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Ontem falei sobre uma criança que atendi com a Síndrome de Proteus e disse que decidi não mencionar a história do Homem Elefante para a família.

Primeiro, porque eu conheci na pele o sofrimento que é imaginar que o seu bebê de 3 anos iria se tornar uma pessoa com tantas deformidades como o Joseph Merrick, o homem que foi tratado como um animal exótico e exibido no circo por causa de sua doença.

Segundo, porque há alguns anos que faço um esforço para não utilizar palavras que aumentem as divisões entre nós, evitando o uso de adjetivos e categorias que possam contribuir de alguma forma para a discriminação quando usadas fora de contexto.

Por exemplo, vejamos se mudam os sentidos da frase: “O rapaz veio buscar a impressora para consertar”; se introduzirmos a palavra negro: “O rapaz negro veio buscar a impressora para consertar”; ou a palavra branco: “O rapaz branco veio buscar a impressora para consertar”. A cor da pele do rapaz introduziria um conceito desnecessário na frase, a não ser que eu quisesse exprimir com ela alguma preocupação racista implícita na minha visão de mundo.

Portanto, prefiro usar palavras neutras (que contemplem qualquer gênero, como colegas no lugar de médicos ou médicas) e que não reduzam o poder das pessoas (como pessoas doentes no lugar de pacientes, pois esta última já indica que já estão sob o domínio das instituições de saúde). É claro, sempre que isto for possível e que não altere o sentido geral do pensamento.

Procuro jamais usar categorias que substituam a identidade das pessoas, como seu número de matrícula, sua categoria de beneficiadas pelo SUS, sua posição na família “mãe”, “pai”, “avó”, “vozinha”, “neném”, etc. Ao contrário, procuro sempre usar o nome da pessoa e nunca me dirigir a elas com nomes genéricos como Dona Maria, Seu Zé, ou apelidos, como Negão, Gordo, Careca, etc.

Isto porque penso que nossa identidade começa pelo nosso nome e ele é muito importante nas nossas relações sociais e afetivas. O respeito pelo nome de uma pessoa é o primeiro sinal de que aquela pessoa tem importância para nós, que seus sentimentos nos importam. Meu pai, José Benedito Rodrigues, brincava: “Mate o hôme, mas não erre seu nome! ”

Assim, chamar alguém pela sua doença (por exemplo leproso, autista, aidético, tuberculoso ou Homem Elefante) é uma forma de reduzir toda a dignidade de um ser humano às consequências de um dos aspectos trágicos de sua vida, sobre o qual ele não tem qualquer culpa e muitas vezes nenhum controle.

Por isso prefiro empregar o termo pessoa com neurofibromatose para indicar que a pessoa vem antes da doença, que ela é maior do que a doença que a acometeu, ou seja, que a NF é uma parte da sua vida e não o contrário.

Em conclusão, o uso de categorias e adjetivos (índios, atleticanos, nordestinos, negros, mulheres, Homem Elefante) às vezes pode ser um recurso para a desumanização do outro, afastando-o como um ser diferente de nós (o outro) para que não nos incomodemos com seus problemas, ou para explorá-lo e humilhá-lo sem qualquer dúvida na consciência.

Todos nós merecemos ser chamados pelos nossos nomes e tratados como pessoas plenas de direitos. A doença é um dos acontecimentos da vida e não pode ser usada para excluirmos as pessoas da comunidade humana.

 

“O médico viu as manchas café com leite, disse que minha filha tem a mesma doença do Homem Elefante e me mostrou as fotos no computador. Eu fiquei chocada. ” AP, de Divinópolis, MG.

Cara AP, obrigado pelo seu triste relato, provavelmente compartilhado por muitas outras famílias. É a primeira vez que comentarei este tema neste blog.

