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Para Luíza, Juliana, Bruno, Luciano…

 

Uma leitora pergunta por que não estamos realizando novas pesquisas no Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da UFMG. Enviei à ela algumas razões que parecem contribuir para que, nos últimos anos, tenha aumentado nossa dificuldade para conseguirmos financiamento público e reduziram as pessoas interessadas em projetos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, apesar de várias perguntas importantes que teríamos para serem estudadas em benefício das pessoas com neurofibromatoses.

Algumas causas dessa redução das nossas pesquisas podem ser imaginadas. Uma delas seria o fato de que nós do CRNF temos nos recusado a entrar na corrida competitiva insana pela publicação de artigos científicos a qualquer preço (ver aqui nossos motivos para isso). Assim, publicando menos do que outras pessoas, pontuamos menos na disputa dos currículos e ficamos no final da lista para financiamentos públicos, apesar de nossas contribuições para o conhecimento internacional no campo das neurofibromatoses (ver aqui).

Outra razão para nossa interrupção nas pesquisas, talvez seja o fato de que também decidimos, há muitos anos, que não realizaríamos nenhuma pesquisa que tivesse financiamento de laboratórios farmacêuticos ou da indústria de equipamentos médicos para que pudéssemos manter nossa autonomia científica para realizar perguntas e obter respostas sem a influência dos interesses econômicos. Assim, estamos na contra mão de outros grupos de médicos e médicas que estão recebendo financiamentos de laboratórios para realizar pesquisas relacionadas com alguns medicamentos chamados inibidores MEK.

Por outro lado, não podemos esquecer que os governos dos últimos anos reduziram o seu investimento em pesquisa e conhecimento, pois para o neoliberalismo a construção do conhecimento e a e a educação pública não são considerados investimentos, mas custos. Com isso, sofremos cortes profundos na ciência e educação na chamada austeridade e responsabilidade fiscal impostas a todos os países (ver aqui Clara Mattei). Por isso, houve redução de recursos nos governos Temer e Bolsonaro e, mesmo no governo Lula, as universidades entraram em greve por melhores condições de trabalho.

No meio destas dificuldades, ainda conseguimos terminar alguns estudos científicos com apoio financeiro da AMANF, aqueles que haviam sido iniciados antes da pandemia, a qual também contribuiu para a quebra da nossa capacidade de realizar pesquisas.

No entanto, outra causa, talvez mais importante, foi publicada em dois artigos (ver aqui e aqui) na revista Nature, que mostraram que, em 10 anos, metade das pessoas que trabalham com pesquisa científica abandonam essa atividade e a maior parte destes abandonos ocorre entre as mulheres cientistas. O motivo? Exaustão geral e machismo no reconhecimento das mulheres.

Este achado indica que estamos diante de um problema mundial: a exploração do trabalho humano, inclusive intelectual, em busca de mais lucro, que aumentou enormemente nos últimos anos, especialmente em função da onipresença da internet, que trouxe o trabalho para casa, para nossas noites e para os finais de semana, fazendo com que a maioria das pessoas tenha passado a trabalhar permanentemente para manter o mesmo salário (ou resistir à sua queda).

Neste contexto de competição e exploração, sufocados pela necessidade de trabalhar mais e mais, não temos tempo para nos dedicar à pesquisa de longo prazo, ao estudo sem resultados tecnológicos imediatos. Perdemos aquele tempo tão necessário para o divagar criativo, para o considerar possibilidades e perguntas novas, para o tentar imaginar respostas para perguntas que todos nos fazem a respeito do conhecimento científico nas neurofibromatoses.

O resultado disso tudo é que, esgotados, renunciamos à busca pelo conhecimento científico para tentarmos sobreviver no trabalho mecânico cotidiano. Exaustos, não temos sequer energia para imaginar um novo modo de fazer ciência, uma nova sociedade, nem um futuro promissor dentro das políticas atuais públicas de investimento no conhecimento e na educação.

