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O amigo Rogério Lima, fundador da Associação Maria Vitória de Doenças Raras, que realiza neste momento parte do seu doutorado na Inglaterra, está sempre trazendo novas questões interessantes: desta vez, ele nos propõe discutirmos como se aplicam às neurofibromatoses os conceitos ingleses de doença (“disease”) e enfermidade (“illness”).
Rogério antecipa sua impressão de que o termo doença representa a visão médica e biológica, enquanto enfermidade significaria a percepção do ponto de vista da pessoa com um problema de saúde. Concordo com ele.
Não é apenas uma questão de jogo de palavras, não é somente uma questão semântica. Compreender a enorme diferença de visão entre os profissionais de saúde e as pessoas atendidas por eles pode nos ajudar a enfrentar os diferentes desafios para as famílias acometidas por uma das formas das neurofibromatoses.
Do meu ponto de vista como médico, as NF são “doenças” genéticas, ou seja, problemas de saúde causados por mutações aleatórias no DNA (genótipo), defeitos estes capazes de prejudicarem a síntese de uma proteína de uma determinada função biológica, o que resulta em sinais físicos e sintomas (fenótipo).
Como médico, minha formação científica exige que eu defina o tipo da “doença”, classifique sua gravidade, procure saber se os problemas apresentados têm ou não tratamento, quais as melhores alternativas e qual o impacto da doença sobre a qualidade de vida e sua duração. Além disso, devo levar em conta as condições sociais, psicológicas e econômicas relacionadas com a “doença”, assim como o aconselhamento genético e os custos financeiros para o seu acompanhamento.
Como médico, vejo uma pessoa com a “doença” por pouco tempo, no ambiente do ambulatório ou do hospital, e às vezes nosso contato dura menos de uma hora. Meus pensamentos são guiados por estatísticas, informações científicas e expectativas dentro de determinadas possibilidades baseadas em evidências.
Minha postura como médico costuma aparentar segurança, embora as neurofibromatoses estejam repletas de incertezas. As famílias, por sua vez, estão acostumadas ao sistema tradicional de autoridade médica e esperam que eu decida por elas o que é melhor a ser feito pela pessoa doente, mesmo que eu a tenha visto por breves momentos!
Por outro lado, como pai, a história de vida da minha filha é, na verdade, o que importa: sua felicidade, seu bem-estar, seus sonhos e realizações, assim como tudo o que aconteceu com minha família desde o momento em que ela nasceu. Nesta história, estão incluídos aqueles problemas que faziam (ou ainda fazem) sofrer a ela ou a todos nós, por exemplo, sua dificuldade para mamar, o choro de fome em seguida, a desnutrição crônica, a insônia e irritabilidade nos primeiros meses de vida, suas dificuldades de aprendizagem, a triste discriminação na escola ou seus neurofibromas cutâneos em crescimento.
Como pai, sei o quanto sofremos em busca de respostas para as diversas manifestações da sua “enfermidade” ainda sem diagnóstico. Sabe-se que é muito mais fácil lidar com uma “enfermidade” quando sabemos sua causa e como as coisas vão evoluir, do que quando estamos numa busca desesperada por soluções no escuro. É nesse ponto que os médicos e as famílias se encontram, no diagnóstico, e ele é um momento crítico: as palavras ditas pelo médico podem ser gravadas de forma duradoura e trazerem tranquilidade ou causarem mais sofrimento.
Ao contrário do médico, que passa alguns minutos com a pessoa doente, como pai devo viver todos os dias de vida de minha filha (ou da minha) junto a ela e sua “enfermidade”. Acompanhando cada passo dela, descubro que o cotidiano não permite que seu problema de saúde venha a ser maior do que sua própria pessoa, do que sua vida em toda sua complexidade. A “enfermidade” é uma parte dela, e que pode demandar mais ou menos atenção e cuidados, dependendo da época.
A enfermidade é muito mais complexa do que a doença. A enfermidade envolve a doença e seus afetos e desafetos. A enfermidade pode ser uma parte importante da vida de uma pessoa, mas nunca substitui a pessoa. Por isso, hoje dizemos que minha filha é uma pessoa com neurofibromatose e não uma “neurofibromatótica”. Como também não dizemos mais que fulano é “Down”, ou “esquizofrênico”, ou “anão”. É fundamental lembrar que estamos diante de uma pessoa com Síndrome de Down, uma pessoa com esquizofrenia, ou uma pessoa com nanismo.
Antes de tudo vem a pessoa, que é sempre muito mais do que a sua doença ou enfermidade.
Vamos continuar pensando juntos.