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“Vim só com minha mãe das outras vezes, porque ela que sempre fica do meu lado, nos exames segura minha mão, falo: Tá bem mãe, ela faz um carinho, solta, foi ela que descobriu as coisas na internet, chorou muito depois alegrou um pouco, porque agora a gente sabe o que você tem, ela falou enxugando os olhos, voltamos hoje no mesmo doutor, desta vez meu pai veio, primeira vez que vem, botou até sua camisa de manga comprida, fiquei mais nervoso, ele queria conferir, saber a verdade, confirmar, porque sempre achou que eu não fazia o que ele mandava porque era preguiça, porque eu não queria, ele não via a dificuldade, Se você esforçar, consegue, olha seu irmão, mais novo que você!, meu irmão não tem problema, tá na escola e a turma vive lá em casa chamando ele para o futebol, eu nunca chamam, nem aprendi a andar de bicicleta, Você não sabe o que é se esforçar, se esforçar, se esforçar e não conseguir nunca, pensei em dizer, mas tive medo dele zangar mais, meu pai parece com vergonha de mim na frente dos outros, Fala direito, arruma essa língua, menino!, brigou com o Demerval porque Demerval contou uma piada de fanho na frete dele, você está gozando meu filho, Demerval?, voltamos para casa e meu pai me botou lendo em voz alta uma revista, de novo, fala claro, levanta a voz, vamos, você consegue, se esforça, anda!, depois de um tempo jogou a revista longe e se trancou no quarto, nunca mais falou com o Demerval, depois quando não entendia o que eu falava mandava repetir até ele escutar direito, fala todas as letras pela boca e não pelo nariz!, Mas é pro bem dele que estou cobrando, se defendia quando minha mãe reclamava que eu já estava chorando e ele não me dava sossego, rasgava meus cadernos com a letra que ele não entendia, faz de novo, gritava, enquanto não ficar bom você vai repetir, como é que você quer ter um emprego na vida com esses garranchos?, eu ia só piorando a letra com o medo de tomar um tapa e a tinta borrava com o choro, não adianta chorar e escreve de novo, vamos, se esforça, minha mãe vinha me socorrer, já falei que precisamos levar o menino na psicóloga, a professora já falou, todo mundo, menos você que não entende que seu filho precisa de ajuda, Você é que protege ele e assim ele nunca será um homem de verdade, será sempre esse banana, chorei mais ainda dele me chamar de banana, aí minha mãe conseguiu marcar nas clínicas e fomos nesse doutor que disse: é da doença, dos problemas de nascimento, precisa mesmo de ajuda, minha mãe voltou para casa com os pedidos de exame e meu pai não disse nada pela primeira vez, as dores foram aumentando, na segunda vez tive que fazer outro exame porque parecia câncer mas não era, aumentou o remédio de dor, parei de sair de casa, ficava dormindo quase o dia todo, mexer para qualquer coisa doendo mais do que antes, marcou para operar mas não tinha jeito, parece que tem um monte de caroço por dentro e por fora, não tem cura, vamos tentar parar de doer com remédio, disse o doutor que ia operar, voltamos com o tal relatório, carta para a escola, mas hoje meu pai quis vir pessoalmente, escutou tudo, perguntou umas coisas, mas não compreendi direito tudo que disseram, minha mãe ficou com os olhos cheios d’água, mas entendi que é para aproveitar a vida que eu tenho hoje, deixar eu brincar com o celular e comer o que eu mais gostar, meu pai foi ficando diferente, é da doença, então, ele disse e olhou para mim diferente do seu jeito de sempre me olhar, como se estivesse me vendo pela primeira vez na vida, até espantei quando ele levantou da cadeira e me abraçou, desculpe, meu filho, eu não sabia, meu coração está batendo que dói na cabeça e não sei o que falar, mas nunca mais vou esquecer este abraço”.

Acho que foi isso que entendi no olhar daquele rapaz abraçado com seu pai, na sala do nosso ambulatório do Centro de Referência em Neurofibromatoses.

