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Leandro Cruz Ramires da Silva

Médico cirurgião oncológico mastologista

e coordenador da AMA-ME

 

O desafio em busca da melhor qualidade de vida para pessoas portadoras de mutações genéticas que determinam condições crônicas, muitas vezes incapacitantes, acompanhadas de muito sofrimento para os próprios pacientes, suas famílias e seus principais cuidadores, acabou proporcionando nosso encontro, há pouco mais de cinco anos, com o Prof. Dr. Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues, coordenador do Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da UFMG.  Naquela época, eu atuava como coordenador da Mastologia na mesma instituição.

Esse desafio ganha uma dimensão ainda mais significativa quando essas mutações genéticas afetam nossos próprios familiares, nossos filhos e filhas. O fato de sermos médicos e pais nos transporta da convivência com esses pacientes, que antes se limitava ao ambiente hospitalar e ao consultório, para dentro de nossas casas. Aprendemos, de maneira privilegiada, a nos colocar no lugar do outro e a sentir “o peso do piano”. Desenvolvemos uma empatia mais profunda e canalizamos nossos esforços, iniciados desde a graduação em medicina, na busca por conhecimento e alternativas médicas, e não médicas, que possam melhorar a qualidade de vida, minimizando o desconforto e o sofrimento de nossos filhos e, consequentemente, de outros pacientes que compartilham dessas mesmas condições.

Neste contexto, nasceu a Associação Brasileira de pacientes de Cannabis Medicinal (ama-me), que em 2024 completa 10 anos e o Centro de Referência em Neurofibromatose do HC/UFMG, uma realização da Associação Mineira de Apoio aos Portadores de Neurofibromatoses (AMANF), que celebra 20 anos. A ama-me, entidade do terceiro setor sem fins lucrativos, surgiu inicialmente da necessidade de controlar, de forma sustentável, as crises convulsivas de crianças portadoras de epilepsia refratária e autismo, muitas delas decorrentes de doenças de origem genética, como as Síndrome de Dravet, Lennox Gastaut, West, CDKL5 dentre outras.

Nos últimos anos o Sistema Endocanabinoide (SEC)(1), tornou-se um alvo terapêutico muito importante, com evidências científicas cada vez mais crescentes, para:

  1. Distúrbios de Humor e Ansiedade: O SEC tem sido implicado no tratamento de distúrbios de ansiedade e humor, como Transtorno de Pânico, Transtorno de Ansiedade Social, Transtorno de Ansiedade Generalizada, Transtorno de Estresse Pós-Traumático e Transtorno Obsessivo-Compulsivo

 

  1. Câncer: O SEC desempenha um papel significativo no tratamento de vários tipos de câncer. Canabinoides têm demonstrado propriedades apoptóticas, anti-metastáticas, antiangiogênicas e anti-inflamatórias em diferentes modelos de câncer, como câncer de mama, pulmão, próstata, pele, entre outros.

 

  1. Doenças Neurológicas/Neurodegenerativas: O SEC é relevante no tratamento de doenças neurodegenerativas, como Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), Doença de Alzheimer, Parkinson, Huntington, entre outras. Os canabinoides possuem propriedades neuroprotetoras e modulam a inflamação, podendo aliviar sintomas associados a essas condições.

 

  1. Doenças Autoimunes: O SEC também está implicado no tratamento de doenças autoimunes, como Esclerose Múltipla, Artrite Reumatoide, Doenças Inflamatórias Intestinais (como a Doença de Crohn e Colite Ulcerativa), Lúpus Eritematoso Sistêmico, entre outras. A interação dos canabinoides com os receptores CB1 e CB2 ajuda a regular o sistema imunológico e a resposta inflamatória.

 

  1. A neurofibromatose tipo 1 (NF1) é uma das condições monogenéticas mais comuns e está associada a uma variedade de complicações de saúde, incluindo tumores benignos e malignos (como gliomas da via óptica, neurofibromas plexiformes, tumores malignos da bainha dos nervos periféricos e outros tumores do SNC), dores neuropáticas, dores de cabeça, convulsões, ansiedade, depressão, insônia, risco aumentado de constipação e síndrome do intestino irritável, dificuldades de aprendizagem ou atraso na fala, distúrbios de déficit de atenção, escoliose e risco elevado de outros tipos de câncer (como rabdomiossarcomas). Dadas as diversas manifestações, os problemas neurocognitivos e o risco de desfiguração e até mesmo de morte, não é surpreendente que pessoas com NF1 relatem uma diminuição significativa na qualidade de vida(2).

Estudo de longo prazo de uma coorte dinamarquesa de adultos com NF1 mostrou uma frequência aumentada de hospitalizações devido a doenças que afetam todos os sistemas do corpo ao longo de todas as fases da vida. Há um risco significativamente maior de transtornos psiquiátricos, incluindo distúrbios do desenvolvimento, como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e transtornos do espectro autista, além de maior dificuldade em estabelecer relações sociais. Mulheres com NF1 apresentam um risco aumentado de abortos espontâneos e natimortos. Indivíduos com NF1 relatam uma qualidade de vida reduzida, com uma alta necessidade de apoio profissional para lidar com problemas físicos, psicológicos e relacionados ao trabalho. A gravidade e a visibilidade da doença estão parcialmente associadas ao bem-estar psicossocial e à necessidade de suporte adicional(3).

Diante da complexidade dos sintomas associados à convivência com a NF1, o potencial terapêutico da Cannabis utilizada para fins medicinais pode contribuir significativamente para a melhoria da qualidade de vida desses pacientes. Segundo o Mapa de Evidências sobre a Efetividade da Cannabis Medicinal, elaborado pela WeCann Academy em colaboração com a OPAS/BIREME e o CABSIN (disponível no link: https://mtci.bvsalud.org/en/evidence-map-on-effectiveness-of-medicinal-cannabis/), existem evidências robustas que apoiam a eficácia da Cannabis na melhora de condições como dor (crônica, neuropática, oncológica), espasticidade, náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia, epilepsia, ansiedade, insônia e doenças inflamatórias intestinais.

 

Nesse contexto, o uso medicinal da Cannabis torna-se uma opção atraente para pacientes com NF1, oferecendo algumas vantagens consideráveis, tais como:

Segurança: Não há registros de morte por overdose de Cannabis ou de seus derivados naturais.

Tolerabilidade: Em geral, os medicamentos à base de Cannabis são bem tolerados. O principal efeito adverso é o efeito psicoativo desencadeado pelo THC, que é dose-dependente e pode ser minimizado através da combinação com CBD. Além disso, a tolerância aos efeitos psicoativos desenvolve-se rapidamente, permitindo que os pacientes mantenham doses constantes sem necessidade de aumento ao longo do tempo (4).

Acessibilidade: Produtos à base de Cannabis já estão autorizados pela ANVISA e disponíveis em farmácias no Brasil. Além disso, a importação de produtos semelhantes, com maior variedade e menor custo, é possível através de um processo simplificado de obtenção de autorização para importação mediante prescrição médica, disponível no link: https://www.gov.br/pt-br/servicos/solicitar-autorizacao-para-importacao-excepcional-de-produtos-a-base-de-canabidiol.

Redução da polimedicação: O envolvimento do SEC em várias condições fisiopatológicas permite que o uso medicinal da Cannabis possa proporcionar alívio para uma série de condições que, de outra forma, necessitariam de um número maior de medicamentos. Isso, por sua vez, reduz o custo total do tratamento.

Autonomia: Com o tempo, o paciente torna-se capaz de avaliar seus próprios resultados com a terapia fitocanabinoide e fazer ajustes pontuais na medicação para obter melhores resultados.

 

A terapia com Cannabis para fins medicinais envolve o uso de óleos medicinais, cápsulas, cremes, pomadas, soluções e até supositórios, que podem ser produzidos a partir do extrato de Cannabis, constituído pelo insumo farmacêutico ativo obtido através da extração da resina presente nas flores secas das plantas fêmeas. A aplicação pode ser feita na mucosa oral, sublingual, por via oral ou vaporizada (aspirada). A taxa e a velocidade de absorção, o início do efeito e a metabolização dos fitocanabinoides estão diretamente relacionadas com a via de administração escolhida. As próprias flores secas são reconhecidas como medicinais e podem ser vaporizadas para proporcionar alívio mais rápido da dor.

