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Ontem atendemos [1] uma pessoa, que vou chamar de D e que nos causou grande impressão.

D vivia na zona rural no interior de Minas Gerais com seus outros 8 irmãos e duas irmãs. Em torno dos 7 anos de idade, sofreu uma queda de um cavalo e desde aquela época surgiu um problema em sua coluna, o qual foi se agravando, deixando-o cada vez mais encurvado, até que os médicos concluíram que não havia recursos médicos na sua região para o tratamento adequado do problema. [2 – ver esclarecimento abaixo sobre a queda e o problema da coluna]

Diante disso, os pais de D venderam a pequena propriedade e vieram com todos os filhos para Belo Horizonte, onde passaram a viver, procurando ajudar o irmão com o problema na coluna. Apesar dos esforços, D continuou com a coluna torta, o que provocava discriminação por parte dos colegas de escola, à qual ele reagia com brigas frequentes. Sem contar com apoio por parte dos professores, ele acabou por sair da escola e não aprendeu a ler nem escrever, embora tenha adquirido habilidades em matemática.

Chegando à vida adulta, D trabalhou por vários anos como trocador de ônibus e desenvolveu grande conhecimento da cidade, o que o transformou numa espécie de guia urbano para sua grande família, que, a esta altura, já havia crescido muito à medida que os irmãos e irmãs foram se casando e os sobrinhos se transformaram num grande grupo formado por 13 meninas e 15 meninos, incluindo duas crianças adotadas. Hoje, a maioria destes sobrinhos já são pais e mães.

Enquanto isso, D permanecera solteiro, depois de se relacionar apenas com uma namorada, e continuaria vivendo com seus pais, até que o pai e em seguida a mãe faleceram com mais de setenta anos. Desde então, D se sustenta de sua aposentadoria de um salário mínimo e mora uns tempos com uma das irmãs, depois com um dos irmãos e assim vai alternando sua residência entre os membros da família. Uma de suas irmãs, que o acompanhava à consulta conosco, disse que ele é extremamente querido por todos e estão preparando uma grande festa para comemorar o aniversário de sessenta anos de D nas próximas semanas.

D foi encaminhado ao nosso ambulatório pela Dra. Mônica Ramos e nos apresentou um relatório médico detalhado e muito bem feito pelo Dr. Antônio Pedro Vargas, ambos colegas da Rede Sarah de Belo Horizonte, onde D tem recebido um atendimento excelente desde 2001, em virtude do agravamento de seu problema na coluna e do aparecimento de curtos períodos de ausência. Hoje, D sabe que não foi a queda de cavalo a causa de sua cifoescoliose, mas a neurofibromatose do tipo 1, a doença que apenas ele apresenta em sua numerosa família.

Apesar da cifoescoliose, que o obrigou a usar bengalas nos últimos anos, de alguns neurofibromas cutâneos, da dificuldade de aprendizado e das convulsões controladas com medicamentos, D nos pareceu uma pessoa muito feliz, amada por sua família e satisfeita com a vida. Ficou evidente para mim e para o Anderson o grande carinho, amizade e intimidade demonstrados por sua irmã que o acompanhava na consulta, fazendo-nos crer que D possui, de fato, uma verdadeira rede social.

De onde veio tanto acolhimento para D? Parece-me que há um gesto fundamental em sua história que marcou todos os irmãos: a decisão radical de seus pais de mudarem de vida para ajudarem o irmão doente, a mudança para Belo Horizonte em busca de ajuda médica. Ao fazer isto, seus pais estavam dizendo a todos: D é importante para nós. E a família toda seguiu o exemplo dos pais.

Parabéns pelo seu aniversário, D. Desejo-lhe muitos anos a mais de convivência com esta família solidária na qual você teve a sorte de nascer.

Até a próxima semana.



[1]Eu e o Anderson Silva, um estudante de medicina que está acompanhando nosso ambulatório do Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

[2] Meses depois de ter postado este texto, um leito entendeu que eu afirmei que a queda do cavalo teria provocado a cifoescoliose no menino. Na verdade, a família relatou que a queda do cavalo teria causado o problema na coluna do menino, mas, na minha impressão, a causa da deformidade na coluna do garoto provavelmente já estava presente antes da queda, mas ainda não havia sido percebida.

A deformidade da coluna vertebral descoberta naquele menino foi um dos problemas de coluna que acontecem em cerca de 10% das pessoas com NF1. Podemos encontrar tanto a escoliose (inclinação para um dos lados), quanto a cifose (inclinação para a frente), ou a lordose (retificação da coluna torácica ou aumento da curvatura da coluna lombar e cervical) ou combinações destas alterações chamadas cifoescolioses(inclinação e curvatura com rotação das vértebras).
Sabemos que a maioria das deformidades da coluna nas pessoas com NF1 é benigna, chamada forma “idiopática” (palavra que significa: sem causa conhecida), que apresenta apenas inclinações mais suaves da coluna, sem alterações nos ossos e sem complicações importantes. Geralmente são escolioses isoladas, cifoses isoladas ou lordoses isoladas e não precisam de tratamentos na maioria das vezes.
Por outro lado, algumas pessoas com NF1 apresentam as formas mais graves de deformidades da coluna vertebral, que chamamos de “distrófica” (palavra que significa: crescimento anormal do tecido, no caso, os ossos). Geralmente são diagnosticadas na infância (entre 6 e 10 anos), envolvendo 4 a 6 segmentos da coluna (corpos vertebrais) e localizadas na parte inferior do pescoço ou na parte superior do tórax. Raramente são diagnosticadas depois dos 10 anos de idade.
A escoliose e a cifoescoliose distróficas são causadas pela fragilidade acentuada de alguns dos ossos da coluna, os quais não suportam o peso do corpo acima de um certo ponto e desabam parcialmente e ficam deformados, causando desequilíbrio e tortuosidade da coluna, trazendo complicações funcionais importantes, por isso precisam ser corrigidas com coletes ortopédicos e cirurgias.
Esta fragilidade nos ossos geralmente é congênita, ou seja, está presente desde a vida intrauterina e está relacionada com a falta (ou insuficiência) da proteína neurofibromina em decorrência da mutação genética que causa a NF1 (ver https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3897656/ ). Algumas vezes a cifoescoliose distrófica está associada à presença de um neurofibroma plexiforme na raiz dos nervos que saem da coluna, e os plexiformes também são congênitos, ou seja, foram formados durante a gestação.
Assim, a maior probabilidade é de que o menino com NF1 que caiu do cavalo já possuísse a fragilidade óssea antes da queda, mas o trauma pode, talvez, ter funcionado como o agente capaz de acelerar o problema, tornando-o evidente.
Além disso, sabemos que as pessoas com NF1 também apresentam osteopenia (palavra que quer dizer fraqueza nos ossos), por causa da redução na estrutura mineral (menos cálcio) dos ossos. Há uma possibilidade de que esta fraqueza óssea facilite a osteoporose e as fraturas, por isso recomendamos que as pessoas com NF1 tomem banhos de sol, realizem uma dieta rica em precursores de Vitamina D e controlem anualmente os níveis de Vitamina D em seu sangue, realizando a reposição medicamentosa se necessário.
Por outro lado, também sabemos que as pessoas com NF1 sofrem quedas mais frequentemente do que a população em geral, provavelmente causadas por menor coordenação motora, menos força muscular e menos atenção. Uma recomendação que vem sendo estudada cientificamente (ver https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22466394 ) é de que exercícios regulares podem melhorar estas pequenas deficiências motoras das pessoas com NF1.