Quando uma de minhas três filhas recebeu o diagnóstico de neurofibromatose do tipo 1 (NF1) estávamos em 1981 e, como médico, eu também havia aprendido na Faculdade de Medicina que aquela era a doença do Homem Elefante. Eu também fiquei arrasado ao imaginar que minha menina iria se transformar numa pessoa com grandes deformidades corporais.

Na mesma época (1980), o cineasta norte-americano David Lynch lançou seu filme “O Homem Elefante” (VER AQUI O FILME LEGENDADO) a história comovente de Joseph Merrick, um homem que viveu na Inglaterra do Século Dezenove e que era exibido em circos até ser resgatado pelo médico Frederick Treves, que o levou para um hospital onde Joseph Merrick passou o resto de sua vida sendo estudado pelos médicos, intrigados com aquela doença desconhecida. O filme aumentou a convicção de que a causa dos problemas físicos de Joseph Merrick era a Doença de von Recklinghausen, como era comumente conhecida da NF1.

Durante muitos anos, sofri com a expectativa de que, mais cedo ou mais tarde, as deformidades físicas aconteceriam com minha filha. Pelo fato de ser médico, acreditava que ela devesse ser cuidada por outros colegas médicos e, desta forma eu não estudava a sua doença (até porque não conseguia ler alguma coisa sobre NF1 sem chorar) e permaneci restrito aos conhecimentos ultrapassados que havia recebido na minha graduação na Faculdade de Medicina, até que em 2002 entrei para a Associação Mineira de Apoio às Pessoas com Neurofibromatoses, e a partir daí descobri que a maioria dos meus colegas não conhece as neurofibromatoses.

Portanto, até 2002, não tive conhecimento de que em 1982 já se suspeitava que a doença de Joseph Merrick não era a NF1, mas sim outra doença chamada Síndrome de Proteus. Esta suspeita foi confirmada por análise genética: a doença que acometeu Joseph Merrick é causada por uma mutação no gene AKT1, é ainda mais rara do que a NF1 e ocorre em 1 em cada milhão de pessoas.

A Síndrome de Proteus apresenta-se de formas variadas em decorrência de alteração nos genes reguladores dos receptores de insulina, o que leva ao hipercrescimento assimétrico de partes do corpo, podendo afetar a pele, o tecido subcutâneo, músculos, ossos e órgãos internos. Este crescimento aumentado acontece no início da infância e pode estabilizar em torno dos 15 anos.

Atualmente já dispomos de critérios clínicos bem estabelecidos para o diagnóstico da Síndrome de Proteus (VER AQUI REVISÃO RECENTE) . São eles:

1) Hipercrescimento progressivo e assimétrico, geralmente a partir de 6 a 18 meses de idade, com deformidade da estrutura óssea.

2) Um tipo de nevo especial chamado “cerebriforme” que pode ocorrer geralmente na planta do pé, ou na palma da mão, ou orelha. Este sinal é típico da Síndrome de Proteus.

3) Nevo verrucoso epidérmico linear.

4) Desequilíbrio adiposo (aumento da gordura nas partes afetadas e pouca gordura nas partes não afetadas).

5) Outros: defeitos vasculares (hemangioma), aumento de órgãos internos, tumores (especialmente cistos ovarianos e meningiomas), degeneração bolhosa pulmonar e dismorfias faciais.

O tratamento da Síndrome de Proteus consiste de avaliações clínicas regulares para se tentar controlar o excesso de crescimento, com procedimentos ortopédicos e cirurgias, e correção da escoliose se houver. Recomenda-se estudo radiológico do corpo inteiro na avaliação inicial e se necessário diante de sintomas novos.

Além disso, (especialmente depois da infância) é preciso o monitoramento e tratamento das tromboses venosas profundas e embolia pulmonares, monitoramento da função pulmonar (pode haver doença restritiva) e das manifestações cutâneas (nevos), assim como estarmos atentos à chance de aparecimento de tumores malignos (20%). Atenção especial deve ser dada às dificuldades de aprendizado e problemas emocionais decorrentes das dificuldades sociais provocadas pelo preconceito.