De modo geral, os medicamentos de Cannabis são classificados em três quimiotipos principais: Quimiotipo I, com predominância de THC; Quimiotipo II, onde existe um equilíbrio entre as concentrações de THC e CBD; e Quimiotipo III, com predominância de CBD. A terapêutica canabinoide difere da terapêutica alopática convencional por ser mais individualizada. O mesmo quimiotipo pode proporcionar conforto e alívio para uma variedade de sintomas em um paciente e não ter a mesma eficácia em outros. A estratégia terapêutica deve começar com doses baixas, sendo os ajustes feitos gradualmente conforme os resultados, sempre dentro do contexto de acompanhamento próximo e de uma boa relação médico-paciente.

Além do CBD e do THC, outros fitocanabinoides (ver tabela 01.) também apresentam potencial terapêutico e podem ser úteis na melhora da qualidade de vida de portadores de NF1. De modo geral, quanto mais próximo da planta inteira for o medicamento, melhor será o efeito terapêutico alcançado. O uso de fitocanabinoides isolados, além de apresentar menor potencial terapêutico, está associado a uma maior possibilidade de efeitos colaterais indesejáveis. O uso da planta inteira favorece o “Efeito Entourage”, que caracteriza a relação sinérgica entre todos os compostos químicos presentes na Cannabis, promovendo melhor tolerabilidade e menos efeitos colaterais.

 

Tabela 01: Efeitos farmacológicos dos principais fitocanabinoides 

Fitocanabinoides Efeitos Farmacológicos
CDB Antiepiléptico, antioxidante, anti-inflamatório, antiemético, imunossupressor, antipsicótico, neuroprotetor, antineoplásico
Δ 9 -THC Antioxidante, antipruriginoso, anti-inflamatório, neuroprotetor, analgésico, antineoplásico, antináusea
CBG Antibacteriano, antifúngico, anti-inflamatório, previne a proliferação celular, antineoplásico, antidepressivo, anti-hipertensivo, analgésico
CBC Anti-inflamatório, analgésico
CBN Sedativo, anticonvulsivante, anti-inflamatório, antibiótico, antineoplásico
THCV Perda de peso, anticonvulsivante, anti-hiperalgesia, anti-inflamatório, antineoplásico
CBDV Inibe a degradação endocanabinóide, antináusea, anticonvulsivante, antineoplásico

Dor crônica, ansiedade, depressão, insônia, síndrome do intestino irritável, espasticidade, crises convulsivas, autismo e câncer são condições clínicas que ocorrem com maior frequência na população com NF1 e serão abordadas de forma individualizada a seguir.

 

Dor (crônica, neuropática, oncológica)

Os receptores canabinoides estão amplamente distribuídos por várias vias de modulação da dor, incluindo neurônios sensoriais centrais e periféricos, regiões do cérebro responsáveis pela discriminação sensorial, circuitos reguladores da dor no tronco encefálico e estados afetivos que modulam as respostas emocionais a estímulos nocivos, como a dor.

Os endocanabinoides AEA e 2-AG podem fornecer uma das primeiras respostas terapêuticas à dor (por exemplo, por meio da modulação dos receptores CB1, CB2, TRPs, PPARs e opioides), desbloqueando uma ou mais vias disponíveis para alcançar efeitos analgésicos.

Terapias baseadas em fitocanabinoides (por exemplo, THC, CBD) têm demonstrado graus variados de eficácia no tratamento dos oito tipos básicos de dor: crônica, aguda, central, periférica, inflamatória, nociceptiva, patológica e mental-emocional.

Um estudo multicêntrico transversal analisou pacientes com dor crônica devido à lesão medular espinhal que usavam regularmente cannabis medicinal (inalada, spray na mucosa oral e óleos medicinais). Esses pacientes relataram melhoras em espasmos (90,3%), padrões de sono (83,5%), sensação de bem-estar (75,4%) e diminuição da ansiedade (69,7%), além de melhora no apetite (53,3%) e na percepção da dor. Os efeitos adversos mais comuns atribuídos ao uso de cannabis medicinal foram boca seca (54,5%), gosto ruim na boca (29,6%), desidratação (28,7%), perda de memória (27,2%), letargia (26,3%), sonolência (21,7%) e constipação intestinal (17,2%). No mesmo estudo, pacientes que não utilizavam cannabis relataram desidratação (42,4%), perda de memória (32,1%), letargia (46,4%), sonolência (49,1%) e constipação intestinal (46,3%), todos esses efeitos adversos foram mais comuns em comparação usuários de Cannabis(5).

Em relação à dor crônica, neuropática ou não, o tratamento com cannabis medicinal busca atingir os seguintes objetivos: melhorar a eficácia analgésica geral, a autonomia, o sono e o humor; reduzir a carga de sintomas específicos da doença, a anedonia, a ansiedade, o uso de opioides, benzodiazepínicos, relaxantes musculares, hipnóticos, anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), além do uso de substâncias ilícitas e lícitas (álcool, tabaco)(5).

Como sugestão para o tratamento da dor, o paciente pode iniciar com 5 mg de CBD duas vezes ao dia e aumentar a dosagem em 10 mg/dia (5 mg de CBD 2x ao dia) a cada 2 a 3 dias, até atingir 40 mg de CBD por dia. Se a dose predominante de 40 mg/dia de CBD não atingir os objetivos de tratamento, os médicos podem considerar iniciar com 2,5 mg de THC por dia e aumentar a dosagem em 2,5 mg de THC a cada 2–7 dias, até 40 mg/dia, mantendo a mesma dose predominante de CBD(5).

 

Ansiedade e depressão

Centenas de estudos foram conduzidos para examinar o envolvimento de todos os componentes do Sistema Endocanabinoide (SEC) no tratamento de transtornos de ansiedade e pânico. Uma porcentagem crescente desses estudos consiste em ensaios clínicos humanos de alta qualidade, incluindo várias revisões sistemáticas e metanálises. A literatura disponível atualmente descreve em detalhes como os fitocanabinoides e outros constituintes da planta de cannabis modulam os fundamentos biológicos e os estados de humor relacionados à ansiedade.

Quando comparados a controles saudáveis, pacientes com ansiedade apresentam alterações na expressão de receptores canabinoides(6), níveis de endocanabinoides(7), suas enzimas metabolizadoras correspondentes(8), além de um tônus ​​endocanabinoide alterado, resultando em sinalização endocanabinoide prejudicada(9).

Em pacientes com ansiedade, uma dose baixa de THC (por exemplo, 1-2 mg/dia) foi eficaz na redução  ansiedade sem produzir efeitos adversos significativos(10). Por outro lado, doses iguais ou superiores a 10 mg/dia de THC (administração oral) podem aumentar a ansiedade(11) quando administrado de forma isolada. No entanto, quando administrado na forma de óleo integral “full spectrum” que envolve todos os componentes da planta, o THC é muito seguro até uma dose de 30 mg/dia. A coadministração de THC e CBD  é vista como  benéfica em comparação ao uso de THC isolado em versão farmacêutica(4). Tratamentos orais com 600 mg de CBD foram capazes de neutralizar a ansiedade induzida por 10 mg de THC em voluntários humanos(12).

O THC pode induzir efeitos ansiolíticos ou, em doses mais altas, efeitos ansiogênicos e paranoicos, ou seja, quanto maior a dose de THC, maior a probabilidade de causar ou agravar estados de ansiedade. Para reduzir esse impacto, a coadministração de CBD e o controle da forma e via de administração são fundamentais.

O CBD induz mudanças de humor suaves e positivas, sem causar alterações na cognição ou sedação. Uma dose de 300 mg de CBD por dia, administrada durante quatro semanas, reduziu significativamente a ansiedade em adolescentes diagnosticados com transtorno de ansiedade social(13). A ação ansiolítica direta do CBD pode ser modulada por meio das vias de receptores de serotonina(14). Indiretamente, a inibição da FAAH pelo CBD pode aumentar a concentração de AEA, ajudando a regular a ansiedade(15).

Os resultados de pesquisas pré-clínicas e clínicas sugerem que o CBG possui propriedades ansiolíticas. O mecanismo pelo qual o CBG atua como ansiolítico ainda não está completamente elucidado, pois evidências “in vivo” e “in vitro” indicam que o CBG pode atuar como um antagonista do receptor 5-HT1A em doses mais altas, diferentemente do CBD(16). Além disso, o CBG pode inibir a recaptação de GABA, contribuindo para o alívio da ansiedade e dos espasmos musculares.

