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Quando alguém adoece e procura o auxílio da medicina, sua esperança é de acolhimento pessoal, alívio da dor e cura do sofrimento. A esperança geralmente está depositada na forma de medicamentos capazes de erradicar em definitivo a doença.


Qualquer que seja a enfermidade, é comum que a pessoa doente fique insatisfeita com uma consulta médica, porque aquele encontro é um momento que tem tudo para dar errado. 


Para começar, se pudéssemos, nem o paciente nem nós, médicos, estaríamos ali, mas num passeio, em férias, ou pescando. No entanto, estamos diante um do outro por razões diferentes: a pessoa por causa de seu sofrimento e o médico porque precisa trabalhar. 


Ao início da consulta, o paciente está cheio de dúvidas sobre sua doença, mas em poucos instantes nós médicos temos várias certezas sobre o paciente.


Antes da consulta somos duas pessoas desconhecidas entre si, mas em poucos minutos, uma delas deverá compartilhar sua intimidade, inclusive expor seu corpo, enquanto a outra permanecerá tecnicamente distante, impessoal e vestida. 


A pessoa doente é despojada de sua identidade ao vestir uma camisola tosca para o exame e se torna vulnerável, mas nós estamos aparamentados por jalecos e insígnias que sacramentam nossa posição de poder e autoridade.


O paciente, em média, é uma mulher, negra ou parda, de baixa renda e com alguns filhos, mas o médico geralmente é um homem, branco, tem uma vida economicamente confortável e sua esposa é quem tem um ou dois filhos. 



A pessoa diante do médico se identifica pelo nome e sobrenome, por exemplo, Ana Maria Soares Lisboa, mas nós nos lembraremos dela pelo laudo do seu exame anatomopatológico: Astrocitoma Pilocítico Grau I da OMS. 


O paciente expressa suas dores em português, mas nós respondemos em latinês misturado com siglas em inglês, o tecnologuês: por exemplo, Tomo de tórax multislice, Dopller scan de carótida ou PET CT com 18 FDG. 


O paciente não sabe o que o tem e imagina que o médico saiba, mas nós imaginamos muito mais do que sabemos, de fato, sobre a doença que acomete o paciente, especialmente quando se trata de uma doença rara.



A pessoa levou às vezes oito anos para desenvolver sua doença, tempo médio, por exemplo, para o diagnóstico da neurofibromatose do tipo 2, mas nós demoramos poucos segundos para interromper seu relato espontâneo, pois já fizemos o seu diagnóstico, não obrigatoriamente correto.

O paciente tem medo de desagradar o médico e tenta responder aquilo que acha que queremos ouvir, mas interrogamos o paciente com rigor para descobrir contradições, porque há uma lenda entre os estudantes de medicina que todo paciente mente ao seu médico.

Então, a palavra do paciente é sempre questionável e colocada entre parênteses (sic), mas a nossa opinião ganha força de lei depois de assinada e carimbada: desde os atestados e receitas até o parecer técnico concedendo o afastamento do trabalho ou aposentadoria.

Com o tempo, a pessoa com dor e limitações físicas desenvolve também sofrimento psicológico, que pode vir a se tornar sua queixa principal, mas, com pouco tempo para ouvir, pensamos que a ansiedade do paciente nos atrapalha na avaliação correta do seu problema físico real. 


Algumas vezes o doente gostaria de ouvir de nós que ele não está doente, que tudo não passou de uma indigestão, mas nós precisamos demonstrar a ele que somos competentes e temos toda certeza sobre sua doença e seu futuro.


Às vezes a pessoa não sabe as causas de suas dores e pede esclarecimentos, mas nós indicamos exames e tratamentos sem explicação, porque pensamos que as decisões são nossas e nosso conhecimento não precisa ser compartilhado democraticamente.