Quem desejar compreender melhor este momento, sugiro a leitura do livro “Nas ruínas do Neoliberalismo” da professora norte-americana de ciência política Wendy Brown.

Não estamos sozinhos neste naufrágio da ciência dedicada ao bem coletivo.

 

Dr. Lor

 

 

 

 

 

 

“Meu filho de 9 anos tem NF1 e precisou amputar a parte de baixo da perna direita por causa da displasia da tíbia que deu pseudoartrose. Ele se adaptou bem com a prótese, mas acho ele muito desanimado. Vejo os atletas paraolímpicos e fico pensando se não seria bom para sua saúde se ele tentasse praticar um esporte de competição. ” CMR, de São Paulo.

Caro C, obrigado pela sua pergunta oportuna, pois estão acontecendo no Rio as competições entre as pessoas com necessidades especiais.

De fato, a NF1 é uma doença que torna algumas pessoas portadoras de necessidades especiais e, inclusive, já existe legislação sobre isto (ver AQUI ). Estas limitações causadas pelas NF1 podem ser de ordem física (como seu filho) ou intelectuais (dificuldades psicomotoras). Além disso, sabemos que as pessoas com NF1 apresentam menos força muscular, menor capacidade aeróbica (capacidade física) e maior dificuldade de regular a temperatura do corpo, e todos estes fatores levam ao menor desempenho nos esportes.

Talvez em decorrência destas limitações físicas, as pessoas com NF1 parecem menos envolvidas em esportes e competições e, pelo contrário, apresentam um temperamento menos competitivo e mais tímido. Então, fazer com que uma criança com NF1 pratique esportes, especialmente com a finalidade de se tornar um atleta paraolímpico, pode se tornar um triplo sofrimento para ela.

O primeiro sofrimento da criança com NF1 (e talvez de todas as pessoas com quaisquer outras doenças crônicas e incuráveis) já está presente no fato dela não poder levar a vida como as demais pessoas de sua idade pelas limitações próprias da doença. Ela já carrega o peso da discriminação dos colegas por causa de suas características (serem mais lentas, apresentarem manchas, etc.)

O segundo sofrimento é que para se tornar “atleta” é preciso participar diariamente de treinamentos em atividades que não trazem prazer (especialmente para pessoas com NF1) e que, para obter resultados esportivos a pessoa deve se submeter a práticas dolorosas, desconfortáveis e que desperdiçam muitas horas de vida. Num exemplo extremo, veja a reportagem recente sobre a prática de automutilação em atletas paraolímpicos que um em cada cinco atletas paraolímpicos está fazendo para vencer competições (ver AQUI ).

O terceiro sofrimento é a pessoa com NF1 (ou vítima de outras doenças) ser eventualmente comparada pelos pais ou pelos colegas aos atletas paraolímpicos na televisão, que são apresentados como exemplos de superação e força de vontade. – Está vendo? Se você se esforçasse mais, talvez fosse capaz de fazer a mesma coisa… – pode ouvir uma pessoa com deficiência diante da televisão, onde um atleta paraolímpico acaba de receber uma medalha – Mas você é meio preguiçoso…

Mesmo tendo escrito em 2011 um dos capítulos de um livro internacional chamado “Manual de Medicina Esportiva para Atletas Paraolímpicos” (ver capa do livro na figura acima), eu já havia abandonado a prática da Medicina Esportiva (que exerci por cerca de 20 anos), por entender que o esporte de alto nível não faz bem à saúde mental e física dos atletas, especialmente aos jovens.

Pelo contrário, os níveis de competição que os esportes em geral atingiram, incluindo as olimpíadas e paraolimpíadas, provocam comportamentos neuróticos e doentios nos atletas e na sociedade. Estes comportamentos somente interessam aos patrocinadores (especialmente às indústrias de alta tecnologia) e à ideologia baseada na competição e no suposto mérito pelo esforço individual, o famoso mito do “querer é poder”.