Há um crescente corpo de evidências científicas sugerindo que a homeostase proporcionada pelo Sistema Endocanabinoide (SEC) está envolvida tanto na patogênese quanto no tratamento da depressão. Relatos indicam que a cannabis pode exercer tanto efeitos pró-depressivos quanto antidepressivos, dependendo do quimiotipo utilizado (por exemplo, o uso de um Quimiotipo I de cannabis, com predominância de THC sobre o CBD). Diversos ensaios pré-clínicos demonstraram que a modulação dos receptores canabinoides clássicos, como CB1 e CB2, bem como de outros receptores sensíveis a canabinoides (por exemplo, 5-HT1A/serotonina, adrenérgicos, glutamatérgicos), pode produzir efeitos terapêuticos semelhantes aos dos antidepressivos farmacêuticos.

Dadas as limitações e a falta de resultados positivos a longo prazo dos tratamentos farmacêuticos tradicionais, o mecanismo preciso de modulação do Sistema Endocanabinoide (SEC) para produzir efeitos antidepressivos tornou-se objeto de intensa investigação. Estudos demonstraram que o THC pode produzir tanto efeitos pró-depressivos quanto antidepressivos, provavelmente de forma dose-dependente (quanto maior a dose de THC, maior o risco de efeitos adversos). Em contraste, o CBD tem mostrado resultados predominantemente positivos na mitigação dos sintomas de depressão, apresentando, ao mesmo tempo, um perfil de segurança muito favorável(17). Além disso, vários terpenos comuns da cannabis, como terpineol, beta-cariofileno, limoneno, pineno e linalol, demonstraram eficácia na mitigação dos sintomas da depressão.

Uma revisão sistemática de ensaios clínicos (26) relatou faixas de dosagem efetivas para o uso oral de CBD no tratamento de várias condições, variando entre 1 e 50 mg/kg/dia (com uma média de 15 mg/kg/dia, por exemplo, 1050 mg para uma pessoa pesando 70 kg). No entanto, devido às diferentes sensibilidades individuais, um regime de dosagem baseado em mg/kg pode não ser o método mais preciso; é preferível titular os pacientes a partir de doses iniciais mais baixas. O CBD demonstrou reduzir a ansiedade e a depressão sem causar alterações cognitivas ou efeitos sedativos. Doses a partir de apenas 50 mg/dia, distribuídas em duas ou três administrações diárias, podem apresentar efeitos positivos no controle da ansiedade e depressão. Bons resultados são observados com doses entre 100 e 150 mg de CBD por dia.

 

Insônia

A Cannabis tem sido usada há milênios para ajudar as pessoas a terem um boa noite de sono. A AEA, um agonista dos receptores CB1, aumenta o sono de ondas lentas e o sono REM (movimento rápido dos olhos), além de reduz a vigília(18), favorecendo a ocorrência de sonhos. Os fitocanabinoides THC e CBN, ambos agonistas nos mesmos receptores, demonstraram efeitos indutores do sono semelhantes, sendo que a combinação de THC e CBN apresenta efeitos indutores do sono mais significativos do que o THC sozinho e muito mais do que o CBN isoladamente(19).

Além do SEC, outros receptores como os de serotonina, dopamina, GABA e receptores adrenérgicos, também respondem favoravelmente a endocanabinoides, fitocanabinoides e terpenos, auxiliando na indução e regulação do humor e o sono. Os efeitos do uso de fitocanabinoides individuais são dose-dependentes, ou seja, a quantidade de um único canabinoide (THC, CBD, CBN) pode determinar resultados indesejados se for excessiva ou insuficiente. A proporção entre THC, CBN e CBD, bem como a presença de outros constituintes da planta, como terpenos (por exemplo, mirceno, linalol e limoneno), pode desempenhar um papel significativo na determinação do que funcionará melhor para cada paciente. Facilitar o adormecimento, promover um sono profundo, garantir sonhos sem pesadelos, manter o sono durante a noite e evitar a sonolência residual no dia seguinte são os principais objetivos da terapia com fitocanabinoides em busca da melhor qualidade do sono.

O THC pode promover o sono e reduzir o tempo necessário para adormecer, mas também pode causar sonolência matinal ou, em dosagens mais altas ou em indivíduos mais sensíveis, provocar pânico e ansiedade, piorando a insônia. Embora o THC possa ajudar a lidar com pesadelos relacionados ao estresse pós-traumático, pessoas que consomem grandes e frequentes quantidades de THC podem relatar uma ausência completa de sonhos.

O CBN tem uma sinergia significativa com o THC e pode ser especialmente vantajoso em casos em que o THC sozinho não é suficiente para promover o sono. Embora estudos clínicos diretos sejam escassos, revisões sistemáticas e um estudo duplo-cego sugerem começar com uma dose noturna de THC entre 2,5 a 10 mg, associada a CBN na faixa de 20 mgou mais como ponto de partida (20).

O CBD também possui um efeito bifásico dependente da dose: auxilia na qualidade do sono em dosagens de 50 a 160 mg/dia(21, 22), mas induz a vigília em dosagens em doses de 15 mg/dia(23).

 

Síndrome do Cólon irritável

O tratamento da dor visceral em pacientes com distúrbios da interação intestino-cérebro, como a síndrome do intestino irritável (SII), apresenta um desafio clínico considerável, com poucas opções terapêuticas disponíveis. Cada vez mais, os pacientes têm recorrido à cannabis e aos canabinoides para controlar a dor abdominal. A cannabis atua nos receptores do sistema endocanabinoide, um sistema endógeno de mediadores lipídicos que regula a função gastrointestinal e as vias de processamento da dor, tanto em condições normais quanto patológicas. O sistema endocanabinoide representa, portanto, um alvo terapêutico molecular lógico para o tratamento da dor associada à síndrome do intestino irritável(24). No que diz respeito à SII, não há dados que sugiram a superioridade de um quimiotipo em detrimento de outro, o que oferece flexibilidade para os pacientes escolherem a opção que melhor ajude a controlar seus sintomas.

 

Espasticidade

A eficácia do Quimiotipo II (CBD e THC em proporções semelhantes) no tratamento da espasticidade decorrente de esclerose múltipla foi estudada em quatro ensaios clínicos randomizados e controlados por placebo, todos demonstrando resultados positivos. Esses estudos avaliaram o uso do spray bucal Mevatyl® (Quimiotipo II, com 27 mg/ml de THC e 25 mg/ml de CBD), e as doses variavam entre os pacientes. Em média, seis a doze aplicações diárias mostraram-se eficazes no controle da espasticidade. Óleos medicinais integrais de Cannabis ricos em THC, utilizados por via sublingual apresentam resultados a partir de 4,0 mg/dia divididas em três ou quatro tomadas.

 

Epilepsia e autismo

Mais de uma centena de estudos primários, incluindo vários ensaios clínicos, examinaram diretamente os componentes do sistema endocanabinoide no contexto do tratamento da epilepsia. Agora, temos uma base científica relativamente sólida que nos permite tomar decisões mais sábias e práticas sobre que tipo de cannabis e quais compostos específicos provavelmente produzirão resultados anticonvulsivantes ideais da forma mais segura possível.

Mais de 40 estudos clínicos, incluindo ensaios rigorosos aprovados pela FDA, avaliaram a eficácia de um quimiotipo III de cannabis (com predominância de CBD e pouco ou nenhum THC) ou de um produto farmacêutico purificado à base de CBD, demonstrando potencial terapêutico para a epilepsia. Em pacientes com a síndrome de Dravet, o canabidiol, utilizado na dose de 20 mg/kg/dia em adição ao tratamento antiepiléptico padrão, ao longo de 14 semanas, resultou em uma redução significativa na frequência de convulsões em comparação ao placebo, embora tenha sido associado a taxas mais elevadas de eventos adversos(25).

Pacientes autistas tratados com medicamentos à base de cannabis ricos em CBD e THC, numa proporção Pacientes autistas tratados com medicamentos à base de cannabis ricos em CBD e THC, numa proporção de 20:1 (ou seja, 20 partes de CBD para uma de THC), apresentaram melhora na maioria dos principais sintomas do autismo, além de uma melhoria na qualidade de vida dos pacientes e suas famílias. Nesses casos, os efeitos colaterais são geralmente leves e pouco frequentes. Além disso, a alotriofagia (hábito de comer substâncias que não são alimentos) pode ser tratada com medicamentos à base de cannabis. Os resultados favoráveis alcançados com óleos medicinais integrais de cannabis também contribuem para a redução ou suspensão de outros medicamentos, diminuindo, assim, os efeitos adversos associados a esses tratamentos  (26).