Não há risco de transmitir a doença para os filhos.

Mais informações podem ser encontradas em: Proteus Foundation 4915 Dry Stone Drive Colorado Springs CO 80918 Phone: 719-660-1346 www.proteus-syndrome.org

ou
Proteus Foundation UK 2 Watermill Close Bexhill-on-Sea East Sussex TN39 5EJ United Kingdom Phone: 01424 736640 Email: traceywhitewoodneal@yahoo.co.uk www.proteus-syndrome.org.uk 


Até 15 dias atrás, eu havia visto apenas uma pessoa com a Síndrome de Proteus, um adulto, que convive bem com a assimetria corporal causada pela doença, não apresenta dificuldades de aprendizado e seu maior problema foi o ganho de peso (uma das epidemias em que que vivemos), o que está forçando as articulações dos joelhos e causando artrose e dor.

Até 15 dias atrás, eu me referia à Doença do Homem Elefante com uma espécie de alívio, afastando-a da NF1, dizendo: – Não, a Doença do Homem Elefante não é NF1, é Proteus! – e creio que eu fazia um gesto involuntário com as mãos, como se quisesse me livrar daquele peso sobre os ombros que carreguei durante tantos anos.

No entanto, há 15 dias, atendi uma criança de dois anos com suspeita de NF1, mas que na verdade nasceu com a Síndrome de Proteus. E eu decidi não mencionar aos pais a história do “Homem Elefante”.

Amanhã explicarei o porquê.


Na semana passada, revi um artigo da JOAN ABLON, pesquisadora do Programa de Antropologia Médica da Universidade de São Francisco, na Califórnia, publicado no ano 2000, mas que me parece perfeitamente atual (quem desejar ver o artigo original em inglês, clique aqui).

Como nos é dada e como recebemos a notícia de que alguém da nossa família está com neurofibromatose?

De um modo geral, a partir dos relatos que recebo em nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da UFMG, podemos dizer o primeiro diagnóstico costuma demorar anos para ser feito e, quando ele surge, a notícia é comunicada pelos médicos de forma pouco habilidosa. Além disso, a percepção das famílias sobre aquele momento é de um trauma inesquecível.

A Dra. Ablon estudou esta questão a fundo e trouxe muitas luzes para todos nós, como pais e como profissionais da saúde envolvidos com as neurofibromatoses. Ela entrevistou detalhadamente 18 famílias que receberam o diagnóstico de Neurofibromatose do tipo 1 (NF1), gravando seus depoimentos e analisando o que eles tinham em comum.

O primeiro resultado da Dra. Ablon, foi que das 18 famílias entrevistadas 16 ficaram chocadas, com raiva e posteriormente deprimidas com a maneira traumática com que o diagnóstico de NF1 foi apresentado a elas. Aquele momento foi tão marcante em suas vidas que os pais eram capazes de recordar o sofrimento com grande intensidade muitos anos depois.

As famílias relataram que o diagnóstico de NF1 foi feito de forma desastrada durante um exame médico, no qual os profissionais demonstraram desconhecimento da doença e enfatizaram os aspectos mais graves e raros, além de insistirem no erro histórico de que a NF1 é a Doença do Homem Elefante.

Muitos médicos afirmaram às famílias que nada podia ser feito pela criança (confundindo cura com tratamentos), que ela viveria pouco tempo (contrariando as estatísticas científicas reais) e que, caso sobrevivesse, ficaria deformada como aquelas fotos que então lhes eram mostradas em livros de medicina, incluindo enormes tumores plexiformes deformantes, (o que acontece em raros casos), e que, por fim a criança seria como o Homem Elefante (que, na verdade, tinha outra doença, completamente diferente, chamada de Síndrome de Proteus).

