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Ontem recebi uma publicação eletrônica chamada “Alta Complexidade”, um instituto privado que se propõe a levar informações para as pessoas com problemas de saúde que requerem cuidados mais sofisticados, complexos e de alto custo.

A publicação trazia a notícia de que a “Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados aprovou, com emenda, proposta que equipara a neurofibromatose (Síndrome de Von Recklinghausen) às outras deficiências físicas e intelectuais para garantir os mesmos direitos e benefícios sociais determinados na Constituição. ”

No entanto, a publicação ilustrou a reportagem com uma foto de um homem adulto com milhares de neurofibromas por todo o corpo. Esta foto, sem nenhuma legenda que a explicasse ou a justificasse, dá a entender que a “neurofibromatose” se manifesta daquela forma grave ou então que as pessoas com NF1 acabarão tendo aquela aparência.

A foto causa tanto espanto que não permite a simpatia por aquela pessoa doente. Eu não recomendo, mas se você deseja ver a imagem clique AQUI .

Imediatamente enviei à Alta Complexidade meu protesto contra a utilização daquele tipo de imagem numa publicação oficial, porque ela NÃO CORRESPONDE a aquilo que acontece com a maioria das pessoas com neurofibromatose (do tipo 1, no caso). Disse também que aquela foto poderia causar muito sofrimento aos milhares de brasileiros com NF e que não ela não aumentaria a empatia das outras pessoas para com a causa das neurofibromatoses.

Nossa experiência no Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, atualmente com mais de 900 famílias com neurofibromatoses já cadastradas, indica que apenas menos de 1% das pessoas com NF1 atinge um estágio de tamanha gravidade como este. E por que?

Primeiro, porque existem grandes variações na apresentação da NF1, como já comentamos tantas vezes neste blog, mesmo entre pessoas com a mesma mutação no gene dentro de uma mesma família ou entre irmãos gêmeos univitelinos. Ou seja, há pessoas que apresentam mais neurofibromas cutâneos, outras menos.

Por exemplo, hoje mesmo acabo de receber um e-mail de E.M., de 48 anos, que teve seu diagnóstico de NF1 realizado somente este ano, quando entrou na menopausa, e alguns neurofibromas cutâneos começaram a aparecer somente agora. Ou seja, a gravidade do seu caso é mínima, pois levou uma vida normal até este momento sem nem mesmo saber que tinha NF1. O caso de E.M. representa cerca de 1 em cada 4 que tem NF1.

Segundo, porque há falta de médicos disponíveis para a população brasileira. Além de serem poucos profissionais disponíveis no Sistema Único de Saúde (por restrições financeiras do governo federal, dos estados e municípios), muitas pessoas que conseguem ser atendidas por cirurgiões para retirar seus neurofibromas, infelizmente escutam deles algumas frases como:

– Não adianta tirar, porque volta. Não vale a pena. (O que não é verdade, porque outro neurofibroma na região da cicatriz é um NOVO neurofibroma que iria crescer de qualquer forma).

– Quanto mais mexer, pior fica. (Embora o Professor Riccardi suspeite que os traumas físicos possam ter um papel no desenvolvimento dos neurofibromas, isto não está comprovado).

– Aqui no hospital público eu só posso retirar 6 neurofibromas, mas na minha clínica particular posso retirar mais. (São casos verídicos relatados por pessoas atendidas no nosso Centro de Referência, que me entristecem profundamente pela conduta antiética destes colegas).

– Você vai trocar um problema (neurofibroma) por outro (cicatriz), vai ficar feio da mesma forma. (Raramente as outras pessoas perguntam sobre uma cicatriz, mas sempre olham com medo para um neurofibroma e algumas expressam o seu medo: Isso pega?).

– Isso é benigno, não se preocupe, não precisa tirar porque não tem cura. (O velho conceito que confunde tratamento com cura, e tumor benigno na biópsia com efeitos “malignos” importantes dos neurofibromas sobre a qualidade de vida das pessoas com NF1).

E por aí afora vão certas respostas indelicadas de alguns médicos que não percebem o grande impacto que os neurofibromas trazem na vida das pessoas com NF1. Felizmente, há outros colegas que compreendem a importância da retirada dos neurofibromas cutâneos e ajudam as pessoas com NF1 a viver melhor e a evitar que cheguem à gravidade da foto em questão.

Terceiro, há pessoas com NF1 que, mesmo podendo, não querem retirar os neurofibromas por diversos motivos: 1) há os que acreditam que os neurofibromas são um castigo divino e que somente irão melhorar com a ajuda de orações (ver o caso do homem que foi beijado pelo Papa); 2) há os que procuram tratamentos alternativos sem comprovação científica e insistem neles por anos a fio até quando os neurofibromas já estão enormes; e 3) há os que não se preocupam com sua aparência, por levarem uma vida solitária em virtude da timidez e retraimento causados pela doença, algumas vezes bastante acentuado.