É importante ter em mente que há diferenças significativas entre produtos medicinais de cannabis da planta inteira, CBD de espectro completo ou amplo, e a forma farmacêutica isolada do CBD. Os benefícios específicos da forma farmacêutica não necessariamente se aplicam a todos os produtos de cannabis ou CBD, devido às variações na qualidade e nos processos de fabricação.

 

Quimioterapia, cuidados paliativos, náusea e vômitos

Até o momento, a literatura científica disponível apoia, favorece ou, na pior das hipóteses, sugere a necessidade de mais estudos sobre o uso de terapias baseadas em canabinoides no contexto de cuidados paliativos. Vários ensaios clínicos em humanos testaram direta e especificamente os efeitos dos canabinoides em cuidados paliativos. Recentemente, um estudo clínico randomizado e duplo-cego, realizado em 2023, relatou que a maioria dos participantes se sentiu “melhor” ou “muito melhor” após 14 e 28 dias de tratamento com óleo de CBD (dose média de 400 mg, concentração de 100 mg/ml, administrado de 0,5 ml uma vez ao dia até 2,0 ml três vezes ao dia). No entanto, não houve diferença significativa em outros desfechos, como qualidade de vida, depressão e ansiedade, conforme demonstrado em estudos anteriores(27).

A cannabis tem se mostrado um remédio eficaz para o tratamento de náuseas e vômitos induzidos pela quimioterapia. Ao longo das últimas cinco décadas, uma vasta quantidade de literatura científica tem confirmado esse uso histórico dos constituintes da planta (principalmente THC e, em menor grau, THCA, CBD e CBDA) e elucidado uma série de mecanismos receptores precisos (principalmente via CB1, mas também via 5-HT1A e TRPV1) pelos quais os canabinoides produzem seus efeitos terapêuticos em casos de náusea e vômito induzidos pela quimioterapia.

Além disso, o CBD oral tem demonstrado ser eficaz na prevenção da neuropatia periférica aguda e transitória induzida por quimioterapia, quando administrado na dose de 150 mg de óleo de CBD duas vezes ao dia (300 mg/dia) por 8 dias, começando 1 dia antes do início da quimioterapia(28).

Em 2020, um estudo apresentado e publicado pela European Society for Medical Oncology (ESMO) considerou 81 pacientes elegíveis que apresentavam náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia intravenosa hematogênica, apesar da profilaxia antiemética consistente com as diretrizes. Esses pacientes foram randomizados para receber tratamento com cannabis medicinal. O tratamento consistiu em um ciclo de 1 a 4 cápsulas de THC 2,5 mg/CBD 2,5 mg, administradas três vezes ao dia. A adição de THC e CBD orais aos antieméticos padrão foi associada a uma redução nas náuseas e vômitos, e a maioria dos participantes preferiu o tratamento com THC e CBD ao placebo, mesmo na presença de efeitos colaterais, como sedação, tontura ou desorientação(29).

À medida que a ciência avança e os benefícios terapêuticos da cannabis medicinal se tornam cada vez mais evidentes, o preconceito contra seu uso por parte de pacientes e médicos está, lentamente, dando lugar a uma compreensão mais informada e compassiva. Para pacientes portadores de neurofibromatoses, a cannabis medicinal oferece uma nova esperança para o manejo de sintomas complexos e debilitantes. A crescente aceitação de tratamentos à base de cannabis reflete uma mudança significativa na mentalidade médica, focada não apenas em tratar a doença, mas em melhorar a qualidade de vida. Esta evolução no entendimento e na prática clínica sinaliza um futuro onde a cannabis medicinal será cada vez mais vista como uma opção legítima e valiosa para o tratamento de condições crônicas impostas pelas neurofibromatoses.

 

Bases farmacológicas da Cannabis medicinal

A Cannabis, nome científico da maconha, é uma planta angiospérmica que existe em nosso planeta há aproximadamente 32 milhões de anos e é utilizada com fins medicinais desde 2.700 a.C., além de ser fonte de fibras para tecidos e cordoaria há mais de 12.000 anos. De origem asiática, a maconha surgiu no noroeste daquele continente, em regiões montanhosas do Himalaia, norte da Índia e na parte mais ocidental da China. Em seu habitat natural, as plantas da família Cannabaceae, do gênero Cannabis, são distribuídas em três espécies: Sativa, Indica e Ruderalis. Domesticada há milénios pela humanidade, atualmente existem centenas de variedades de cannabis, obtidas através de cruzamentos botânicos, que se diferenciam principalmente pelas concentrações de seus componentes químicos: fitocanabinoides, terpenos e flavonoides.

Os fitocanabinoides são uma classe estruturalmente diversa de constituintes químicos naturais do gênero Cannabis. Essa classificação química é amplamente baseada na derivação de um precursor conhecido como ácido canabigerólico (CBGA) ou seu análogo, o ácido canabigerovárico (CBGVA), resultando na produção de aproximadamente 140 moléculas. Essas moléculas, isoladamente ou em conjunto com outros constituintes químicos da planta, produzem efeitos medicinais que variam do sistema nervoso central (SNC) ao sistema imunológico. Os mais conhecidos incluem o Delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), principal responsável pelo efeito psicoativo, o Canabidiol (CBD), o Canabigerol (CBG), o Canabinol (CBN) e a Tetrahidrocanabivarina (THCV), entre outros(30).

Desde os anos 80, um estudo brasileiro pioneiro, duplo-cego, prospectivo e randomizado, coordenado pelo Prof. Dr. Elisaldo Carlini, confirmou o benefício do Canabidiol (CBD), um fitocanabinoide, no controle de crises convulsivas em pacientes adultos(31). Naquela época o mecanismo de ação dos fitocanabinoides era desconhecido.

Ainda no final da década de 80, foi identificado, nas células nervosas, o código do DNA responsável pelo surgimento de Receptores Canabinoides de membrana celular conhecidos como CB1 abundantes nas células do SNC e periférico(32). Um segundo receptor, conhecido como CB2, foi identificada por homologia de sequência e presume-se que esteja presente na periferia, principalmente em células do sistema imunológico(33). Hoje, sabemos que CB2 também está presente no SNC. Os receptores CB1 e CB2 são bem caracterizados como receptores acoplados a proteína transmembrana G. Ambos reconhecem várias classes de compostos agonistas e antagonistas, produzindo uma variedade de efeitos celulares distintos a jusante. Polimorfismos naturais e variantes de splicing alternativo também podem contribuir para a diversidade farmacológica. À medida que o conhecimento sobre eles cresce, adquirimos a capacidade de direcionar conformações específicas dos receptores e suas respostas farmacológicas correspondentes(34).

Uma vez descobertos, os receptores canabinoides CB1 e CB2 foram identificados em diversas células do organismo humano, e sua distribuição é crucial para o entendimento do potencial terapêutico do Sistema Endocanabinoide (SEC)(1):

  1. CB1: Está densamente presente no cérebro, em áreas responsáveis pela memória, aprendizagem, coordenação motora, regulação de hormonal, percepção sensorial, recompensa, emoções e temperatura corporal. No tronco cerebral, área crucial para manutenção da vida, a concentração é inexpressiva. Além disso, CB1 também é encontrado em níveis mais baixos em outras partes do sistema nervoso central e em tecidos periféricos, como o fígado, o tecido adiposo e o sistema gastrointestinal.

 

  1. CB2: Este receptor é predominantemente encontrado nas células do sistema imunológico, como macrófagos e micróglia, e em células envolvidas em processos inflamatórios. A expressão de CB2 é alta em células imunes, e sua ativação está associada a propriedades imunossupressoras, como a indução de apoptose em células T e macrófagos, e a regulação da liberação de citocinas pró-inflamatórias.

Em 1992, Mechoulam e seu grupo identificaram a Anandamida (AEA), um endocanabinoide, produzido pelo próprio organismo, derivado do ácido araquidônico, que interage com o receptor CB1 de forma agonista(35). Em 1995, o mesmo grupo descreveu outro endocanabinoide, trata-se de uma molécula análoga à anandamida contendo um radical glicerol, o 2-arachidonoyl-glycerol (2AG), localizado no intestino de ratos, que apresentava afinidade pelos receptores canabinoides, embora com menos intensidade que o THC(36). A produção de AEA e 2AG ocorrem sob demanda a partir de precursores de fosfolipídios da membrana celular por múltiplas vias biossintéticas, ou seja, apenas quando necessário, em resposta a estímulos fisiológicos. Não existem reservatórios endógenos de endocanabinoides.

