Opinião pessoal
Conhecemos cada vez melhor as histórias de um certo bilionário, admirado pelos seus seguidores como o Leonardo Da Vinci contemporâneo, que é fanático defensor da competição e meritocracia. Aparentemente, ele é seguidor de um movimento ideológico que considera a empatia um comportamento prejudicial à evolução humana. Mas, apesar de isolado no pódio de campeão dos ultra bilionários, ele não está sozinho na sua ideologia.
Essa ideia de que a competição é benéfica para a humanidade ultrapassa as fronteiras da extrema direita e é compartilhada por muitas pessoas, mesmo algumas que se consideram socialistas. Muitas delas adotam o argumento central do livro de Richard Dawkins “O gene egoísta” (1976), que se tornou um clássico de divulgação científica, no qual ele tenta demonstrar a natureza individualista da seleção natural, tornando-se uma espécie de explicação biológica para a competição, que foi aproveitada pelo darwinismo social para justificar a desigualdade em nossa sociedade capitalista.
Em seu último livro “O livro genético dos mortos – um devaneio darwiniano” (2024), Dawkins repete o pensamento de que a seleção natural se processa no indivíduo, reforçando, dessa forma, o papel do individualismo na evolução. No entanto, com a licença do meu guru há muitos anos, permito-me pensar um pouco diferente.
Primeiro, precisamos definir o que seria o “indivíduo”, uma vez que cada ser vivo é resultado de um coletivo de genes herdados de seus pais e antepassados, o seu genótipo, recombinados de maneira única para formar um determinado corpo, o seu fenótipo. Apesar do papel específico de cada gene, eles são plenamente interdependentes uns dos outros. Por exemplo, não adianta um animal ter genes para formar dentes herbívoros se seu sistema digestivo for formado por genes de carnívoros.
A cooperação entre todos os genes é fundamental para a sobrevivência do animal e basta um gene perdido ou uma variante defeituosa para colocar o coletivo de genes em risco. Por exemplo, em meu trabalho como médico, atendo pessoas portadoras de neurofibromatose do tipo 1, uma doença rara causada por um erro de cópia ou perda de um único gene que participa do desenvolvimento do sistema nervoso e da pele na vida intrauterina e depois do nascimento. Algumas variações genéticas neste gene (no genótipo) podem produzir graves consequências para a saúde do organismo como um todo (o fenótipo), inclusive encurtando a sua expectativa de vida em alguns casos mais graves.
Além disso, a mesma variante da doença NF1, – por exemplo, herdada do pai, – produz doenças com fenótipos diferentes em dois irmãos, pois eles têm coletivos de genes diferentes, que foram misturados na formação dos espermatozoides e nos óvulos. Mesmo quando são gêmeos univitelinos, ou seja, com o mesmo genótipo, a doença se manifesta de forma diferente em cada um deles por causa da chamada epigenética. Ou seja, é a cooperação entre TODOS os genes que determina o fenótipo.
Pelo lado das mutações benignas, por exemplo, outra variantes genéticas que surgiram na espécie humana, aumentaram a pigmentação da nossa pele com melanina para proteger o ácido fólico, permitindo que tenhamos mais filhos com o sistema nervoso sadio em ambientes com maior radiação solar, como as regiões equatoriais e de maior altitude. Por isso as mulheres de pele branca precisam suplementar o ácido fólico durante a gravidez em ambientes ensolarados.
Em outras palavras, se nenhum gene se replica sozinho, não consigo encontrar o gene egoísta do Dawkins, perdão mestre, – pois quem se replica é um coletivo de genes e a seleção natural atua sobre esse coletivo de genes. Se o fenótipo se der bem, – sobreviver e se reproduzir, – o genótipo passará adiante, mas novamente recombinado nos espermatozoides e óvulos seguintes, de tal forma que o fenótipo dos pais se extingue. Não é o fenótipo que é selecionado, mas o coletivo de genes, que segue em frente.
Por outro lado, se temos dificuldade em dizer que há um “indivíduo” isolado sendo selecionado em sua biologia, também temos que reconhecer que nenhum ser vivo existe separado do ambiente no qual ele evoluiu. Onde estaria o limite entre o animal e seu ambiente? Não existimos sem o ar que nos cerca, que, por sua vez é formado pelas plantas que recombinam o oxigênio, as quais precisam da terra e da água numa determinada temperatura, que depende do clima, que é determinado pelas condições do planeta em sua órbita, que depende do sol… que derrete a neve e liberta a formiguinha, diriam minhas filhas (*).
Em conclusão, se não podemos afirmar que há o “indivíduo” do ponto de vista da evolução ou do ambiente, e que somos um contínuo complexo de genes e ambiente em cooperação, o individualismo me parece um corte histórico arbitrário que atende ao nosso desejo íntimo de existir de forma potente num universo imenso, do qual somos apenas parte de um pouquinho da poeira estelar recombinada maravilhosamente na fração casual do tempo chamada vida.
Lor
(*) História que Thalma contava para minhas meninas, da formiguinha que ficou presa na neve e pediu ao sol que derretesse a neve para que ela se libertasse.