Portanto, se alguém quiser representar pessoas com neurofibromatose, sugiro que use a foto abaixo, realizada durante uma reunião da Associação Mineira de Apoio às pessoas com Neurofibromatoses. Nesta foto há várias pessoas com NF.

Veja como é difícil saber quais são elas.


Ontem falei sobre as diferentes formas de gravidade das neurofibromatoses. Hoje, vamos compartilhar um caso grave.
Em 2012, uma família do interior de Minas Gerais nos trouxe sua pequena MMJ, com apenas um ano de idade. Ela vinha apresentando um tipo de convulsão (crises de ausência) de difícil controle e seu diagnóstico de Neurofibromatose do tipo 1 já havia sido realizado por um neurologista pediátrico, que encaminhou a menina ao nosso Centro de Referência.
Quando a examinei, M mostrava-se apática e com períodos de perda de conjugação do olhar, alguns movimentos bruscos e involuntários e ligeiramente irritada, resultando na impressão geral de atraso moderado do desenvolvimento psicomotor por causa das crises de ausência.
O conjunto de sinais clínicos que ela apresentava fizeram-me suspeitar de que ela pudesse ter uma das formas da NF1 causada pela perda completa do gene (chamada de deleção), que acontece em cerca de 10% das pessoas com NF1. As deleções completas do gene geralmente produzem mais complicações do que as mutações isoladas em partes do gene. Naquele momento, ainda não estávamos realizando a pesquisa da deleção, um estudo do nosso Centro junto com o Laboratório Hermes Pardini, por isso não fizemos o exame. De qualquer forma, mesmo que fosse confirmada a perda completa do gene, isto não mudaria a nossa conduta naquele momento.
Mesmo com a suspeita da deleção, naquela primeira consulta, entre os níveis de gravidade “mínima, leve, moderada ou grave”, os achados clínicos de M permitiram-me classificar a gravidade da sua doença comomoderada, pela presença das convulsões. Por isso sugerimos a reavaliação das doses da medicação junto ao neurologista para tentarmos o controle efetivo das crises epilépticas.  
Pedimos avaliação anual em nosso Centro de Referências para observação do desenvolvimento psicomotor, se não houvesse qualquer novidade clínica antes disso. Solicitamos também avaliação fonoaudiológica aos 3 anos e realizamos o aconselhamento genético dos pais e fornecemos material didático sobre a NF1 na forma de cartilha e sites.
No entanto, M retornou em julho de 2015, com histórico de internação hospitalar em sua cidade natal por problemas ventilatórios: um estreitamento da região da faringe, que ocasionara aspiração de alimentos e pneumonia. A gravidade da situação levou à realização de traqueostomia e tratamento para dilatação da estenose, na esperança de retorno da ventilação às vias normais.
Por outro lado, as convulsões estavam sob controle com Vigabatrina, o que permitia à pequena M mais desenvolvimento psicomotor (interação social e postura ereta). A família também trouxe relatório da pediatra pneumologista, que solicitou nossa opinião sobre uma imagem tumoral encontrada na tomografia.
Minha opinião diante das imagens e do exame clínico foi de que havia um neurofibroma plexiforme na região do pescoço e mediastino, provavelmente causador do problema do estreitamento da faringe e crescimento anormal dos tecidos na região (estenose subglótica, mancha do queixo e assimetria discreta do pescoço).
Lembrei à família que os neurofibromas plexiformes, apesar de congênitos, ou seja, estarem presentes desde a vida intrauterina, podem ou não crescer durante a vida, comportamento este que é impossível de ser previsto num determinado momento.
Informei também que o neurofibroma plexiforme em si não se constitui num problema grave, não havendo necessidade de remoção cirúrgica simplesmente porque ele está presente, especialmente se considerarmos a localização complexa em que se encontrava no caso da pequena M, na qual eles praticamente nunca são completamente removidos.
Orientei os pais sobre a eventual possibilidade de transformação maligna dos neurofibromas plexiformes (de 10 a 20% ao longo de toda a vida), alertando-os que deveríamos ficar atentos a: crescimento rápido (muito acima da velocidade de crescimento da menina), sinais de dor, especialmente contínua, neuropática e noturna; mudança de aspecto do tumor para uma consistência mais dura (onde ele pode ser palpado); perda de função neurológica nas partes do corpo relacionadas com a inervação que percorre o trajeto do tumor.
Naquele momento, minha impressão é de que M estava evoluindo razoavelmente bem, e eu tinha a mesma esperança da pneumologista pediatra de que a traqueostomia pudesse ser retirada depois de completado o tratamento da estenose e de que o desenvolvimento psicomotor continuaria progredindo. Neste sentido, recomendei fisioterapia para desenvolvimento global da marcha e da força muscular.
Infelizmente, nesta semana recebi um comunicado da família dizendo que há dez dias M havia sofrido uma súbita obstrução na traqueostomia (durante uma convulsão?), que causou falta de oxigênio em seu pequeno cérebro, que levou à sua morte cerebral e ela veio a falecer nesta semana.
Enquanto cuidávamos atentos à porta da frente, o acaso de outra complicação nos surpreendeu pela janela, roubando-nos a vida de M.

