, ou seja, eles estariam presentes desde antes do nascimento e se manifestariam nos primeiros anos da infância.

Um GVO que permaneça estável por 3 anos muito provavelmente não se tornará sintomático. Estabilidade do GVO maior que 5 anos indica um bom prognóstico.

Na maioria das vezes, a condição visual encontrada no momento do diagnóstico do GVO nas pessoas com NF1 permanece estável a partir do diagnóstico. Por exemplo, se a visão está normal quando é feito o diagnóstico do GVO, a tendência é de que a visão permaneça normal nos anos seguintes.

Os GVO nas pessoas com NF1 geralmente estabilizam a partir dos 7-8 anos de idade e praticamente se tornam estáveis a partir dos 18 anos, com alguns casos, inclusive, documentados de regressão espontânea de GVO sem qualquer tipo de tratamento.

Até agora não se comprovou uma relação entre o tamanho do GVO medido na ressonância magnética do cérebro e o estado da visão nas pessoas com NF1. A redução da visão encontrada em algumas pessoas com NF1 e GVO parece ocorrer por alterações próprias da retina e que são independentes do tamanho do GVO.

Os GVO nas crianças com NF1 raramente são causa de morte, embora os GVO possam provocar redução ou perda da visão, o que se constitui numa complicação importante para a qualidade de vida das pessoas com NF1, interferindo negativamente nas suas relações sociais, desempenho escolar, atividades profissionais e cotidianas e autonomia pessoal.

 

Diagnóstico dos GVO

O diagnóstico dos GVO é suspeitado a partir do exame clínico e oftalmológico e confirmado pela ressonância magnética do encéfalo (cérebro).

Vários sintomas e sinais podem estar relacionados com a presença de GVO nas pessoas com NF1. Alguns deles são encontrados no exame oftalmológico:

  • Redução da acuidade visual de um ou de ambos os olhos;
  • Redução da visão para cores;
  • Estrabismo (convergência ou divergência do ponto focal de um dos olhos);
  • Nistagmo (movimentos regulares e involuntários dos olhos);
  • Palidez do disco óptico;
  • Edema (inchaço) do nervo óptico;
  • Defeitos na resposta das pupilas à luz.

É preciso lembrar que as dificuldades cognitivas das crianças com NF1 podem diminuir a precisão da avaliação oftalmológica, que deve ser repetida em dois meses até que se tenha um resultado confiável.

Outros sintomas são percebidos no exame clínico:

  • Cerca de 3% de crianças com NF1 e GVO apresentam “Puberdade precoce”, que é o aparecimento de sinais da puberdade em meninas antes dos 8 anos e nos meninos antes dos 9 anos. Nestes casos encontramos aumento de hormônios hipotalâmicos (especialmente FSH, LH e algumas vezes GH);
  • Em casos raros pode haver crescimento do GVO com a compressão de outras estruturas cerebrais, com manifestações neurológicas (convulsões, hidrocefalia, por exemplo);
  • Em casos muito raros pode haver a transformação maligna do GVO, com manifestações neurológicas mais graves;
  • Em casos raríssimos pode haver aumento do volume do tumor dentro da cavidade da órbita ocular, empurrando o olho para diante, o que é chamado de proptose.

Características anatômicas dos GVO

Os gliomas são tumores que se originam de um tipo de célula, chamadas “células gliais”, que junto com os neurônios fazem parte da estrutura normal do cérebro. O crescimento aumentado destas células forma tumores, geralmente benignos, que no estudo anatomopatológico são denominados “astrocitomas pilocíticos”.

Ao GVO são classificados como neoplasias de baixo grau, ou seja, tumores de baixo crescimento e baixa agressividade (pouca tendência à invasão de outros tecidos e pouca probabilidade de metástases).

Os GVO podem surgir na infância em qualquer parte do sistema nervoso, especialmente nas vias ópticas (ver desenho), ou seja:

  • Nos nervos ópticos (em um deles ou em ambos) (Figura A1)
  • No quiasma óptico (figura B2)
  • Nos tratos ópticos
  • Nas radiações ópticas

Figura 2 – Ressonância magnética do encéfalo mostrando GVO. No Nervo Óptico (A1), no Quiasma Óptico (B2), no Trato Óptico (C3) e no Mesencéfalo e Tálamo (D4).

Além disso, os GVO podem envolver outras áreas cerebrais, como o hipotálamo, com repercussão sobre as funções neurais e endócrinas.

As tortuosidades do nervo óptico são comuns nas crianças com NF1, mas não são a mesma coisa que GVO. As crianças com NF1 e tortuosidades do nervo óptico parecem ter mais chance de desenvolver GVO, mas não apresentam maior risco de redução da visão.

