A felicidade é hoje

Ainda sobre a felicidade de nossas crianças com NF1, lembrei-me de uma família que atendi no nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses: a menina de 11 anos (a única com NF1), que vou chamar de Mariana, a mãe (profissional da saúde) e a avó (profissional da educação aposentada).
Notei que todas as perguntas que eu fazia à Mariana, ela olhava para a mãe e para a avó antes de responder. Este é um comportamento bastante comum entre as crianças com NF1 que tenho encontrado, revelando uma certa dependência psicológica para com os pais, ou seja, uma dificuldade em saber o que elas próprias desejam.
Também já observei que os pais (principalmente as mães) se apressam em retirar a roupa das crianças, mesmo daquelas que já podem fazer isto sozinhas, quando peço a elas para ficarem de cueca ou de calcinha para que eu possa pesá-las, ver sua estatura e fazer o exame físico. Geralmente, preciso explicar aos pais que a habilidade em retirar as roupas já faz parte do meu exame neurológico, e por isso preciso ver como a criança se organiza com as próprias roupas. Este comportamento também sinaliza uma certa superproteção comum entre os pais de crianças com NF1.
Outro indicativo da superproteção dos pais se revela nas constantes correções de postura (senta direito, fica bonitinha), de proibições (não mexe no carimbo do doutor, tira a mão daí, fica sentado, etc.), mesmo depois que eu digo que pode mexer, que pode subir na balança, que pode abrir a torneira da pia e brincar com a água. Outro dia, durante a consulta, uma mãe de cerca pouco mais de 60 anos corrigiu com a ponta dos dedos o batom de sua filha de (com NF1) sem pedir permissão à ela, como se a filha fosse ainda uma menina, apesar dela ser uma profissional de 40 anos bem sucedida.
Quando Mariana demorava um pouquinho para responder, a mãe ou a avó respondiam em seu lugar, usando a terceira pessoa: ela gosta disso, ela faz aquilo, ela sente aquilo outro. Diante desta interferência da família, Mariana dizia: – Não! Não é isso! E ficava com os olhos marejados de lágrimas. Praticamente em tudo elas pareciam discordar, inclusive sobre os próprios sentimentos da Mariana. Por exemplo, quando a mãe disse: – Ela morre de medo disso. Mariana retrucou: – Não, não tenho medo!
Ao longo da entrevista e do exame, fui notando que a Mariana se debruçava cada vez mais sobre a mesa em minha direção, se aproximando de mim e olhando-me nos olhos mais diretamente, apesar das primeiras interferências de sua mãe e sua avó para tentarem “corrigir sua postura”.
Num dado momento, comentei diretamente com a Mariana: parece que você não concorda em nada com sua mãe e sua avó. Ela, mais uma vez com os olhos marejados, disse: Elas exigem muito de mim!
Tenho a impressão de que esta é uma resposta chave para a questão da felicidade das crianças com NF1.
Se para as pessoas que não possuem NF1, a sociedade que criamos ao longo de séculos (capitalista, competitiva, elitista e desumana) já gera muita infelicidade e sofrimento, podemos imaginar o que deve ser  uma pessoa com NF1 viver nesta mesma sociedade, pois quem tem NF1 precisa de um pouco mais de tempo para aprender e realizar suas tarefas.
Lembro-me de minha esposa Thalma, andando com nossas duas filhas a caminho da escola. Ana, – a mais velha, ágil, esperta, correndo na frente, e a segunda, – Maria Helena, com NF1, mais lenta e distraída. Thalma dizia: – Espera, Ana… Vamos, Maria Helena!
E por que exigimos tanto de nossas crianças?
Porque preocupamo-nos com seu futuro, esperamos que sejam capazes de trabalhar, de serem independentes como adultos.
Mas como esperar que sejam adultos independentes, se não os deixamos tirar a própria roupas nem responder sobre seus próprios sentimentos, hoje, quando já são capazes de fazer isto sozinhos?
Porque queremos que sejam felizes no futuro.
Mas, as neurofibromatoses são doenças imprevisíveis, não sabemos o que nos espera com certeza. Além disso, com ou sem NF, quem sabe o que acontecerá no futuro?
Por isso, especialmente para quem tem NF, não existe felicidade no futuro: a felicidade é no presente, é hoje. Fazer o que for possível para ser feliz agora, dentro das possibilidades de cada um e de cada dia.
E que a felicidade de hoje nos ajude a construir um mundo melhor para todos no amanhã.

Bom final de semana.