“Outro dia o senhor falou do risco do calor para pessoas com NF1. É porque tenho uma filha com NF1 e ela reclama muito das aulas de Educação Física. Ela não deve fazer? Pode explicar melhor? ” JP, de Manaus.
Cara J, obrigado pela sua pergunta e creio que sua preocupação é ainda mais justificada pela região onde vive a sua família.
De fato, as pessoas com NF1 toleram menos o calor (ver aqui) e as crianças em geral são mais vulneráveis a problemas relacionados ao calor. Assim, crianças com NF1 apresentam maior risco de problemas de saúde do que as demais crianças quando são expostas e realizam atividades físicas prolongadas em ambientes quentes e especialmente úmidos, como Manaus, por exemplo.
Vários fatores tornam as crianças mais predispostas aos problemas de saúde causados pelo aumento ou diminuição da temperatura do ambiente.
Em relação aos adultos, as crianças possuem proporcionalmente maior área de pele, que é onde acontece a troca de calor entre o corpo e o ambiente. Assim, dependendo do ambiente, o corpo das crianças aquece ou esfria (não confundir com os resfriados, que são viroses) mais rapidamente do que o corpo de um adulto.
Além disso, a imaturidade intelectual própria das crianças é acompanhada de desconhecimento dos riscos e da falta de cuidados preventivos diante de atividades físicas em ambientes de calor ou de frio intensos.
Outro fator importante: nas crianças podemos confundir uma desidratação por perda prolongada de água pelo suor – que leva ao aumento da temperatura corporal (hipertermia) – com a desidratação causada por uma infecção (uma diarreia por exemplo) que causa febre. São problemas clínicos muito distintos que devem ser tratados de formas radicalmente diferentes (ver aqui blog sobre isto).
O Brasil está localizado em regiões tropicais e subtropicais, que apresentam condições climáticas que aumentam o risco de hipertermia (não confundir com febre, repito), que é potencialmente fatal, especialmente durante atividades físicas. No entanto, infelizmente, não há normas oficiais preventivas que determinem cuidados especiais para a prática de atividades físicas (escolares, de lazer ou competitivas) nos ambientes quentes e especialmente os úmidos do nosso país.
Além disso, os sistemas de pronto atendimento e os hospitais brasileiros não parecem adequadamente alertados e preparados para as diferenças entre o diagnóstico de febre e de hipertermia, o que pode levar a tratamentos inadequados.
Nos Estados Unidos, cujo clima abrange algumas áreas subtropicais, outras temperadas e outras frias, acontecem cerca de 200 mortes por hipertermia (não confundir com febre, insisto) e estas mortes aumentam nos anos de ondas de calor.
A mortalidade anual aumenta proporcionalmente à idade, mas apresenta um pico entre 0 e 4 anos de 0,3 mortes por milhão [1]. É importante lembrar que parte das vítimas de hipertermia sobrevive com sequelas (especialmente neurológicas) e é possível que a incidência de hipertermia seja maior do que as estatísticas mostram, porque sua forma mais grave, o choque hipertérmico evolui de maneira semelhante ao choque séptico (causado por infecções graves), podendo haver confusão no diagnóstico final que é colocado no atestado de óbito.
De qualquer forma, a estatística sobre hipertermia na população brasileira é insuficiente: não consta do sistema de registro nacional de mortes e conheço apenas um estudo no Brasil que observou aumento proporcional da mortalidade geral à medida que a temperatura média na cidade de São Paulo se afastou dos 20 graus centígrados [2].
Diante de tudo isso que escrevi acima, é necessária mais atenção médica para o diagnóstico dos possíveis casos de hipertermia, assim como o seu correto registro epidemiológico, para que o seu risco seja devidamente dimensionado em nosso país.
Tratamento
O primeiro cuidado na abordagem dos indivíduos com aumento da temperatura corporal é saber se é um caso de febre ou hipertermia.
Como já disse num post anterior, geralmente a febre é autolimitada porque é o próprio organismo que tenta conservar calor internamente. A febre regride se sua causa for removida e/ou se antitérmicos forem usados. A febre pode estar associada (não causada) pela desidratação de origem infecciosa (diarreia, por exemplo) ou por causa da redução da ingestão de líquidos em decorrência da própria doença precedente. A desidratação reduz a capacidade de suar, o que pode contribuir para aumentar a temperatura interna.
Ao contrário da febre, na hipertermia o organismo tenta, mas não consegue dissipar o calor interno porque há maior conservação do que dissipação de calor, seja porque o metabolismo está muito elevado (exercício) ou o ambiente está muito quente ou ambas as situações ou, ainda, os mecanismos termorregulatórios estão prejudicados por alguma doença (no nosso caso, como a NF1).
A hipertermia é definida quando há aumento da temperatura interna (retal, esofagiana ou timpânica) associado a sinais e sintomas clínicos e é classificada em diferentes níveis de gravidade (Tabela 1).