As enzimas precursoras dos endocanabinoides incluem N-aciltransferase (NAT) e N-acilfosfatidiletanolamina (NAPE-PLD) para a síntese de AEA e diacilglicerol (DAGLα/β) para a síntese de 2AG. Após cumprirem sua função, os endocanabinoides são metabolizados pelas enzimas Amida de ácidos graxos hidrolase (FAAH), que degrada a anandamida AEA, e a monoacetilglicerol lipase (MAGL), que degrada o 2AG. A inativação seletiva das enzimas de metabolização (FAAH e MAGL) representa uma abordagem promissora. O CBD tem sua ação potencializada porque é um inibidor da FAAH(37).

Receptores canabinoides CB1 e CB2; seus ligantes endocanabinoides AEA e 2AG, suas enzimas precursoras NAT, NAPE-PLD, DAGLα/β, e suas enzimas de metabolização FAAH E MAGL, compõem o Sistema Endocanabinoide (SEC) que está intrinsecamente relacionado a várias funções fisiológicas essenciais para manter a homeostase do organismo. Esse sistema abriu novas frentes de pesquisa, evidenciando seu papel não apenas na transmissão de estímulos nervosos, mas também no sistema imunológico (7). Os fitocanabinoides e outros canabinoides sintéticos interagem direta e indiretamente com os receptores canabinoides e outros receptores, ampliando o potencial terapêutico, como exemplificado abaixo(1):

  1. Receptor GPR55: É considerado um receptor canabinoide “órfão”, tem sido proposto como um receptor canabinoide tipo 3. GPR55 está envolvido em várias funções fisiológicas, incluindo a modulação da dor e a regulação da pressão arterial, e pode mediar efeitos inflamatórios.

 

  1. Receptores TRPV1 (Transient Receptor Potential Vanilloid 1): Embora não seja um receptor canabinoide clássico, o TRPV1 interage com os endocanabinoides como a anandamida. Esse receptor é conhecido por sua função na detecção e regulação da temperatura corporal e na modulação da dor.

 

  1. Receptores PPARs (Peroxisome Proliferator-Activated Receptors): São receptores nucleares que também podem ser ativados por endocanabinoides. Os PPARs desempenham um papel crucial na regulação do metabolismo, na inflamação e na homeostase energética.

No sistema nervoso, quando ocorre uma sobrecarga de estímulos a partir do neurônio pré-sináptico, os neurônios pós-sinápticos iniciam produção aumentada de AEA e/ou 2AG que atuam de maneira retrograda, ocupando receptores específicos no neurônio pré-sináptico. Essa ocupação leva à redução do estímulo nervoso, uma vez que a membrana neuronal se modifica para reter os neurotransmissores, cessando, assim, a continuidade do estimulo nervoso.

Assim como o SEC promove a modulação do sistema nervoso, a ação dos endocanabinoides nos receptores CB2, nas células do sistema imunológico, promove seu equilíbrio, impedindo seu funcionamento exacerbado.  Ambas as ações são fundamentais para a manutenção da vida.  O SEC é um sistema molecular vital manter a homeostase.

Homeostasia, do grego “homeo” (igual) e “stasis” (estático), é a condição de relativa estabilidade necessária para que o organismo realize suas funções adequadamente. É a propriedade de um sistema aberto, especialmente dos seres vivos, de regular seu ambiente interno, mantendo uma condição estável por meio de múltiplos ajustes de equilíbrio dinâmico, controlados por mecanismos de regulação inter-relacionados.

O SEC foi detectado na Hydra vulgaris, uma pequena espécie de cnidário de água doce, que mede entre 10 e 30 milímetros, que surgiu há aproximadamente 600 milhões de anos. Esse organismo, um dos mais primitivos com um sistema nervoso rudimentar, possui receptores canabinoides semelhantes aos encontrados em mamíferos e é capaz de produzir anandamida. Caracterizada por seu corpo tubular e simétrico radialmente, com uma extremidade contendo tentáculos que envolvem uma cavidade bucal(38), a Hydra é um exemplo de como o desenvolvimento do SEC foi fundamental para o processo evolutivo da vida em nosso planeta.

No ser humano, o SEC está implicado em uma ampla gama de processos fisiológicos e fisiopatológicos, incluindo o desenvolvimento do sistema nervoso, função imune, inflamação, apetite, dor, ciclos de vigília/sono, regulação do metabolismo e da energia, homeostase, função cardiovascular, digestão, reprodução, desenvolvimento e densidade óssea, plasticidade sináptica e aprendizado, regulação do estresse, estado emocional e humor, bem como em doenças psiquiátricas, psicomotoras, comportamentais, de memória e autoimunes.

 

Referências:

  1. Lowe H, Toyang N, Steele B, Bryant J, Ngwa W. The Endocannabinoid System: A Potential Target for the Treatment of Various Diseases. Int J Mol Sci. 2021;22(17).
  2. Fjermestad KW, Nyhus L, Kanavin Ø J, Heiberg A, Hoxmark LB. Health Survey of Adults with Neurofibromatosis 1 Compared to Population Study Controls. J Genet Couns. 2018;27(5):1102-10.
  3. Doser K, Hove H, Østergaard JR, Bidstrup PE, Dalton SO, Handrup MM, et al. Cohort profile: life with neurofibromatosis 1 – the Danish NF1 cohort. BMJ Open. 2022;12(9):e065340.
  4. MacCallum CA, Russo EB. Practical considerations in medical cannabis administration and dosing. Eur J Intern Med. 2018;49:12-9.
  5. Stillman M, Capron M, Mallow M, Ransom T, Gustafson K, Bell A, et al. Utilization of medicinal cannabis for pain by individuals with spinal cord injury. Spinal Cord Ser Cases. 2019;5:66.
  6. Neumeister A, Normandin MD, Pietrzak RH, Piomelli D, Zheng MQ, Gujarro-Anton A, et al. Elevated brain cannabinoid CB1 receptor availability in post-traumatic stress disorder: a positron emission tomography study. Mol Psychiatry. 2013;18(9):1034-40.
  7. Wilker S, Pfeiffer A, Elbert T, Ovuga E, Karabatsiakis A, Krumbholz A, et al. Endocannabinoid concentrations in hair are associated with PTSD symptom severity. Psychoneuroendocrinology. 2016;67:198-206.
  8. Lazary J, Eszlari N, Juhasz G, Bagdy G. Genetically reduced FAAH activity may be a risk for the development of anxiety and depression in persons with repetitive childhood trauma. Eur Neuropsychopharmacol. 2016;26(6):1020-8.
  9. Thornton AM, Humphrey RM, Kerr DM, Finn DP, Roche M. Increasing Endocannabinoid Tone Alters Anxiety-Like and Stress Coping Behaviour in Female Rats Prenatally Exposed to Valproic Acid. Molecules. 2021;26(12).
  10. Fabre LF, McLendon D. The efficacy and safety of nabilone (a synthetic cannabinoid) in the treatment of anxiety. J Clin Pharmacol. 1981;21(S1):377s-82s.
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  12. Bhattacharyya S, Morrison PD, Fusar-Poli P, Martin-Santos R, Borgwardt S, Winton-Brown T, et al. Opposite effects of delta-9-tetrahydrocannabinol and cannabidiol on human brain function and psychopathology. Neuropsychopharmacology. 2010;35(3):764-74.
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  33. Munro S, Thomas KL, Abu-Shaar M. Molecular characterization of a peripheral receptor for cannabinoids. Nature. 1993;365(6441):61-5.
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Tratamento da dor nas pessoas com NF

 Informações atualizadas pelos médicos Renato Viana e Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues para orientação do tratamento da dor em pessoas com Neurofibromatoses (NF).

Estas orientações estão apresentadas em duas partes:

  1. Pessoas com NF e suas famílias
  2. Proffissionais da saúde

Em ambas as partes, sempre que você clicar nas letras em vermelho você poderá obter mais informações sobre o assunto e/ou referências científicas.

 

Parte A – Para pessoas com NF e suas famílias

As pessoas com qualquer uma das doenças genéticas conhecidas anteriormente como neurofibromatoses (NF) podem sentir dor, às vezes por longos períodos (ver aqui os novos nomes para as NF a partir de 2022).

 

Mais da metade das pessoas com Neurofibromatose do tipo 1 (NF1) se queixa de algum tipo de dor.

