Posts

Em mais uma continuidade da divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o texto completo e didático da Dra. Vanessa Waisberg, doutora em oftalmologia, que tem sido uma colaboradora incansável do CRNF, atendendo pessoas com NF1 e Schwannomatose relacionada ao gene NF2, que foi justamente o tema de seu doutorado e prêmio nacional de oftalmologia. Agradecemos muito por mais esta colaboração e publicaremos a segunda parte (Problemas Oftalmológicos nas Schwannomatoses) na próxima semana.

Dr. Lor

 

 

Dra. Vanessa Waisberg

Oftalmologista com doutorado em

Medicina Molecular pela UFMG

Introdução

 

O olho e seus anexos estão frequentemente envolvidos nos pacientes com Neurofibromatose tipo 1 (NF1). Algumas dessas manifestações oculares, como os nódulos de Lisch, os gliomas de vias ópticas, os neurofibromas plexiformes e os nódulos de coroide são característicos da doença e fazem parte dos critérios diagnósticos da NF1 .

Enquanto os nódulos de Lisch não oferecem risco a saúde ocular, os gliomas ópticos e os neurofibromas palpebrais precisam de acompanhamento e podem eventualmente comprometer a visão dos pacientes.

Outros achados oculares podem ser encontrados em portadores de NF1, mas não são considerados critérios diagnósticos.

 

Nódulos de Lisch

Os nódulos de Lisch foram descritos pela primeira vez em 1937 pelo oftalmologista austríaco Karl Lisch. Eles são as manifestações oculares mais comuns e mais bem conhecidas da NF1.

O nódulos de Lisch (Figura 1)  são pequenas lesões elevadas, bem delimitadas, de coloração que varia entre o amarelo e o marrom, que podem ser discretas ou evidentes e aparecem na superfície da íris de cerca de 95% dos pacientes adultos com NF1. Histologicamente, os nódulos de Lisch são hamartomas, tumores de crescimento lento e benigno. O número e o tamanho dos nódulos de Lisch aumentam com a idade. Eles são incomuns antes dos dois anos de idade e aos dez anos de idade é possível identificar essas lesões em cerca de 70% dos pacientes.

 

Figura 1 – Variações dos nódulos de Lisch

 

Neurofibromas plexiformes orbitários e periorbitários.

A maioria dos neurofibromas (ver capítulo sobre neurofibromas) orbitários e periorbitários (NFO) se desenvolve ao longo das ramificações do nervo trigêmeo. Os neurofibromas isolados de pálpebra superior podem assumir a forma de S e geralmente causam leve ptose sem obstruir o eixo visual. Os neurofibromas localizados na pálpebra e região periorbitária podem causar ptose e levar a ambliopia por privação ou ambliopia refracional. Ambliopia é a redução da acuidade visual causada por interação binocular anormal durante o período de desenvolvimento visual. Os neurofibromas orbitários com ou sem envolvimento palpebral invadem a órbita lateral e raramente podem invadir estruturas intracranianas.

A incidência dos NFO em crianças com NF1 é menor que 10%. Apesar dos NFO serem congênitos, eles podem não ser evidentes logo após o nascimento. A maioria é identificada nos primeiros anos de vida. Toda criança com assimetria periorbitária ou proptose unilateral deve ser avaliada para descartar NFO. Não existe indicação de biopsia para confirmar o diagnóstico de NFO nas crianças que já possuem o diagnóstico de NF1.Toda criança diagnosticada com NFO independente do diagnóstico de NF1 deve realizar ressonância  magnética (RM) do encéfalo e da órbita para confirmar o diagnóstico de NFO e definir sua extensão. A necessidade de nova RM depende da progressão clínica.

 

Figura 2 – Diferentes apresentações do neurofibroma palpebral

 

Manejo oftalmológico

Recomenda-se que crianças com NFO realizem exame oftalmológico a cada seis meses durante os primeiros oito anos de vida, que é o período de desenvolvimento visual e é também o período que os NFO geralmente apresentam as maiores taxas de crescimento.