 

Classificação da gravidade dos GVO

A gravidade de um GVO numa criança com NF1 depende de vários fatores que podem variar com o tempo, mas o mais importante deles, em geral, é a acuidade visual medida de forma quantitativa no exame oftalmológico:

  • O estado da visão (visão normal, reduzida ou perda da visão);
  • Complicações neurológicas (compressões, convulsões)
  • Puberdade precoce (embora seja uma complicação dos GVO, a puberdade precoce não é critério suficiente para indicar a quimioterapia isoladamente);
  • Transformação maligna (raríssima)

Quanto maior o número de fatores de gravidade, maior a possibilidade da necessidade de tratamento (ver adiante).

Critérios prognósticos dos GVO na NF1

Alguns critérios podem ser utilizados para avaliarmos o prognóstico de um GVO numa criança com NF1, ou seja, quais as chances de um GVO apresentar complicações importantes como a perda da visão.

  • Visão – quanto mais estável for a acuidade visual em exames oftalmológicos seriados, melhor o prognóstico; somente 11% das pessoas com NF1 e GVO apresentam progressão da doença depois de um período de estabilidade;
  • Localização do GVO – tumores restritos ao nervo óptico apresentam evolução mais benigna, com menor chance de perda da visão do que aqueles localizados nos tratos ópticos, radiações ópticas e no quiasma óptico;
  • Sexo – as meninas com NF1 e GVO parecem necessitar mais de tratamentos do que os meninos, embora ambos os sexos apresentem a mesma incidência de GVO na NF1;
  • Idade – há dúvidas se crianças mais novas com NF1 e GVO apresentam maior risco de perda da visão;

A avaliação destes fatores deve ser feita por oftalmologista com experiência em NF1 e GVO para que o acompanhamento clínico seja adequado.

Acompanhamento clínico dos GVO na NF1

O principal objetivo do acompanhamento clínico dos GVO na NF1 é saber se em algum momento será necessário algum tipo de tratamento.

A decisão de tratar ou não um GVO na NF1 é sempre muito difícil, por causa do comportamento imprevisível dos GVO e do resultado também imprevisível do tratamento disponível atualmente (o tratamento mais empregado é a quimioterapia (carboplatina – ver abaixo), embora rarissimamente a cirurgia seja necessária em casos excepcionais (proptose grave ou compressão de estruturas vitais), mas não se indica a radioterapia.

Em nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais temos adotado um sistema de avaliações periódicas de pessoas com NF1 e GVO que apresentamos abaixo (ver aqui em inglês: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2015000600531&lng=en&nrm=iso&tlng=en ).

  • Todos devem realizar um exame oftalmológico
De 0 a 12 anos de idade Anualmente
De 12 aos 18 anos de idade A cada dois anos
Acima de 18 anos Somente se houver algum sintoma
  • Nesta avaliação oftalmológica devem ser medidos:
Acuidade visual Campos visuais Visão para cores Reflexos pupilares
Exame pálpebras Mobilidade ocular Íris Fundo de olho

Se houver modificação em qualquer um destes aspectos em relação ao exame anterior realizar a ressonância magnética do encéfalo.

  • Na avaliação clínica verificar se há algum dos sintomas abaixo:
Redução da visão Proptose Puberdade precoce
Neurofibroma plexiforme da órbita Nistagmo

Se houver modificação em algum destes aspectos em relação ao exame anterior, realizar a ressonância magnética do encéfalo.

  • Avaliar o resultado da avaliação clínica e oftalmológica e da ressonância magnética (com contraste e sequencias em T2-balanceado) de acordo com o quadro abaixo:
Ressonância Visão Conduta
GVO Estável Estável Reavaliar em um ano
GVO Estável Redução (maior do que 20/30 ver figura) Considerar tratamento
Aumento do GVO Estável Reavaliar em 3 meses
Aumento do GVO Redução (maior do que 20/30) Tratar (ver abaixo)

Tabela de Snellen para acuidade visual. Quanto menor a letra visualizada com nitidez, melhor a acuidade visual.

No entanto, um artigo científico recente (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28806346 ) indica que devemos realizar avaliações periódicas de forma um pouco diferente (ver abaixo). Estamos discutindo esta sugestão e podemos mudar nossa conduta se nos convencermos de sua utilidade.


 

Tabela 1 de Blank e colaboradores, 2017 – para todas as pessoas com NF1 com ou sem GVO

Avaliação Exame Frequência
NF1 sem GVO Oftalmológico Anualmente até 8 anos de idade e depois a cada dois anos até os 18 anos
NF1 com GVO Oftalmológico A cada 3 meses no primeiro ano

A cada 6 meses dos 2 aos 8 anos

Anualmente dos 8 aos 18 anos se estável

Ressonância magnética A cada 3 meses no primeiro ano

A cada 6 meses no segundo ano

Anualmente dos 3-5 anos

Menos frequentemente de acordo com a avaliação clínica até os 18 anos

Este estudo acima também recomenda a utilização, se possível, de exames complementares que poderiam indicar a chance de progressão ou não do GVO. Estes exames são apresentados na Tabela 2 do artigo de Blank e colaboradores, 2017 (abaixo).