Pessoas com Schwannomatose relacionada ao gene NF2 (SRNF2) (antes chamada de NF2) algumas vezes sentem dor.

Pessoas com Schwannomatoses relacionadas aos genes SMRCB1 e LZTR1 (antes chamadas apenas de Schwannomatose) apresentam dor como a principal complicação da doença.

Para tratarmos corretamente as dores destas pessoas, precisamos compreender o que é a dor e como nosso cérebro percebe o que é doloroso.

 

O que é a dor?

Segundo a última convenção internacional, a dor é uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão verdadeira ou potencial dos tecidos.

Ou seja, a dor é uma sensação ruim e carregada de emoção que é percebida por uma pessoa como se uma certa parte do seu corpo tenha sido, esteja sendo ou possa vir a ser machucada.

A dor é uma percepção individual, ou seja, somente quem a sente pode dizer sobre sua intensidade e como ela afeta a sua qualidade de vida. Ninguém é capaz de medir a dor e o sofrimento da outra pessoa, nem mesmo profissionais de saúde.

Para saber mais sobre este aspecto pessoal e intransferível da dor, veja o depoimento da associada da AMANF, engenheira e professora Ana de Oliveira Rodrigues em seu post: “Mas isso não dói” (clique no título).

Além de ser individual, a dor pode ser aguda, ou seja, de início recente, ou crônica, quando a sua duração ultrapassa mais de 3 meses.

A dor pode ter uma causa simples e evidente, por exemplo, um trauma, ou ter causas complexas e de difícil diagnóstico.

Quando a dor surge por causa da lesão de um órgão, de um tecido ou parte do corpo, ela é chamada de nociceptiva (essa palavra quer dizer percepção da lesão).

Quando a dor surge por causa de alterações no funcionamento do próprio sistema nervoso, ela é chamada de neuropática (a palavra quer dizer originada de um problema neurológico).

Às vezes, a dor pode ser mista, quer dizer, causada tanto por lesões nos tecidos quanto por mal funcionamento do sistema nervoso. Ver abaixo os tipos de dor definidas internacionalmente.

É preciso conhecer a dor para que possa ser tratada de forma eficiente. Por isso, é fundamental profissionais da saúde utilizarem um sistema de diagnóstico e avaliação da intensidade da dor, que possa expressar o sentimento da pessoa que sofre com ela.

Adiante mostraremos os questionários e métodos científicos que podem ser usados para esta finalidade.

Antes, vamos rever brevemente como nós percebemos a dor

 

 

A Figura 1 ilustra como a dor é percebida. Imagine que um alfinete furou a pele e atingiu o ramo de um nervo especializado em perceber a dor (neurônio do nível 1).

O sinal elétrico provocado pelo alfinete percorre a fibra nervosa (como se fosse um fio) até a medula, onde estimula outro neurônio sensitivo (neurônio do nível 2).

O neurônio da medula repassa novo sinal para outros neurônios (do nível 3), com cópias desse estímulo para outras estruturas do cérebro (neurônios do nível 4), onde a pessoa toma consciência da picada do alfinete e localiza exatamente onde ela aconteceu.

 

Em cada uma dessas etapas, do neurônio 1 ao neurônio 4, diversos fatores podem modificar a transmissão da dor até o cérebro e a mesma picada de alfinete pode ser percebida de formas diferentes, dependendo das condições em que estão as comunicações entre os diversos níveis.

Por exemplo, o estado emocional pode aumentar (na ansiedade, por exemplo) ou diminuir (na meditação, por exemplo) a percepção da dor.

Os medicamentos anestésicos e analgésicos funcionam interrompendo ou dificultando a passagem do estímulo desde a picada do alfinete até a consciência da pessoa e modulando os neurônios inibidores e excitadores.

Esta variação da percepção da dor acontece porque existem outros neurônios e substâncias que modulam (inibem ou excitam) os neurônios envolvidos em cada etapa da transmissão da dor da periferia até o cérebro.

Quem desejar mais detalhes destas etapas, ver outra Figura e sua explicação no final deste texto.

 

Quais os tipos de dor?

Existem  quatro tipos de dor:

  • Provocadas por uma lesão ou pelo risco de lesão em tecidos corporais, por exemplo, um corte inflamado ou infeccionado na pele.
  • Provocada por uma lesão ou disfunção do próprio sistema nervoso. (Esse tipo é a dor Neuropática, que nos interessa mais).
  • Provocada por alterações no processamento da dor no próprio cérebro, mas sem lesão verdadeira nos tecidos.
  • Provocada por combinações de lesões nos tecidos e alterações no sistema nervoso.

As pessoas com neurofibromatoses podem apresentar qualquer um dos tipos de dor e o seu tratamento é semelhante ao das pessoas sem NF. No entanto, considerando que muitas pessoas com NF apresentam dor crônica e dor neuropática, vamos nos aprofundar neste tipo de dor.

 

A dor neuropática é uma doença?

Sim, a dor neuropática é considerada uma doença em si. A dor neuropática é causada por lesões ou alterações na função dos próprios nervos e do sistema nervoso central.

A dor neuropática pode ser percebida como dor, queimação, picada, choque, beliscão, calor e frio em ondas que vêm e vão, às vezes relacionadas com fatores ambientais, emocionais e físicos.

Outras vezes, a dor neuropática pode surgir sem qualquer estímulo evidente ou até mesmo num membro que já foi amputado, como a chamada dor fantasma.

 

O primeiro passo para tratar, é quantificar a dor

Geralmente utilizamos uma escala visual, uma régua marcada de 1 a dez, sendo 0 nenhuma dor e 10 a maior dor que a pessoa já sentiu. Pedimos para a pessoa apontar na escala qual a intensidade da dor que ela está sentindo ou sentiu.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

 

A nota deve ser registrada em cada reavaliação.

 

O segundo passo é definir se a dor é do tipo neuropática.

Um questionário bastante simples pode ser usado, basta responder sim ou não.

Cada resposta positiva representa 1 ponto. Some os pontos.

Sensação de dor:

  • Em queimação
  • Frio doloroso
  • Como choque elétrico

Sintomas na mesma área da dor:

  • Adormecimento
  • Formigamento
  • Alfinetadas
  • Coceira

Exame físico:

  • Menor sensibilidade ao toque?
  • Menor sensibilidade à ponta de agulha?
  • Dor provocada ou aumentada pelo atrito?

Resultado da soma: maior do que 3 pontos sugere dor neuropática

 

O terceiro passo é procurar uma causa para a dor neuropática.

Exemplos de causas da dor neuropática:

  • Lesão crônica envolvendo o nervo (inflamação, compressão, corte e cicatrização) produz substâncias inflamatórias que estimulam as terminações nervosas e fazem com que elas enviem estímulos exagerados ao cérebro. Por isso, os antinflamatórios, o gelo e alguns analgésicos atuam neste ponto, reduzindo o processo inflamatório e aliviando a dor.
  • Compressão mecânica, por exemplo, um neurofibroma comprimindo o nervo, causando irritação ou mesmo amputando o nervo. Por isso, a remoção cirúrgica de neurofibromas compressivos pode aliviar algumas formas de dor neuropática.
  • Destruição ou o corte do nervo podem causar cicatrização anormal, que produz uma espécie de tumor na ponta do nervo cortado, que chamamos de neuroma. Esse enovelado irregular e disfuncional de fibras nervosas pode produzir estímulos excessivos, que são percebidos como dor fantasma, como acontece nas amputações.
  • Dor não tratada por muito tempo pode alterar a expressão genética de proteínas que controlam a dor (como a neurofibromina, inclusive) aumentando a sensibilidade dolorosa da pessoa. Por isso, sinais de compressão nervosa devem ser tratados com rapidez. Uma dor não tratada hoje pode ser uma dor aumentada amanhã.
  • Problemas na medula espinhal podem alterar a sensibilidade dolorosa. A noradrenalina é importante nesse processo e por isso observamos aumento da sensibilidade dolorosa durante situações de estresse.
  • Modificações no sistema nervoso central podem aumentar a sensibilidade dolorosa.
  • Fatores emocionais e pelo estado de humor afetam a sensibilidade à dor.
  • Experiência, história de vida e cultura afetam a percepção da dor. A memória, o conhecimento e o aprendizado da dor participam da regulação de como percebemos a dor e o medo que ela nos causa. Também sabemos que a depressão e a ansiedade podem aumentar a sensação de dor. Por isso, antidepressivos e ansiolíticos podem ajudar a controlar a dor, inclusive nas neurofibromatoses.
  • As características genéticas afetam a percepção da dor. Boa parte (40%) da sensibilidade à dor pode ser atribuída a fatores genéticos. Neste sentido, parece que as pessoas com NF1 têm a sensibilidade dolorosa aumentada de um modo geral.
  • Outras causas – é possível haver outros mecanismos de dor nas neurofibromatoses que desconhecemos por enquanto.