Por isso tenho questionado o papel das competições esportivas na nossa sociedade. Estou convencido de que as atividades físicas regulares são necessárias para uma vida saudável para todos os seres humanos (que queiram fazê-las), mas não a competição envolvida nos esportes (ver cartilha sobre obesidade infantil  AQUI ).

Você pergunta se esporte poderia ser bom para a saúde de seu filho com NF1. Repito que é preciso separar as atividades físicas regulares (cotidianas, moderadas, prazerosas, lúdicas) das atividades de competição esportiva. As primeiras são necessárias para a saúde. As segundas, causam doenças físicas e sociais.

Se desejar saber um pouco mais de minha opinião sobre esportes e saúde, veja um artigo que escrevi, chamado “Ouro em panaceia” clicando  AQUI ).

Alguém poderia argumentar que a prática do esporte ajudaria a pessoa com deficiência a ser incluída na comunidade. Penso que precisamos construir uma sociedade na qual ninguém precisa provar que merece ser respeitado. Todos nascemos merecendo igualmente respeito e uma vida digna.


Apresento hoje duas perguntas que trazem uma questão em comum: a capacidade física das pessoas com Neurofibromatose do Tipo 1.

“Tenho NF1, estou com 17 anos e gostaria de saber se ela me impede de seguir carreira militar. Não tenho má formação nos ossos, mas a única coisa que identifica a NF1 são manchas pelo corpo de diferentes tamanhos, cor café com leite e outras mais escuras. ” DHS, de local não identificado.

“Meu filho de 12 anos tem NF1 e eu gostaria de saber se ele praticar esportes poderia melhorar sua timidez”. MJRZ, de São Paulo.

Cara M e caro D, obrigado pela sua participação neste blog.

Vamos partir de alguns conhecimentos já observados: as pessoas com NF1 têm menos força muscular e menor capacidade aeróbica, ou seja, elas apresentam uma desvantagem para a prática de atividades físicas em relação as demais pessoas sem a doença (clique para ver artigos sobre força e sobre capacidade aeróbica ).

Assim, tanto nas atividades militares como nas esportivas podemos esperar menor desempenho físico por parte das pessoas com NF1, o que pode ser um fator limitante para sua adequação e bem-estar nestas atividades. De fato, na minha experiência clínica não encontrei ainda uma pessoa com NF1 que tenha alcançado destaque em qualquer esporte.

Portanto, considerando que os esportes e a carreira militar selecionam as pessoas por sua capacidade física (entre outras habilidades), há grande probabilidade de que pessoas com NF1 sejam mais excluídas no processo de seleção para participar destas atividades.

Outra característica comum entre as pessoas com NF1 é a timidez, ou seja, certo retraimento social, decorrente de sua dificuldade de perceber indicadores sociais, de lentidão para interagir nos grupos, pouca habilidade de lidar com a ironia e brincadeiras, além de agressividade descontrolada quando contrariadas.

Este comportamento alterado nas pessoas com NF1 provavelmente também dificulta a sua inserção nos esportes, pois o ambiente competitivo requer rapidez nas respostas motoras e intelectuais, assim como capacidade de interagir em grupo e canalizar a agressividade para os objetivos do jogo.

Será que a prática de atividades físicas regulares poderia alterar este comportamento alterado e comum nas pessoas com NF1? Não conheço um estudo que tenha pesquisado esta possibilidade e, aliás, esta é uma ideia que poderia ser testada com métodos científicos.

No entanto, devemos pensar de forma diferente os esportes (ou seja, as COMPETIÇÕES) de outras atividades físicas, como brincadeiras, jogar bola, caminhadas, andar de bicicleta, e outras práticas nas quais NÃO HÁ COMPETIÇÃO.