De um modo geral, o tratamento da hipertermia envolve a interrupção da atividade física, remoção do indivíduo para ambiente frio, resfriamento corporal imediato com recursos físicos (imersão em banhos frios, compressas de gelo, ventiladores e ar condicionado), reposição de água e eletrólitos. Os casos mais graves necessitam de resfriamento rápido associado aos recursos de terapia intensiva para o tratamento do choque.
Nível de
gravidade
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Sintomas e sinais clínicos
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Tratamento
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1 – Síncope
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Dor de cabeça, fraqueza, taquicardia, hipotensão, perda transitória da consciência
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Retirar do ambiente quente, manter deitado e elevar os pés, reposição hidro-eletrolítica oral
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2 – Cãibras
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Sinais e sintomas do Nível 1 mais cãibras dolorosas disseminadas
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Tratamento do Nível 1 e se necessária, reidratação venosa
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3 – Exaustão
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Sinais e sintomas do Nível 2 mais fadiga, vômitos, sudorese profusa, função mental levemente prejudicada
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Tratamento do Nível 2 mais resfriamento corporal mais intenso e repouso de 24 a 48 horas
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4 – Choque
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Temperatura interna geralmente maior que 40,6 oC, estado de choque e coma, pele quente, convulsões
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Emergência médica:
resfriamento agressivo e recursos de terapia intensiva
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O diagnóstico da hipertermia se estabelece quando o aumento da temperatura interna está associado ao histórico de estresse ambiental térmico, com ou sem aumento do metabolismo corporal, especialmente se coexistirem fatores limitadores da capacidade termorregulatória (Tabela 2).
Fatores limitadores da capacidade termorregulatória
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Desidratação
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Falta de aclimatação e condicionamento físico
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Roupas inadequadas
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Privação de sono
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Obesidade
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Uso de drogas: álcool, cocaína, anfetaminas, ecstasy, LSD
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Doenças cardiovasculares e cutâneas (que afetem as glândulas sudoríparas, como a Neurofibromatose do Tipo 1), episódio anterior de hipertermia, diabetes, fibrose cística, insuficiência renal e hipertensão arterial
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Medicamentos: antidepressivos, ansiolíticos, antiparkinsonianos, anticolinérgicos, fenotiazídicos, haloperidol, antihistamínicos, betabloqueadores
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O diagnóstico diferencial da hipertermia deve ser feito por médicos que levarão em consideração outras possibilidades como tireotoxicose, feocromocitoma, síndrome neuroléptica maligna e hipertermia maligna.
É importante lembrar que no Brasil é medida habitualmente a temperatura axilar, que nem sempre reflete a temperatura interna.
Prevenção
A prevenção da hipertermia é um trabalho multidisciplinar, envolvendo outros profissionais da saúde, e consiste em:
Identificar as doenças que aumentam o risco das crianças para os problemas relacionados ao calor.
Quantificar a produção de calor que é feita a partir da estimativa do gasto energético necessário para a realização das atividades físicas escolares e esportivas;
Quantificar o estresse ambiental através das medidas da temperatura e da umidade relativa do ar e sua classificação nas normas internacionais que indicam o risco de hipertermia nas condições observadas.
Cabe ao médico o pronto atendimento dos eventuais casos e a identificação das situações clínicas que aumentam o risco de hipertermia. Os profissionais da Educação Física e Fisioterapeutas estão capacitados para a quantificação da produção de calor corporal e do estresse térmico do ambiente [3].
Mitos e tabus
São bem conhecidos em nosso meio alguns tabus sobre o resfriamento corporal: “Esperar o corpo esfriar antes de tomar água”, “Não receber vento pelas costas”, “Não pisar no chão frio”, “Não abrir a geladeira com o corpo quente para evitar doenças e paralisia facial”, entre outros.
O conhecimento básico sobre a termorregulação humana demonstra que não há qualquer base racional para estas superstições. É importante que os médicos participem do combate a estes tabus e mitos, entre eles o de que a água não deveria ser ingerida durante as atividades físicas porque prejudicaria o desempenho ou que o resfriamento corporal rápido possa causar danos neurais.
Mais perigosa ainda é a restrição da ingestão de líquidos ou o uso de diuréticos para atingir o peso ideal nos esportes de competição, que usam categorias em função do peso corporal.
Leitura complementar
Se você deseja saber mais sobre este assunto relacionado com crianças, veja o livro “Cabeça fria é que faz gol” (ver AQUI). É um livro Ilustrado e escrito em linguagem acessível a profissionais, leigos e público infanto-juvenil, o livro relata a aventura de um grupo de crianças que vão descobrindo as medidas adequadas para a prevenção dos problemas de saúde no calor, assim como para a melhora do desempenho esportivo. Criado dentro das normas científicas das associações de Medicina Esportiva.