 

Em resumo, dores de diferentes intensidades e causas podem estar agindo ao mesmo tempo numa pessoa com neurofibromatose e por isso o tratamento da dor crônica e da dor neuropática geralmente é complexo e multidisciplinar.

 

Tratamentos para dor crônica (ESPECIALMENTE NEUROPÁTICA)

 

O primeiro passo para o tratamento adequado é diagnosticar e quantificar a dor e medir seu impacto na qualidade de vida, por meio de questionários estruturados e escalas para medir a dor e a realização de exame físico clínico por profissional experiente. Exames complementares podem ser necessários.

Está claro que o tratamento ideal será tentar remover a causa da dor.

Enquanto a causa está sendo removida (ou quando não é possível sua remoção) devemos usar outros procedimentos.

Em nosso Centro de Referência em NF do HC UFMG costumávamos recomendar a chamada escada analgésica, baseada em orientação da Organização Mundial da Saúde, que foi reavaliada em 2010.

A partir de agora, nossos profissionais da saúde utilizarão uma adaptação dos procedimentos indicados pela extensa revisão realizada por Bates e colaboradores, 2019.

Depois de diagnosticada e quantificada a dor, podem ser utilizados os passos apresentados adiante.

É muito importante saber que o tratamento da dor neuropática é quase sempre MULTIDISCIPLINAR, envolvendo profissionais da saúde que orientem para a reabilitação física, apoio psicológico, higiene do sono, exercícios físicos regulares e outras ações complementares.

Em conclusão, diante da dor, especialmente dor crônica, é fundamental procurar profissionais da saúde para a orientação adequada.

 

 

Parte B – Para profissionais da saúde

 

Lembre-se que ao clicar nas letras em vermelho você poderá obter mais informações sobre o assunto e/ou referências científicas.

As pessoas com qualquer uma das doenças três genéticas conhecidas anteriormente como neurofibromatoses (NF) podem sentir dor, às vezes por longos períodos (ver aqui os novos nomes para as NF a partir de 2022).

Mais da metade das pessoas com Neurofibromatose do tipo 1 (NF1) se queixa de algum tipo de dor.

Pessoas com Schwannomatose relacionada ao gene NF2 (SRNF2) (antes chamada de NF2) algumas vezes sentem dor.

Pessoas com Schwannomatoses relacionadas aos genes SMRCB1 e LZTR1 (antes chamadas apenas de Schwannomatose) apresentam dor como a principal complicação da doença.

Para tratarmos corretamente as dores destas pessoas, precisamos compreender o que é a dor e como nosso cérebro percebe o que é doloroso.

 

O que é a dor?

Segundo a última convenção internacional, a dor é uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão verdadeira ou potencial dos tecidos.

Ou seja, a dor é uma sensação ruim e carregada de emoção que é percebida por uma pessoa como se uma certa parte do seu corpo tenha sido, esteja sendo ou possa vir a ser machucada.

A dor é uma percepção individual, ou seja, somente quem a sente pode dizer sobre sua intensidade e como ela afeta a sua qualidade de vida. Ninguém é capaz de medir a dor e o sofrimento da outra pessoa, nem mesmo profissionais de saúde.

Para saber mais sobre este aspecto pessoal e intransferível da dor, veja o depoimento da associada da AMANF, engenheira e professora Ana de Oliveira Rodrigues em seu post: “Mas isso não dói” (clique no título).

Além de ser individual, a dor pode ser aguda, ou seja, de início recente, ou crônica, quando a sua duração ultrapassa mais de 3 meses.

A dor pode ter uma causa simples e evidente, por exemplo, um trauma, ou ter causas complexas e de difícil diagnóstico.

Quando a dor surge por causa da lesão de um órgão, de um tecido ou parte do corpo, ela é chamada de nociceptiva (essa palavra quer dizer percepção da lesão).

Quando a dor surge por causa de alterações no funcionamento do próprio sistema nervoso, ela é chamada de neuropática (a palavra quer dizer originada de um problema neurológico).

Às vezes, a dor pode ser mista, quer dizer, causada tanto por lesões nos tecidos quanto por mal funcionamento do sistema nervoso. Ver abaixo os tipos de dor definidas internacionalmente.

É preciso conhecer a dor para que possa ser tratada de forma eficiente. Por isso, é fundamental profissionais da saúde utilizarem um sistema de diagnóstico e avaliação da intensidade da dor, que possa expressar o sentimento da pessoa que sofre com ela.

Adiante mostraremos os questionários e métodos científicos que podem ser usados para esta finalidade.

 

Breve revisão de como nós percebemos a dor

 

 

Na Figura 2 estão representados diversos fatores que influenciam a transmissão da dor, os pontos X, Y, Z, M, B e G que nos ajudarão a compreender os diferentes tipos de dor.

Começando de baixo para cima, no (ponto X na Figura 2) temos, por exemplo, uma lesão em torno do nervo (inflamação, compressão, corte e cicatrização) que produz substâncias inflamatórias que estimulam as terminações nervosas e fazem com que elas enviem estímulos exagerados ao cérebro.  Por isso, os antinflamatórios, o gelo e alguns analgésicos atuam neste ponto, reduzindo o processo inflamatório e aliviando a dor.

 Outras vezes a lesão é causada pela compressão mecânica, por exemplo, um neurofibroma comprimindo o nervo (ponto Y na Figura 2), causando irritação ou mesmo amputando o nervo, o que é percebido como estímulo doloroso. Por isso, a remoção cirúrgica de neurofibromas compressivos pode aliviar algumas formas de dor neuropática.

Outras vezes, a destruição ou o corte do nervo (no ponto Y) podem causar cicatrização anormal, que produz uma espécie de tumor na ponta do nervo cortado, que chamamos de neuroma. Esse enovelado irregular e disfuncional de fibras nervosas pode produzir estímulos excessivos, que são percebidos como dor fantasma, como acontece nas amputações.

No ponto Z da Figura 2, a persistência da dor não tratada pode alterar a expressão genética de proteínas que controlam a dor (como a neurofibromina, inclusive), produzindo mais receptores de glutamato e NMDA, por exemplo, e aumentando a sensibilidade dolorosa da pessoa.

Por isso, sinais de compressão nervosa devem ser tratados com rapidez. Ou seja, um pequeno estímulo que não provocaria dor, pode se transformar em dor forte por causa da sensibilidade aumentada, causada pela dor crônica não tratada. Por isso, não devemos deixar sem tratamento uma pessoa com dor. Uma dor não tratada hoje pode ser uma dor aumentada amanhã.

No ponto M da Figura 2 estão as conexões na medula espinhal entre os nervos que trazem o estímulo doloroso da periferia do corpo e os nervos que conduzem estes estímulos até os centros superiores no cérebro.

Na dor neuropática, neste ponto M pode haver menor inibição da sensibilidade dolorosa, ou seja, o filtro realizado pelos neurônios na medula estariam menos ativos, permitindo a passagem da dor com mais facilidade para os centros superiores, ou seja, sinalizando uma dor amplificada. A noradrenalina é uma das substâncias moduladoras e por isso observamos aumento da sensibilidade dolorosa durante situações de estresse.

Alguns analgésicos e a cortisona também podem agir nesse ponto M, reduzindo a dor, como, por exemplo, nos chamados bloqueios com cortisona injetada ao redor da medula.

No ponto B da Figura 2, novos filtros (modulações) dos estímulos podem ocorrer, aumentando ou diminuindo a sensibilidade dolorosa. Neste ponto, algumas drogas chamadas neurolépticas e os anticonvulsivantes podem ajudar a reduzir a passagem dos estímulos dolorosos, diminuindo a dor que chega à consciência.

No ponto T da Figura 2 a dor também é aumentada ou diminuída por fatores emocionais e pelo estado de humor. Por exemplo, uma mesma lesão física pode parecer muito mais dolorosa à noite, quando nosso estado de humor aumenta as percepções da fadiga, do cansaço e dos perigos, porque somos seres diurnos, selecionados para viver durante o dia e repousar à noite.