O doente está diante de nós temendo perder sua vida, mas nós estamos diante dele ganhando a nossa, construindo uma carreira, comprando uma casa, planejando uma viagem. Ele tem medo da morte, mas nós estamos cheios de coragem e dispostos a enfrentar a morte… do outro.

As pessoas procuram na internet informações médicas para tentar compreender seus sintomas, mas mesmo sabendo que há informações úteis na internet nós as desprezamos por serem feitas por leigos e nos sentimos ofendidos quando elas contrariam as nossas ideias bem estabelecidas.

Nós estudamos anatomia e sabemos onde fica a retina e o tumor no quiasma óptico, mas as pessoas podem achar que o tal glioma óptico é uma couve flor maligna que devora seu cérebro. Há um abismo entre o que os médicos visualizam e o que as pessoas imaginam sobre uma doença qualquer.


Nós confiamos nos medicamentos que os laboratórios nos convenceram a usar, mas as pessoas podem não saber as diferenças entre droga, medicamento e veneno, entre vitamina e suplemento, entre placebo e marca registrada e entre dose e preço.

Em caso de sucesso, as pessoas religiosas costumam agradecer a Deus e depois aos médicos, mas nossa vaidade se incomoda com esta hierarquia, porque afinal o trabalho foi todo nosso. Em caso de fracasso, pensamos que o paciente é que não respondeu bem ao nosso tratamento.

Indicamos uma internação hospitalar com naturalidade, porque geralmente nos sentimos à vontade no ambiente de um hospital, mas os pacientes desconhecem a rotina de um hospital tanto quanto desconhecemos o funcionamento de uma prisão.

O médico afinal estabelece um diagnóstico e encontra para ele um número no Código Internacional de Doenças, mas o paciente sai da consulta com uma espécie de tatuagem permanente: CID Q 085-0. 



Para nós, a doença é apenas uma denominação, mas para o paciente ela pode vir a substituir seu nome, separá-lo das demais pessoas, tornar-se discriminação. Quem se lembra dos manicômios, leprosários e internações forçadas de mulheres por histeria?

Para nós, cada doença é um caso que encontramos por acaso na rotina de nossa profissão, mas para o paciente seu diagnóstico pode se tornar uma espécie de destino, condicionando seus hábitos de vida e suas relações sociais.



Se a pessoa é atendida pelo SUS, desconfia que seria melhor se possuísse um plano privado; se pagou por um plano privado, acha que seria melhor se pagasse por uma consulta particular; se está pagando particular, suspeita que o médico está interessado apenas no seu dinheiro. 

Em qualquer destas situações o médico pode achar que está recebendo menos do que merecia pelo seu trabalho.


Infelizmente, o distanciamento emocional entre médicos e o cidadão doente é tão grande que nós apenas começamos a compreender os sentimentos dos doentes quando nós mesmos adoecemos.




Apesar de estarem em posições opostas, médicos e doentes se assemelham como seres humanos inseridos e pressionados por um sistema de atendimento à saúde, que é determinado à nossa revelia pela estrutura social e econômica da civilização atual, que nos retira do papel de sujeitos.

A complexidade desta estrutura é que faz com que o médico e o cidadão doente jamais se encontrem sozinhos na privacidade da sala de consulta, porque há câmeras escondidas observando se ambos cumprem seu devido papel dentro do Sistema Único de Saúde, dos Planos Privados de Saúde, da Indústria Farmacêutica e de Equipamentos Médicos, do Conselho Federal de Medicina, do Ministério da Saúde, da ANVISA, do Imposto de Renda e da divisão de classes na sociedade capitalista.


Apenas numa coisa médicos e doentes concordam: ambos gostaríamos de voltar para casa como sujeitos melhores e mais felizes.