“… às vezes e tão difícil de conseguir enfrentar tudo sozinha, tenho família, meu esposo mas… parece que fingimos não ter nada, ninguém diz nada e eu, para não preocupar meu esposo que precisa trabalhar, me calo… e os outros cada um ocupado com a correria do dia a dia… Minha filha está com 25 anos e é o motivo da minha grande preocupação, não sei mais o que fazer: olho para ela, cada dia mais crescendo estes carocinhos e seu corpo, está muito visível cada dia mais no rosto, meu coração chega doer vendo as outras jovens de sua idade se preocupando com a pele, celulite, coisas que ficam tão pequenas diante das dificuldades da minha filha… Vejo que ela está sendo cada dia mais prejudicada na vida, parece que ela é invisível aos olhos da humanidade, ela nunca trabalhou devido à dificuldade escolar para escrever, ela troca muitas letras e lê muito mal, amigos quase não tem devido não conseguir ser igual às outras, vive tentando arrumar amigos, mas hoje é tudo moderno e ela muito quietinha logo se afastam… Tinha um namorado desde 16 anos, mas agora, antes de se casar ele foi embora e diz que ela não trabalha para ajudar, diz que ela não faz nada, meu Deus, o que posso fazer para ajudar minha filha, para vê-la feliz… Sei que tem pessoas muito pior que a gente peço perdão a Deus, mas gostaria muito que não fosse assim… Hoje as pessoas dão muita importância para aparência e me preocupo muito. O senhor acha que eu posso conseguir um benefício para ela? ” NJ, de local não identificado.

Cara N, obrigado pela confiança em nós para expor seu coração.

Hoje inverto nossas posições e sou eu quem farei a pergunta: se sua filha vier a receber um benefício financeiro, resolveria os diversos problemas que nos apresentou em seu sofrido depoimento?

Primeiro, vamos ver o auxílio financeiro. É possível? Sim, dependendo do estado geográfico (Minas Gerais e Espírito Santo têm legislações facilitadoras) e do estado de saúde de sua filha (o que tem que ser determinado por exame realizado pela perícia do INSS).

Não duvido que vocês possam precisar de um auxílio financeiro, mas fiquei com a impressão que esta questão seria a ponta do Iceberg da neurofibromatose de sua filha, ou seja, seria a parte menor daqueles enormes pedaços de gelo que flutuam nos mares gelados, dos quais vemos apenas a ponta que fica acima da superfície.

Você nos relatou que sua filha tem grande dificuldade de relacionamento social, poucos amigos e um namorado que a abandonou depois de vários anos. Que ela tem dificuldades de aprendizado que possivelmente a impedem de conseguir um trabalho adequado.

Você percebe que os neurofibromas estão se tornando cada vez mais visíveis e assustada você antecipa o preconceito que teme acontecer “porque as pessoas dão muito valor à aparência”, provavelmente tanto quanto você, que a desejaria “linda” como as demais garotas.

Parece-me que você chega a desejar que ela não tivesse nascido (“gostaria muito que não fosse assim”) e pede perdão a Deus por causa deste sentimento que julga horrível, mas que todos os pais de pessoas com problemas genéticos graves chegam a sentir em algum momento de suas vidas.

Mas o mais importante é que tive a impressão que você tem muita pena de sua filha.

Às vezes confundimos sentir pena com sentir amor. Sentir pena é considerar o outro incapaz de se realizar como pessoa, mas incapaz segundo os nossos padrões, segundo os nossos critérios de felicidade e de sucesso, ou seja, incapaz aos nossos olhos.

O amor, ao contrário, aceita e respeita o outro com suas potencialidades e limitações, do jeito que ele é e reconhece que o outro pode ser feliz, mesmo vivendo de forma diferente do que imaginamos ser uma vida com felicidade.

No seu relato, você revela o desejo de que sua filha seja feliz e aí talvez esteja uma saída. O que seria a felicidade para ela? O que a faria feliz hoje? Pergunte à ela.

Talvez você se surpreenda com o fato de que ela se considera mais feliz do que você imaginava.

Talvez a maior felicidade sonhada por ela seja que sua mãe a aceite do jeito que ela é, com suas limitações, e a ajude a viver com elas, porque a neurofibromatose é permanente, mas é apenas uma parte do que sua filha é. Uma pessoa.