 

Tabela 2 de Blank e colaboradores, 2017.

Exame complementar Vantagens Desvantagens
Potencial visual evocado Capaz de identificar GVO Não diferencia GVO sintomático de assintomático nem o resultado do tratamento
Tomografia de coerência óptica Identifica a perda de visão simultânea ao GVO Necessita validação adicional (ver abaixo a opinião da Dra. Vanessa Waisberg)
Imagem com difusor de tensão Identifica a perda de visão simultânea ao GVO Limitação técnica no nervo e no quiasma
Ressonância magnética volumétrica Parece relacionar aumento do volume com redução da visão Limitada à porção anterior e necessita de validação

Estamos discutindo a aplicabilidade destes exames em nosso meio, especialmente no Sistema Único de Saúde.

Opinião da Dra. Vanessa Waisberg: Sobre o uso da Tomografia de Coerência Óptica (TCO) para controle dos GVO a experiência da Dra. Vanessa Waisberg tem mostrado que o exame em pessoas colaborativas é bem reprodutível, ou seja, é confiável e útil. Por outro lado, nos casos de crianças muito pequenas, ou pouco colaborativas, a realização do exame será difícil e pouco reprodutível. Para realizar o exame é preciso manter a fixação por alguns segundos em um ponto descentrado.  Assim, movimentos inesperados ou fixação no ponto errado podem alterar os resultados. A TCO portátil ainda não está disponível na prática, ou seja, nos casos desafiadores de crianças pequenas e pouco colaborativas, a TCO acaba não resolvendo. De qualquer forma, quando disponível, é válido realizar este exame no seguimento dos pacientes, pois a redução da camada de fibras nervosas junto com outros achados (redução da visão, crescimento do tumor, etc.) podem esclarecer a necessidade ou não de tratamento. Além disso, diante de uma pessoa com redução da espessura das camadas de fibras sem outros sintomas, devemos realizar um acompanhamento mais frequente.

Tratamentos dos GVO

Como os GVO raramente ameaçam a vida, o objetivo fundamental do tratamento é reduzir o risco de deficiência visual permanente e clinicamente relevante.

A decisão de tratar uma determinada criança com NF1 e GVO é sempre difícil, porque não sabemos qual tumor irá causar déficit visual e qual responderá ao tratamento.

Ainda não há um consenso internacional que diga exatamente quais crianças com NF1 e GVO precisam ser tratadas.

Cada caso deve ser considerado individualmente, por exemplo, a redução da visão num olho com GVO pode ser suficiente para indicar o tratamento se o outro olho já está deficiente, por exemplo.

Quando o tratamento se torna finalmente necessário, especialistas em oncologia pediátrica com experiência em NF1 e GVO devem ser procurados.

A carboplatina (e outros medicamentos associados) é utilizada, embora os resultados não sejam muito bons. Por exemplo, um estudo (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3367846/ ) com 115 crianças com NF1 e GVO mostrou o seguinte resultado ao final do tratamento quimioterápico:

Melhora da visão

32%

Estabilidade da visão

40%

Piora da visão

28%

Alguns achados clínicos não justificam a quimioterapia quando encontrados isoladamente, como Puberdade precoce, Aumento da secreção de hormônio do crescimento e Proptose.

Praticamente NUNCA recomendamos a radioterapia para tratamento dos GVO nas pessoas com NF1, entre outros motivos, pela possibilidade de desencadear o aparecimento de tumores malignos da bainha do nervo periférico (ver AQUI em inglês ).

Mais informações técnicas e detalhadas sobre o estudo de Blank e colaboradores de 2017 (em inglês), inclusive com um interessante quadro sobre quando tratar, quando considerar o tratamento, quando aumentar a vigilância e quando manter apenas a vigilância normal, podem ser encontradas AQUI em inglês .

Gliomas fora das vias ópticas

Ao gliomas fora das vias ópticas nas pessoas com NF1 têm sido considerados de evolução benigna e semelhante aos gliomas nas vias ópticas, com a mesma orientação terapêutica dada aos GVO.

Pelo menos em crianças com NF1, esta ainda parece ser a conduta mais adequada.

No entanto, um estudo recente (ver AQUI em inglês ) mostrou que num grupo pequeno de pacientes, os astrocitomas localizados no tronco cerebral de pessoas adultas com NF1 podem apresentar uma gravidade maior.

Não sabemos ainda se o mesmo resultado se aplica a astrocitomas localizados em outras partes do sistema nervoso central (cérebro e medula), mas esta nova informação merece nossa atenção e deve ser aprofundada em novos estudos.