Nada mais a fazer?

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Para Júlia Rocha

 

Renata acordou com calor antes do despertador tocar, percebeu a luz do amanhecer penetrando pelas frestas da cortina improvisada e se levantou para preparar o lanche para Samila e arrumar os cadernos da menina para a escola. Renata lembrou que não chovia desde maio, alguma coisa estava acontecendo com o clima, ouviu das moças que faziam campanha para uma candidata no bairro, e acendeu o fogão improvisado com pedaços de madeira que vinha recolhendo na rua, para economizar o gás que estava acabando.

Renata ligou baixinho a pequena TV para não despertar o caçula e o pastor dizia bom dia, repleto de bênçãos do Senhor, na paz de Deus, lembrou que estava atrasada com o dízimo, pudera, tudo aumentando de preço, menos as faxinas, as patroas pagando o mesmo preço de dois anos atrás, ou até menos, algumas dispensando, cortando passagem, dificultou para ela, trocou o arroz com feijão pelo macarrão, carne quase nunca, pouca fruta. Roupa, só aproveitada, uma cervejinha no sábado era luxo de antigamente, dos tempos na casa da mãe, no interior, quinze anos antes, o mundo era melhor, muita gente empregada, carteira e salário na mão, até visitar parentes no norte de Minas foram.

Enquanto coava o café, Renata admirava a moça branca super chique e o homem de gravata que falavam notícias sobre a guerra na Ucrânia, queria ter continuado na escola, gostava de história, mas nasceu Samila, tinha que trabalhar, depois, Alex Sandro foi embora e deixou pro filho só o nome, não aguentava o choro do menino, porque ELE trabalhava de dia, – e quem não?, o menino que não dormia, não ganhava peso, os cabelinhos ficando loiros secos, e ninguém na casa com aquele cabelo. Teve até o médico que duvidou que ela cuidava, que não dava o peito, – o menino é que não chupava direito, cansava, parava, veio outra, a doutora, que mostrou as manchas, disse que era grave, que ele ia viver pouco, mas que não tinha nada para fazer.

Renata tocou o ombro de Samila, precisava levantar e comer alguma coisa, podia levar pra escola uns biscoitos da cesta que ganhou do Afrânio, três quilos de arroz, meio de feijão, uma garrafa de óleo, um pacote de macarrão e outro de biscoito, para ela votar no candidato dele, o mesmo da outra vez, era pra vestir a camisa amarela com o nome, em troca prometeu cuidar do Junior, arranjar fisioterapia para ele, veio de conversa que ela era a mulher mais bonita do bairro, merecia um homem de verdade, cristão e não um maconheiro. Renata refugou, ainda pensava no traste do Sandro, Afrânio sumiu para voltar agora, com a mesma lenga-lenga, mas as coisas pioraram, agora não deu para recusar.

Renata desceu vinte minutos de ruas com Samila até a escola municipal e deixou o menino ainda sonolento e resmungando com a vó Carmem, que fica com crianças enquanto as mães trabalham, uma coisa de Deus que o pessoal do terreiro cuida, mas a turma do Afrânio não reconhece, as mães levam a comida e as fraldas, na volta pegam até de banho tomado, tem dia, e aquelas que podem dão algum dinheiro, outras ajudam com trabalho voluntário na comunidade. Só não dá pra deixar quando o menino está com febre, que é muito sempre, aí fica mais irritado, nervoso, não dorme nada, então ela perde o dia de faxina ou deixa o filho com a vizinha, mas a vizinha bebe, é um aperto no coração o estado em que ela entrega o menino, e ainda cobra 30 reais! Mas no posto de saúde Renata tem que levar, ela mesma, então perde o dinheiro da faxina, as patroas não querem nem saber, nada de direito, de carteira assinada, isso é coisa desses comunistas, elas dizem, aí… corta mais um pouco no jantar.

O cartão do hospital para o Alex Junior levou mais de ano para conseguir, eles falaram em corte do governo no dinheiro da saúde, reduziram pessoal, as filas aumentaram, mandaram procurar ajuda na internet, – mas como na internet, meu Deus!?, se o que ela ganha nem paga direito o telefone que precisa para fazer as faxinas! Ainda bem que a Marielle, que trabalha na assistência social, ajudou muito, leu o laudo da médica do posto, descobriu o nome da doença, um nome complicado, procurou no Google, disse que tem problema de genética, – meu ou do Sandro? – não sei, respondeu Marielle, só que isso atrapalha o crescimento dele, a magreza, a falta de força e de sono, até as manchas na pele.

Marielle conseguiu marcar uma consulta no ambulatório de Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas, onde Renata viu a faixa meio rasgada “Fora Genocida!” com um retrato do candidato do Afrânio. Renata lembrou da epidemia de COVID, dos dias que passou na cama depois que foi obrigada a trabalhar numa casa onde o patrão estava com a doença, a vizinha ajudou um pouco a cuidar das crianças até que ficou doente também, tinha muita gente morrendo no bairro com a COVID, o Júnior chorando, a Samila reclamando de fome, sem escola, sem merenda, a chuva derrubando uma parte do barraco, não conseguiu o auxílio do governo, Nossa! – passou um arrepio só de lembrar – e pensou que foi Deus que não deixou ela enlouquecer.

Renata entrou na sala com o Alex Sandro Junior no colo e perguntou: – é verdade que não tem nada para fazer pelo meu menino, doutor?

 

Dr LOR

 

Os nomes são fictícios. Somente os nomes.

O desenho acima foi feito por Luíza, de 10 anos, que tem Neurofibromatose do Tipo 1.

Pedi para ela um desenho de uma mãe triste, com um bebê no colo.

A mãe de Luíza ouviu mais de uma vez médicos dizerem que não havia nada a fazer pela sua criança.

Obrigado, Luíza, por ajudar, com seu ótimo desenho, a mantermos nossa esperança.