Palestra apresentada no Workshop em Sociologia do Diagnóstico
Universidade Federal Fluminense – Niterói – RJ – Abril de 2017

Agradecimentos pelas leituras e sugestões por ordem cronológica:

Thalma de Oliveira Rodrigues

Romeu Cardoso Guimarães

Nilton Alves de Rezende

Jorge Bezerra Cavalcante Sette

Luíza de Oliveira Rodrigues

Bruno Cezar Lage Cota

Leonardo Maurício Diniz

Rogério Lima Barbosa

Juliana Ferreira de Souza

Ernesto Carneiro Rodrigues

As indústrias farmacêuticas Novartis, Labofarma, Smith-Glaxo-Evans, Astra Zeneca, Novafarma, Medley, etc, etc…
NÃO patrocinaram este trabalho.



  

O workshop “Sociologia do Diagnóstico: conceitos e aplicações” será realizado neste mês de abril (25 a 27) no Instituto de Biomedicina da Universidade Federal Fluminense, em parceria com a Universidade de Exeter da Inglaterra.

Tenho a satisfação de ser um dos palestrantes com o tema “A representação social do diagnóstico: impacto, medos e tabus”.

Haverá a participação de cientistas de diferentes países e de familiares de pessoas com doenças raras e doenças genéticas.

O workshop tem como um de seus objetivos a realização de um documento participativo entre os presentes. 

Acredito que a temática seja interessante para todas as pessoas que estão envolvidas com as doenças raras e as genéticas. 


As pessoas interessadas podem encontrar mais informações e a ficha de inscrição aqui.

Abaixo, um texto preliminar enviado pelo doutorando Rogério Lima Barbosa.

Sociologia do Diagnóstico 

Em 1978, Mildred Blaxter chamou a atenção dos cientistas sociais para prestarem mais atenção ao diagnóstico médico, tanto como uma categoria quanto como um processo. Mais de trinta anos mais tarde, ela publicou um trabalho autobiográfico que refletiu criticamente sobre o caminho do diagnóstico que levou à identificação de seu próprio câncer, (Blaxter, 2009). 

Suas percepções sobre as nuances dos processos dos diagnósticos dentro do sistema de saúde fornecem pistas importantes para as áreas que exigem atenção em relação ao diagnóstico. Apesar de seu chamado anterior, e seu eco subsequente, através do trabalho de Phil Brown (1995), é só muito recentemente que a sociologia do diagnóstico finalmente começou a tomar forma e despertar o interesse. 

Jutel (2009) publicou um artigo de revisão e elaborou os argumentos em seu livro Putting a Name to it: Diagnosis in Contemporary Society (2011). Com Nettleton, ela editou uma edição especial das Ciências Sociais e Medicina intitulada “A Sociology of Diagnosis” (Jutel e Nettleton, 2011), que atraiu várias dezenas de submissões. 

Embora subjacente à sociologia médica, este subcampo baseia-se em campos de estudo relacionados, incluindo os estudos de ciência e tecnologia, antropologia médica, sociologia organizacional, política de saúde, economia, bioética e debates políticos sobre novos movimentos sociais. A perspectiva da sociologia do diagnóstico pode trazer importantes contribuições para o atendimento pela atenção primária e a própria implantação do SUS, no Brasil. 


Por isso, esse workshop possui não somente apresentar a perspectiva teórica da temática como, também, conseguir contribuições das pessoas participantes em um processo onde a teoria e prática se entrelaçam para construção de algo que possa trazer benefícios concretos para os usuários do SUS. 

Coordenação:
Profa. Dra. Jacqueline de Souza Gomes
Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense. Membro Permanente do Programa de Pós-graduação em Ensino da UFF. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos, 
Ética Aplicada e Educação. Pós doutora em Bioética pelo PPGBIOS. Doutora em Filosofia pela UFRJ.
Email: jsgomes@id.uff.br

e

Profa. Dra. Susan Kely
Professora do Centre for Genomics in Society (Egenis)/ University of Exeter Diretora dos estudos de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia, Filosofia e Antropologia da Universidade de Exeter/Inglaterra

Email: s.e.kelly@exeter.a.uk