Os principais problemas oftalmológicos relacionados aos NFO são ambliopia, estrabismo, glaucoma e neuropatia óptica compressiva.

O manejo do estrabismo nas crianças com NFO é complexo. O oftalmologista deve priorizar o tratamento não cirúrgico da ambliopia, incluindo a correção dos erros refracionais e tratamento oclusivo. O tratamento cirúrgico do estrabismo deve ser considerado nos primeiros anos de vida quando a gravidade do estrabismo prejudica o tratamento da ambliopia. Uma abordagem conservadora inicial permite que o tratamento cirúrgico seja realizado quando o crescimento do NFO tenha diminuído e o processo geral do quadro esteja mais estável.

Indicações de tratamento

Após o diagnóstico, os NFO devem ser  acompanhados através de exame oftalmológico periódico e RM. Tumores estáveis podem ser acompanhados clinicamente. Nem todos os tumores irão progredir ou causar sintomas significativos. Quando se observar piora clínica está indicado realizar RM.

Até recentemente o tratamento cirúrgico era o principal tratamento disponível para  os NFO sintomático. Quando o tumor pode ser ressecado completamente a cirurgia geralmente é o tratamento de escolha. Infelizmente a cirurgia é desafiadora em muitos casos de NFO e  os resultados cirúrgicos geralmente não são satisfatórios a longo prazo devido à característica infiltrava do tumor e sua tendência a recorrer.

Nos últimos anos, o tratamento com quimioterápico oral se tornou uma opção de tratamento para pessoas com NF1 maiores que 2 anos com neurofibromas plexiformes inoperáveis  Alguns pacientes apresentam regressão parcial do tumor com o tratamento.

Muitos fatores influenciam a indicação do tratamento, como o tamanho do tumor, a localização, a taxa de crescimento, a idade do paciente, o risco de complicações irreversíveis e a gravidade dos sintomas. Alguns casos podem ser observados, outros podem ter indicação de cirurgia, tratamento  quimioterápico,  ou uma combinação dos dois.

 

Gliomas de Vias Ópticas

Gliomas de vias ópticas (GO) ocorrem em 5% a 25% das crianças com NF1. Eles podem aparecer em qualquer parte da via óptica e acometer um ou os dois nervos ópticos, o quiasma, as estruturas retro quiasmáticas como o hipotálamo e as radiações ópticas. Tipicamente, apresentam pouca tendência ao crescimento e muitas crianças permanecem assintomáticas. Raramente esses tumores podem ser agressivos. O motivo do comportamento agressivo de alguns GO ainda é desconhecido.

Nos gliomas assintomáticos a conduta é acompanhamento oftalmológico. Quando se observar redução na acuidade visual que não possa ser atribuída a outras causas, como erro refracional, ambliopia ou outros problemas anatômicos do olho, está indicado realizar ressonância magnética.

As principais indicações para realizar o tratamento do GO são piora clinica e aumento progressivo do GO. A piora clínica pode ser piora da acuidade visual, piora da proptose, sintomas neurológicos, perda da visão de cores ou disfunção endócrina.  A primeira linha de tratamento é a quimioterapia. Radioterapia e cirurgia raramente são indicados.

Figura 3 – Localização e imagens de glioma das vias ópticas

 

Alterações de Coroide

 As alterações da coroide, que é a camada vascular da parede ocular,  foram incluídas recentemente como critério diagnóstico devido a sua alta especificidade e sensibilidade para NF1, mas não oferecem risco para a visão.

As alterações de coroide da NF1 não são detectadas através do exame tradicional de fundo de olho.  Elas são identificadas com o exame de tomografia de coerência óptica (OCT), que produz imagens da retina e da coroide com a luz infra vermelha. As alterações de coroide aparecem como nódulos hiper refletivos e podem ser numerosos ou raros.

Outros Achados Oftalmológicos

– Glaucoma: o glaucoma na NF1 ocorre em cerca de 1% dos pacientes. Geralmente é unilateral e na maioria das vezes está associado a um neurofibroma palpebral ou periorbitário e ao ectrópio uveal, que é uma alteração congênita da íris. Nos glaucomas que ocorrem precocemente o tratamento geralmente é cirúrgico, semelhante ao tratamento do glaucoma congênito.  Nos casos mais tardios o tratamento com colírios pode ser tentado. A acuidade visual fica comprometida no olho afetado na maioria dos casos.