Ambas as atividades, as lúdicas, ou seja, apenas por diversão, e as atividades competitivas, fazem parte de nossa natureza humana, como processos necessários ao nosso desenvolvimento cognitivo e social. No entanto, nos últimos cem anos, o esporte vem se tornando cada vez mais um grande negócio financeiro mundial (ver a máquina empresarial por trás das Olimpíadas neste momento) e um instrumento de propaganda da sociedade capitalista, transmitindo a ideia de que competir é um bem em si.

Hoje, milhões de pessoas sedentárias participam eletronicamente das atividades realizadas por um minúsculo grupo de atletas, que se tornam milionários anunciando os produtos que os espectadores consomem junto com a ideia de que competir é fundamental.

Antes de trabalhar com as neurofibromatoses, fui médico especialista em medicina esportiva e avaliei centenas de atletas de alto nível. Ao longo dos anos, fui me dando conta de que esporte não é sinônimo de saúde, mas o seu contrário: uma mistura de obsessão pelo desempenho, de narcisismo doentio, de individualismo e de lesões esportivas. Além de muita propaganda ideológica e imensos interesses financeiros, é claro.

Portanto, minha hipótese é de que realizar atividades lúdicas, prazerosas, coletivas e sem finalidade competitiva ao longo da vida poderia fazer bem às pessoas com NF1. Espero, um dia, poder testar cientificamente esta ideia.

Olá. Meu filho apresenta muita dificuldade em aprender e a escola acha que eu deveria deixa-lo numa escola especial. O que devo fazer? MCVB, de São Paulo, SP.
Caro M, obrigado por tocar nesta questão fundamental, que nos faz pensar sobre o que deveria ser o objetivo fundamental da educação escolar na nossa sociedade moderna.
A sociedade brasileira em que vivemos é complexa e organizada em classes sociais, nas quais a elite (menos de 1%) da população é proprietária de grande parte das riquezas sem precisar trabalhar, enquanto o restante tem que trabalhar para sobreviver.
Como existe mais gente precisando trabalhar do que empregos disponíveis, aqueles que têm que trabalhar são obrigados a lutar entre si numa feroz competição para garantir um salário.
Nesta competição, a alfabetização e os conhecimentos técnicos e científicos são transformados em armas, as quais garantem melhor remuneração e qualidade de vida para quem as possui.
Por outro lado, o maior nível de educação das pessoas permite o desenvolvimento tecnológico da população, o que está associado com o seu crescimento industrial e econômico.
Assim, neste modelo de sociedade, um certo tipo de educação escolar interessa tanto aos patrões quanto aos trabalhadores: a formação de mão de obra baseada na competição e na qualificação técnica. No entanto, os seres humanos são mais do que trabalhadores: somos pessoas com um grande potencial de criatividade, de relações afetivas e de felicidade.
A presença de uma criança com algum tipo de deficiência, como pode ocorrer na NF1, é um grande desafio para aquele tipo de escola baseada na competição e na produtividade, nas provas rigorosas contra o relógio, nos concursos permanentes, nas seleções contínuas, nos melhores isto e melhores naquilo, nos esportes de alto nível, nos para-casas intermináveis, nas agendas de atividades sufocantes e na ideologia do “campeão”.
Aí, vem a criança com deficiência, e ela atrapalha a lógica produtivista das escolas para crianças “normais”.
No entanto, na minha opinião, a inclusão de crianças com deficiência nas escolas comuns traz um grande benefício… para AS OUTRAS CRIANÇAS.
Quem sabe as crianças sem deficiênciaspercebam aliviadas que não precisam competir tanto entre si e no mundo a partir da convivência com o diferente, com aquele que não precisa ser o campeão, com aquele que quer apenas estar junto e ser aceito pelos seus companheiros de idade?
Quem sabe todos cresçam juntos em busca de um outro mundo possível, no qual a competição ceda seu lugar para o afeto, para a cooperação e para a solidariedade? Quem sabe, assim, seremos mais felizes?
Então, vamos lá, ocupar as escolas com nossos filhos e filhas com NF1. Para o bem de todos.