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“Levei meu filho com NF1 num neurologista que avisou que se ele não operasse o glioma, meu filho iria morrer. Foi então que descobrimos em seu blog (AQUI) que os gliomas ópticos geralmente são mais benignos nas pessoas com NF1. Por que os neurocirurgiões nos assustam assim? ” JFC, de São Paulo, SP.

Caro JFC, obrigado pela sua pergunta. Proponho a você e aos leitores deste blog um esforço para tentarmos entender o cérebro dos neurocirurgiões. Para isso, vou comentar o que disse um dos mais famosos neurocirurgiões da Inglaterra, o Dr. Henry Marsh, num livro escrito por ele em 2014 chamado “Sem causar mal” (ver o livro AQUI).

O Dr. Henry Marsh operou milhares de pessoas ao longo de sua vida profissional, muitas delas com tumores no sistema nervoso, chamados de gliomas, meningiomas, neurinomas (hoje chamados de schwannomas) e astrocitomas.

Apesar destes tumores serem comuns na NF1 (gliomas/astrocitomas) e na NF2 (meningiomas e schwannomas), em nenhum momento o Dr. Marsh se refere às neurofibromatoses, o que me decepcionou um pouco, confesso, mas que já nos indica que ele, provavelmente, não dá muita importância às diferenças de comportamento (malignidade e mortalidade) destes tumores quando eles ocorrem nas pessoas com NF1 e NF2.

Aliás, ele escreveu o seguinte na página 156:

“Eu me lembro bem do David. A primeira vez que o operei fora doze anos (grifo meu) antes daquela ocasião, um tipo particular de tumor chamado astrocitoma de baixo grau no lobo temporal direito. São tumores no interior do próprio cérebro que crescem lentamente, inicialmente causando crises epilépticas ocasionais, mas após algum tempo acabam passando por uma transformação maligna e se tornam tumores de “alto grau”, conhecidos como glioblastomas, que inevitavelmente são fatais. … Os pacientes são na maioria adultos jovens que precisam aprender a conviver com uma lenta sentença de morte”. 


Em diversos momentos do seu livro o Dr. Henry repete sua percepção de que tumores cerebrais são verdadeiras condenações à morte. Isto deve ser verdade para os tumores que ele cita nas pessoas SEM NF1 ou NF2, mas absolutamente não é assim que acontece nas pessoas COM neurofibromatoses. E o famoso neurocirurgião inglês não parece fazer distinção entre elas, apesar de, certamente, ter estado em suas mãos competentes tecnicamente muitos pacientes com NF.

Possivelmente, no Brasil, muitos médicos pensam da mesma maneira que o Dr. Henry Marsh e vão pensar que todo tumor cerebral deve ser operado. Tumores cerebrais correspondem a uma sentença de morte, mesmo que o paciente já tenha sobrevivido doze anos, como o David com astrocitoma citado por ele.

É importante lembrar que em nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais nós temos acompanhado diversas pessoas com NF1 com tumores que permanecem estáveis por dezenas de anos, com poucos ou nenhum sintoma.

Parece-me que o Dr. Henry Marsh tem muitos fãs em todo o mundo, mas seu livro é uma demonstração típica do médico que é obrigado a mergulhar profundamente nas questões técnicas e acaba perdendo a visão de conjunto das condições sociais da medicina contemporânea, como bem analisou o Dr. Ricardo de Menezes Macedo (ver aqui).

Na sua crítica um tanto arrogante ao sistema de saúde pública da Inglaterra (parecido ao nosso Sistema Único de Saúde em muitos aspectos) ele reclama da perda de autonomia do médico, porque agora ele tem que dar satisfações aos chefes que não são médicos e respeitar as enfermeiras, assim como cumprir muitas normas (feitas para todos!). 

Aliás, o filme inglês recentemente lançado nos cinemas chamado “Eu, Daniel Blake” nos apresenta uma visão crítica da burocracia e do descaso do capitalismo para com as pessoas mais pobres, culpando-as pela sua própria pobreza e miséria.

Dr. Marsh, como muitos de nós, não consegue ver o quanto a normatização da profissão médica decorre do imenso aumento dos conhecimentos médicos, da complexidade do atendimento das grandes populações e da necessidade de ganhos na produtividade no sistema capitalista.

Mas há lições interessantes em seu livro. Uma delas é que os médicos precisam passar por um problema de saúde pessoal ou familiar para começarem a compreender o sofrimento de seus pacientes e assim causarmos menos mal às pessoas.