– Alterações da retina: o comprometimento da retina na NF1 é raro, mas tumores como hamartomas astrocíticos, hamartomas retinianos, hemangiomas capilares e tumores vasoproliferativos já foram descritos.

– Erros refracionais: a prevalência de miopia leve a moderada (-0,50 a -6,0 dioptrias) é um pouco maior que na população geral.  A prevalência da alta miopia, astigmatismo e hipermetropia é semelhante à da população geral.

 

Referências:

  1. Kinori M, Hodgson N, Zeid JL. Ophthalmic manifestations in neurofibromatosis type 1. Surv Ophthalmol. 2018 Jul-Aug;63(4):518-533.
  2. Abdolrahimzadeh B, Piraino DC, Albanese G, Cruciani F, Rahimi S. Neurofibromatosis: an update of ophthalmic characteristics and applications of optical coherence tomography. Clin Ophthalmol. 2016 May 13;10:851-60.
  3. Akinci A, Acaroglu G, Guven A, Degerliyurt A. Refractive errors in neurofibromatosis type 1 and type 2. Br J Ophthalmol. 2007 Jun;91(6):746-8. doi: 10.1136/bjo.2006.109082.
  4. Legius E, Messiaen L, Wolkenstein P, Pancza P, Avery RA, Berman Y, Blakeley J, Babovic-Vuksanovic D, Cunha KS, Ferner R, Fisher MJ, Friedman JM, Gutmann DH, Kehrer-Sawatzki H, Korf BR, Mautner VF, Peltonen S, Rauen KA, Riccardi V, Schorry E, Stemmer-Rachamimov A, Stevenson DA, Tadini G, Ullrich NJ, Viskochil D, Wimmer K, Yohay K; International Consensus Group on Neurofibromatosis Diagnostic Criteria (I-NF-DC); Huson SM, Evans DG, Plotkin SR. Revised diagnostic criteria for neurofibromatosis type 1 and Legius syndrome: an international consensus recommendation. Genet Med. 2021 Aug;23(8):1506-1513.
  5. Thavikulwat AT, Edward DP, AlDarrab A, Vajaranant TS. Pathophysiology and management of glaucoma associated with phakomatoses. J Neurosci Res. 2019 Jan;97(1):57-69.
  6. Armstrong AE, Belzberg AJ, Crawford JR, Hirbe AC, Wang ZJ. Treatment decisions and the use of MEK inhibitors for children with neurofibromatosis type 1-related plexiform neurofibromas. BMC Cancer. 2023 Jun 16;23(1):553.
  7. Avery RA, Katowitz JA, Fisher MJ, Heidary G, Dombi E, Packer RJ, Widemann BC; OPPN Working Group. Orbital/Periorbital Plexiform Neurofibromas in Children with Neurofibromatosis Type 1: Multidisciplinary Recommendations for Care. Ophthalmology. 2017 Jan;124(1):123-132.
  8. Ragge NK, Falk RE, Cohen WE, Murphree AL. Images of Lisch nodules across the spectrum. Eye (Lond). 1993;7 ( Pt 1):95-101.
  9. Lohkamp LN, Parkin P, Puran A, Bartels UK, Bouffet E, Tabori U, Rutka JT. Optic Pathway Glioma in Children with Neurofibromatosis Type 1: A Multidisciplinary Entity, Posing Dilemmas in Diagnosis and Management Multidisciplinary Management of Optic Pathway Glioma in Children with Neurofibromatosis Type 1. Front Surg. 2022 May 3;9:886697.
  10. Sellmer L, Farschtschi S, Marangoni M, Heran MKS, Birch P, Wenzel R, Mautner VF, Friedman JM. Serial MRIs provide novel insight into natural history of optic pathway gliomas in patients with neurofibromatosis 1. Orphanet J Rare Dis. 2018 Apr 23;13(1):62.