Mesmo com todo o cuidado e carinho que ela recebeu de seus dedicados pais e dos vários médicos (e médicas) que a atenderam, não há ainda um tratamento que pudesse mudar este final da história. 
Seguimos adiante, buscando, para outros, quem sabe?
Gostaria de perguntar qual é a forma grave e a mais leve da Neurofibromatose tipo 1, como identificar se é leve ou não. Obrigada. NJ, sem localidade identificada.
Cara NJ. Sua pergunta é muito importante e fico admirado por não termos ainda tocado neste assunto.
Primeiro é preciso lembrar que as neurofibromatoses se manifestam de formas muito diferentes de uma pessoa para outra e o impacto da doença sobre cada pessoa também varia bastante. Assim, um mesmo problema, por exemplo, uma mancha café com leite, pode ser percebido como um transtorno por determinada pessoa, mas nem ser notada por outra. Ou um glioma do nervo óptico pode ser motivo de apreensão numa família, mas ser completamente ignorado em outra.
Então, a gravidade das neurofibromatoses deve levar em conta pelo menos dois aspectos: a percepção da própria pessoa dos problemas causados pela doença e a perspectiva médica daqueles mesmos problemas.
Do ponto de vista médico, a NF1 pode ser classificada em gravidade mínima, leve, moderada ou grave e a proporção é de cerca de 25% para cada uma delas entre as pessoas com NF1.
As formas mínimas da NF1 são aquelas na quais os sinais e as complicações da NF1 são tão pequenos que a pessoa (e os outros) quase não percebem a doença. Estes casos muitas vezes são diagnosticados tardiamente, às vezes somente quando nasce um filho (a) com uma forma mais grave. As formas mínimas permitem levar uma vida praticamente normal.
As formas leves da NF1 apresentam alguns sinais que são percebidos pela própria pessoa ou pela sua família e pelo médico, mas quase não chamam a atenção dos outros. As formas leves trazem poucos problemas para a vida cotidiana e a pessoa pode levar a vida dentro de padrões médios, por exemplo, com alguma dificuldade na aprendizagem ou comportamental, mas consegue trabalhar e se relacionar socialmente.
As formas moderadas da NF1 são aquelas nas quais os sinais e complicações da doença são percebidos facilmente pelos outros, e eles podem causar dificuldades limitantes de aprendizagem, problemas no relacionamento e baixa inserção no trabalho. Estas formas moderadas exigem avaliações médicas periódicas mais detalhadas, assim como mais apoio social e familiar.
As formas graves da NF1 apresentam problemas que ameaçam a qualidade de vida da pessoa, são evidentes e podem causar discriminação social. Por exemplo, os neurofibromas plexiformes deformantes da face, a transformação maligna de um neurofibroma plexiforme, uma cifoescoliose distrófica ou um grande atraso no desenvolvimento intelectual que resulta em retardo mental.

Ver também outro comentário sobre gravidade clicando aqui.
Que eu saiba, não existe ainda uma classificação médica semelhante a esta da NF1 para as pessoas com neurofibromatose do tipo 2 e para a schwannomatose.
Na NF2, podemos dizer que quanto mais cedo se manifestarem sinais e sintomas da doença, mais grave é o seu curso ao longo da vida. No mesmo sentido, as pessoas com NF2 herdada de um de seus pais apresentam sintomas e sinais mais precocemente, portanto, costumam apresentar mais tumores e maior gravidade.
Na schwannomatose, por enquanto podemos dizer que quanto maior o número de schwannomas dolorosos com menor possibilidade de remoção cirúrgica, mais grave seria a classificação da doença.

 

Do ponto de vista das pessoas com NF1, NF2 ou schwannomatose, como disse, a mesma classificação de gravidade (por exemplo, leve) feita pelo médico pode significar impactos completamente diferentes na avaliação de duas pessoas com neurofibromatoses.
Minha filha tem neurofibromatose, tem escoliose e algumas manchas café com leite, três neurofibromas descobriu aos 13 anos agora tem 21, será que estabiliza não aparece mais nada? V, de Fortaleza, CE.

