Introdução

Conversei por e-mail algumas vezes com uma jovem estudante (MD, de 17 anos), que gostaria de saber como poderia se tornar uma cientista para descobrir a cura para a neurofibromatose do tipo 1 para que um dia ela possa ajudar seu irmão mais novo, que nasceu com a doença.

Nossa correspondência foi muito interessante e então, com a autorização de MD, resumi abaixo algumas perguntas e respostas que foram surgindo durante nossa conversa, pois talvez elas sejam úteis a outras pessoas.

Antes de tudo, MD, quero reafirmar que admiro o seu amor fraterno e seu desejo de contribuir para a saúde de seu irmão e compartilho do seu sonho de que sejam descobertos, o mais breve possível, tratamentos capazes de corrigir as dificuldades de aprendizado e outros problemas que ele apresenta. Como você sabe, uma de minhas filhas nasceu com NF1 e é por isso que espero e trabalho para que este sonho aconteça.

Tentarei mostrar os diversos passos que imagino que sejam necessários para um dia descobrirmos tratamentos eficazes para as NF. É um caminho longo e complexo, mas ele pode ser percorrido com a alegria e o entusiasmo que sentimos quando estamos fazendo algo em benefício das outras pessoas.

Para concluir esta introdução, pode ser que, daqui a alguns anos, você se encontre realizando outras pesquisas ou mesmo envolvida em atividades profissionais sem qualquer relação aparente com a NF1, mas não se decepcione, pois o acaso é fundamental em nossas vidas e pode mudar completamente os nossos projetos. Eu mesmo estou aqui trabalhando com as neurofibromatoses por causa de um acaso, uma variante patogênica que ocorreu aleatoriamente no espermatozoide (ou no óvulo) que deu origem à minha filha. No entanto, a esperança de que podemos controlar o futuro nos ajuda a procurar os melhores caminhos, a pensarmos nos nossos semelhantes e no nosso planeta e a agirmos eticamente.

 

Atenção

Publicarei a partir de amanhã esta nossa conversa em mais 3 episódios, para não ficar cansativa a leitura. Vou falar mais sobre a NF do tipo 1, por ser a mais comum (1 em cada 3 mil pessoas na NF1) do que sobre a NF do tipo 2 (1 em cada 20 mil pessoas) e a Schwannomatose (1 em cada 40 mil pessoas). No entanto, a maioria das respostas para a NF1 nesta conversa se aplica às demais neurofibromatoses.

Ao final, apresento os comentários sobre este texto, que foi lido por algumas estudantes que estão realizando sua Iniciação Científica sob a orientação do Dr. Bruno Cézar Lage Cota, que está pesquisando os efeitos do treinamento musical sobre a capacidade cognitiva de adolescentes com NF1. Agradeço as leituras de Gabriela Poluceno (medicina), Maíla Araújo Pinto (medicina), Marina Silva Corgosinho (enfermagem), Thaís Andreza Oliveira Barbosa (fonoaudiologia) e Vitória Perlin Santiago (medicina).

Agradeço as leituras atentas de Bruno Cézar Lage Cota e Daniel Maier dos Santos.

 

Post #1

Sua primeira pergunta:

Por que ainda não existem medicamentos para tratar a NF1?

É uma pergunta muito importante e que é feita por muitas pessoas e inclusive já comentei este assunto em nosso blog.

Você tem razão em querer saber o porquê, depois de tantos anos estudando a NF1, nós ainda não conhecemos nenhum medicamento cientificamente comprovado para sua cura. Realmente, a doença é conhecida há mais de dois séculos e ainda não sabemos como evitar ou corrigir o seu aparecimento. O primeiro centro de atendimento especializado em NF foi criado em Austin, no Texas, em 1978 pelo nosso amigo e orientador Dr. Vincent M. Riccardi.

Então, vamos pensar em quais seriam os motivos para esta falta de opções terapêuticas até o momento.

NF1 é uma doença rara

A primeira dificuldade para encontrarmos medicamentos eficazes para a NF1 é o fato de ser uma doença que, apesar de atingir cerca de 80 mil brasileiros, é considerada rara e faz parte das mais de 5 mil doenças raras já identificadas que afetam os seres humanos.

É compreensível que a maioria dos médicos não tenha interesse em estudar as doenças raras, pois imaginam que jamais encontrarão em sua vida profissional uma daquelas doenças. Então, por que gastar o precioso tempo de estudo na faculdade com uma doença rara e não com uma doença comum?

Este desinteresse aconteceu inclusive comigo, quando era estudante de medicina (ver aqui meu relato sobre este episódio) e explica, em parte, porque a maioria dos profissionais de saúde desconhece as doenças raras, incluindo a NF1, apesar de ser mais comum do que o diabetes do tipo 1.

A raridade das doenças também reduz o interesse dos cientistas e laboratórios farmacêuticos em desenvolver novas técnicas e medicamentos, porque seriam consumidos por número potencialmente pequeno de pessoas que comprariam aqueles produtos. No sistema capitalista, todas as atividades são orientadas para a produção de lucro e, se o medicamento for comprado por pouca gente, os ganhos financeiros da indústria de saúde serão pequenos. Para conhecer melhor este assunto, no futuro vale a pena ler “Medicamentos mortais e crime organizado – como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica”, um livro de Peter Gotzsche (2014), premiado pela Associação Médica da Inglaterra.

Se não há interesse financeiro na NF1, a indústria da saúde não promove congressos sobre o assunto, não faz propaganda, não patrocina eventos e publicações científicas e assim a doença continua sem uma representação social, ou seja, desconhecida.

NF1 é uma doença complexa

Além de ser rara, a NF1 é uma doença genética, hereditária, congênita, limitante, progressiva e potencialmente fatal. E se torna mais complexa porque diversos órgãos e sistemas podem ser envolvidos. Por exemplo, a pele, o sistema nervoso central, os nervos, os músculos e os ossos podem apresentar alterações ou problemas no seu desenvolvimento. Pode haver dificuldades de aprendizado e de comportamento. Podem surgir tumores e ocasionalmente haver transformação maligna.

Para complicar, a NF1 apresenta uma grande variabilidade na sua manifestação clínica, ou seja, cada pessoa com a doença tem uma doença muito diferente das outras, mesmo numa mesma família que compartilha a mesma variante patogênica. Até irmãos gêmeos univitelinos (com a mesma variante patogênica NF1 e o mesmo conjunto de genes) evoluem com manifestações diferentes da NF1.

Além disso, a evolução da doença ao longo do tempo é praticamente individual, ou seja, as manifestações e complicações ocorrem de forma imprevisível.

Somando-se a raridade, a complexidade, a variabilidade de expressão e a evolução imprevisível, tudo isso torna muito difícil formarmos grupos homogêneos de voluntários para estudarmos cientificamente algum medicamento ou tratamento nas pessoas com NF1.

Assim, por mais forte que seja o nosso desejo de ajudar, descobrir a cura para uma doença RARA E COMPLEXA é um daqueles problemas complicados para os quais não temos respostas simples ou fáceis. Então, com esta cautela em mente, tentarei responder as outras questões que você trouxe, lembrando algumas coisas que aprendi no último meio século trabalhando como médico e cientista.

Receio que algumas das minhas informações a seguir possam parecer obstáculos muito difíceis, mas espero que meu depoimento seja uma referência realista que permita a você construir seu próprio plano de navegação por mares ainda desconhecidos. Sem esquecer do acaso, lembra?

Amanhã falaremos sobre sua segunda pergunta: Como posso me tornar cientista?