Mesmo quando o diagnóstico de NF1 não incluía estes erros acima mencionados, ele era feito pelo médico de forma despreparada, pois eram incapazes de perceber que a família mal havia entendido o nome da doença, portanto seria muito difícil para ela compreender outras informações técnicas.

Em conclusão, a Dra. Ablon lembra que a NF1 é uma doença “sem parâmetros” por causa da grande variabilidade das manifestações clínicas (mesmo em gêmeos univitelinos) e da imprevisibilidade de sua evolução ao longo dos anos. Esta impossibilidade de prevermos o que vai acontecer retira das mãos dos médicos e da família qualquer controle efetivo sobre o destino das crianças, gerando grande ansiedade e apreensão.

Lembro-me de quando o diagnóstico de minha filha foi feito, por um colega muito delicado e atencioso, pelo fato de ser médico fui em busca das informações disponíveis naquela época (1981) e encontrei os mesmos terríveis prognósticos para meu bebê que, naquele momento apenas apresentava as manchas café com leite, a voz anasalada e algumas dificuldades cognitivas. Tristeza, desespero e aflição tomaram conta do meu coração por muitos e muitos anos. Somente depois que passei a participar das reuniões da Associação Mineira de Apoio às pessoas com Neurofibromatoses (AMANF), em 2002, é que comecei a aprender sobre as neurofibromatoses e a viver um pouco mais em paz e serenidade com relação à minha filha, hoje com 38 anos.

O artigo da Dra. Ablon reforçou em mim a necessidade de muito cuidado, de máxima atenção, de grande paciência e de extrema delicadeza no momento de comunicarmos à família o diagnóstico.

Compreendo hoje que uma única conversa, no dia do primeiro diagnóstico, não é capaz de abordar todas as implicações emocionais, cognitivas, familiares e sociais que a doença passará a ter na vida daquela família. Por isso, a partir desta semana, além do relatório de atendimento que costumo enviar por escrito pelo correio, acho necessário reagendar uma nova conversa com a família dentro de poucas semanas, para voltarmos a conversar sobre como estão indo as coisas, quais são as dúvidas, quais são os medos e sofrimentos.

Nós médicos, precisamos admitir nosso desconhecimento sobre imensa maioria das doenças raras (são mais de 5 mil!) e pedir o apoio de colegas especializados para darmos as informações necessárias às famílias. 


Sem esquecer que por trás de todo diagnóstico há pessoas, sofrimentos e uma incertezas sobre a vida.

Quem sabe assim, no futuro, o diagnóstico de NF seja menos traumático para muitas famílias.


Comentário 15/03/2016

É isso mesmo: o que a Ablon viu no EUA, você percebe no Brasil e eu vejo na Inglaterra e Portugal. Com as poucas entrevistas que eu tive por aqui, uma das hipóteses de minha pesquisa, que o contexto social poderia influenciar no entendimento da doença, vai por água abaixo.
O sofrimento é o mesmo (nas diferentes classes).
E tem uma coisa que a Ablon não coloca e eu estou tentando investigar: os médicos assassinam o futuro que os pais imaginavam e restringem o futuro dos pacientes, colocando nos genes a bola de cristal do determinismo.
Não é a doença genética que temos medo, é o medo de nossas crianças não terem futuro ou o futuro que passamos a ver, nos assustar de uma maneira tão forte que, não raro, ouvimos relatos de mães, principalmente, falando sobre o suicídio.
É o medo dos sintomas que na NF podem ser muitos ou poucos, graves ou leves.
Por isso, penso em discutir o conceito de doença.
Entendo toda a necessidade de encontrar a doença porque, aí, encontramos a cura. Mas quando não existe esse link (entre diagnóstico e cura)?
Quando a condição é a própria pessoa?
Que chave é essa que a pessoa passa, de uma (hora) para a outra, ser doente/paciente?
Dessas questões, você deve imaginar como anda (cheia) a minha cabeça.
Abraço

Rogério Lima Barbosa

Obs: Parênteses meus – Lor