Cara V, creio que sua preocupação atinge muitos pais e mães de crianças com neurofibromatose do tipo 1.

Antes de apresentar alguns caminhos diferentes, é preciso lembrar duas coisas: a NF1 é imprevisível e varia muito de uma pessoa para outra.

Considerando, então, a imprevisibilidade da doença e seu comportamento diferente de uma pessoa para outra, podemos definir algumas épocas de acontecimentos mais comuns nas pessoas com NF1.

Ao nascimento ou nos primeiros meses de vida:
Fatos comuns: as manchas café com leite, algumas poucas efélides. Fatos menos comuns: manchas maiores acompanhadas ou não de neurofibroma plexiforme. Fatos raros: displasia dos ossos (da tíbia ou da asa menor do esfenoide).

Do nascimento aos dez anos de vida:
Fatos comuns: dificuldades de aprendizado, problemas de comportamento, baixo peso e baixa estatura, aparecimento das efélides (sardas axilares e inguinais) e dos nódulos de Lisch (na íris). Fatos menos comuns: tumor no nervo óptico (glioma), crescimento dos neurofibromas plexiformes causando deformidades, aparecimento de convulsões. Fatos raros: puberdade precoce, cifoescoliose distrófica e transformação maligna de um plexiforme e leucemia.

A partir dos dez anos de vida:
Fatos comuns: aparecimento dos neurofibromas cutâneos, problemas de comportamento, dificuldades escolares. Fatos menos comuns: crescimento dos neurofibromas plexiformes e cifoescoliose distrófica. Fatos raros: transformação maligna de um plexiforme, leucemia.

Na vida adulta:
Fatos comuns: crescimento dos neurofibromas cutâneos, especialmente na gravidez e menopausa. Fatos menos comuns: dificuldades de relacionamentos. Fatos raros: transformação maligna de plexiforme, hipertensão arterial de origem renal e vascular, câncer de mama ou de estômago.

Podemos ver que é muito difícil afirmarmos o que irá acontecer com uma determinada pessoa com NF1 num dado momento de sua vida. 

Além disso, é preciso lembrar que em cada 4 pessoas com NF1, uma tem a forma mínima (nem dá para perceber a doença), outra tem a forma leve (poucos problemas), outra tem a forma moderada (alguns problemas que exigem cuidados constantes) e apenas uma tem a forma grave (com as piores complicações).

Vamos conversando.
Continuando a resposta de ontem, sabemos que a chance de nascer com NF é a mesma para meninos e meninas, mas a gravidade da doença pode ser diferente entre os dois sexos?
Até recentemente a maioria dos especialistas em NF pensava que a gravidade seria semelhante entre meninos e meninas porque os cromossomos onde estão os problemas que causam as neurofibromatoses não são aqueles ligados ao sexo.
No entanto, um estudo científico recente realizado nos Estados Unidos (clique aqui para ver o artigo completo) informou que as meninas com NF1 têm três vezes mais chances de precisarem de tratamento quando têm glioma óptico do que os meninos com NF1 que também apresentam glioma óptico. Ou seja, a gravidade da doença, pelo menos quanto ao glioma seria diferente entre os sexos.
Pessoalmente, tenho a impressão de que a NF1 se manifesta clinicamente de forma diferente entre meninos e meninas, pois eles me parecem mais tímidos e retraídos do que elas. Parece-me que os homens com NF1 permanecem solteiros com mais frequência do que as mulheres com NF1, mas esta observação subjetiva precisa ser estudada de forma mais rigorosa.
Além disso, as mulheres com NF1 apresentam momentos razoavelmente definidos na sua vida quando os neurofibromas aparecem e crescem com mais frequência: na puberdade, na gravidez e na menopausa. Os homens com NF1 não mostram fases tão nítidas de crescimento dos neurofibromas depois da puberdade.
As mulheres com NF1 também apresentam cerca de 3 vezes mais chances de desenvolver câncer de mama do que as pessoas sem NF1 entre os 30 e os 50 anos, o que não acontece com os homens com NF1.
Não tenho informação segura de que as demais neurofibromatoses possam possuir diferenças de gravidade entre os sexos.
De qualquer forma, a gravidade da doença é percebida pela pessoa acometida e pela sua família de modo muito particular e individual. Para algumas famílias, pequenos problemas na opinião dos médicos podem ser percebidos como grande sofrimento para a pessoa com NF e/ou sua família. Ao contrário, grandes problemas para os médicos podem ser enfrentados de forma tranquila pela família e/ou a pessoa acometida.

As neurofibromatoses são doenças “pessoais e intransferíveis”, como disse-me uma pessoa com NF1, enfatizando as características únicas que formam a identidade de cada pessoa.