No cérebro existem diversas regiões onde armazenamos informações sobre tudo aquilo que acontece conosco. Então, a memória, o conhecimento e o aprendizado da dor participam da regulação de como percebemos a dor e o medo que ela nos causa.

A dor crônica pode modificar estas estruturas por meio da plasticidade cerebral. Por isso, a psicoterapia, o acompanhamento psicológico, técnicas de meditação e controle cognitivo podem auxiliar o controle da dor neuropática nas neurofibromatoses.

Também sabemos que a depressão e a ansiedade podem aumentar a sensação de dor. Por isso, antidepressivos e ansiolíticos podem ajudar a controlar a dor, inclusive nas neurofibromatoses.

Para completar, o ponto G na Figura 2 indica a expressão genética – em todo o sistema nervoso – da herança maior ou menor sensibilidade para a dor. Parte (40%) da suscetibilidade à dor pode ser atribuída a fatores genéticos. Neste sentido, parece que a ausência da neurofibromina nas pessoas com NF1 aumenta a sensibilidade dolorosa de um modo geral.

É preciso lembrar que pode haver outros mecanismos de dor nas neurofibromatoses que desconhecemos por enquanto. Por exemplo, na NF1 não sabemos exatamente por que os neurofibromas cutâneos raramente são dolorosos, enquanto plexiformes e nodulares muitas vezes o são. Além disso, os schwannomas raramente são dolorosos na NF2, mas são muito dolorosos na Schwannomatose. E todos estes tumores se originam da mesma célula de Schwann, na bainha dos nervos periféricos!

Finalmente, sabemos que vários dos mecanismos neste esquema da Figura 2 podem estar atuando ao mesmo tempo numa pessoa com neurofibromatose e por isso o tratamento da dor neuropática geralmente é complexo e multidisciplinar.

 

Quais os tipos de dor?

Existem  quatro tipos de dor:

  • Provocadas por uma lesão ou pelo risco de lesão em tecidos corporais, por exemplo, um corte inflamado ou infeccionado na pele. Esse tipo de dor é chamado por profissionais da saúde de dor Nociceptiva.
  • Provocada por uma lesão ou disfunção do próprio sistema nervoso, por exemplo, a alteração dos nervos nos pés das pessoas com diabetes. Esse tipo de dor é a dor Neuropática.
  • Provocada por alterações no processamento da dor no próprio cérebro, mas sem lesão verdadeira nos tecidos onde a dor é sentida, por exemplo, na fibromialgia. Esse tipo de dor é a dor Nociplástica.
  • Provocada por combinações de lesões nos tecidos e alterações no sistema nervoso. É chamada de dor Mista.

Profissionais da saúde também usam alguns outros termos técnicos para falarem da dor. Por exemplo, quando a sensibilidade está exagerada aos estímulos dolorosos, chamamos de hiperalgesia. Quando um estímulo não doloroso, o toque das mãos, por exemplo, é percebido como dor, chamamos de alodinia. Quando a dor é percebida em região diferente do local onde está ocorrendo a lesão, por exemplo, a dor do infarto agudo do miocárdio sendo percebida no braço, chamamos de dor referida.

As pessoas com neurofibromatoses podem apresentar qualquer um dos tipos de dor acima descritos e o seu tratamento é semelhante ao das pessoas sem NF. No entanto, considerando que muitas pessoas com NF apresentam dor crônica e dor neuropática, vamos nos aprofundar neste tipo de dor.

 

A dor neuropática é uma doença?

Sim, a dor neuropática é considerada uma doença em si. A dor neuropática é causada por lesões ou alterações na função dos próprios nervos e do sistema nervoso central.

A dor neuropática pode ser percebida como dor, queimação, picada, choque, beliscão, calor e frio em ondas que vêm e vão, às vezes relacionadas com fatores ambientais, emocionais e físicos.

Outras vezes, a dor neuropática pode surgir sem qualquer estímulo evidente ou até mesmo num membro que já foi amputado, como a chamada dor fantasma.

 

O primeiro passo para tratar, é quantificar a dor

Geralmente utilizamos uma escala visual, uma régua marcada de 1 a dez, sendo 0 nenhuma dor e 10 a maior dor que a pessoa já sentiu. Pedimos para a pessoa apontar na escala qual a intensidade da dor que ela está sentindo ou sentiu.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

 

A nota deve ser registrada em cada reavaliação.

 

O segundo passo é definir se a dor é do tipo neuropática.

Um questionário bastante simples (chamado de DN4 – Douleur Neuropathique Quatre) pode ser utilizado (abaixo) e ele possui sensibilidade razoável (72%) e alta especificidade (97%).

Pode ser necessário esclarecer com cuidado os sintomas para as pessoas com a dor.

Basta responder sim ou não.

Cada resposta positiva representa 1 ponto. Some os pontos.

Sensação de dor:

  • Em queimação
  • Frio doloroso
  • Como choque elétrico

Sintomas na mesma área da dor:

  • Adormecimento
  • Formigamento
  • Alfinetadas
  • Coceira

Exame físico:

  • Menor sensibilidade ao toque?
  • Menor sensibilidade à ponta de agulha?
  • Dor provocada ou aumentada pelo atrito?

Resultado da soma: maior do que 3 pontos sugere dor neuropática

 

O terceiro passo é procurar uma causa para a dor neuropática.

Exemplos de causas da dor neuropática:

  • Lesão crônica envolvendo o nervo (inflamação, compressão, corte e cicatrização) produz substâncias inflamatórias que estimulam as terminações nervosas e fazem com que elas enviem estímulos exagerados ao cérebro. Por isso, os antinflamatórios, o gelo e alguns analgésicos atuam neste ponto, reduzindo o processo inflamatório e aliviando a dor.
  • Compressão mecânica, por exemplo, um neurofibroma comprimindo o nervo, causando irritação ou mesmo amputando o nervo. Por isso, a remoção cirúrgica de neurofibromas compressivos pode aliviar algumas formas de dor neuropática.
  • Destruição ou o corte do nervo podem causar cicatrização anormal, que produz uma espécie de tumor na ponta do nervo cortado, que chamamos de neuroma. Esse enovelado irregular e disfuncional de fibras nervosas pode produzir estímulos excessivos, que são percebidos como dor fantasma, como acontece nas amputações.
  • Dor não tratada por muito tempo pode alterar a expressão genética de proteínas que controlam a dor (como a neurofibromina, inclusive) aumentando a sensibilidade dolorosa da pessoa. Por isso, sinais de compressão nervosa devem ser tratados com rapidez. Uma dor não tratada hoje pode ser uma dor aumentada amanhã.
  • Problemas na medula espinhal podem alterar a sensibilidade dolorosa. A noradrenalina é importante nesse processo e por isso observamos aumento da sensibilidade dolorosa durante situações de estresse. Alguns analgésicos e a cortisona também podem ser úteis, reduzindo a dor, como, por exemplo, nos chamados bloqueios com cortisona injetada ao redor da medula.
  • Modificações no sistema nervoso central podem aumentar a sensibilidade dolorosa, por isso algumas drogas chamadas neurolépticas e os anticonvulsivantes podem ajudar a reduzir a passagem dos estímulos dolorosos, diminuindo a dor que chega à consciência.
  • Fatores emocionais e pelo estado de humor afetam a sensibilidade à dor. Por exemplo, uma mesma lesão pode parecer muito mais dolorosa à noite, quando nosso estado de humor aumenta as percepções da fadiga, do cansaço e dos perigos, porque somos seres diurnos, selecionados para viver durante o dia e repousar à noite.
  • Experiência, história de vida e cultura afetam a percepção da dor. A memória, o conhecimento e o aprendizado da dor participam da regulação de como percebemos a dor e o medo que ela nos causa.

A dor crônica pode modificar estas estruturas por meio da plasticidade cerebral.

Por isso, a psicoterapia, o acompanhamento psicológico, técnicas de meditação e controle cognitivo podem auxiliar o controle da dor neuropática nas neurofibromatoses.

Também sabemos que a depressão e a ansiedade podem aumentar a sensação de dor. Por isso, antidepressivos e ansiolíticos podem ajudar a controlar a dor, inclusive nas neurofibromatoses.

  • As características genéticas afetam a percepção da dor. Boa parte (40%) da sensibilidade à dor pode ser atribuída a fatores genéticos. Neste sentido, parece que a ausência da neurofibromina nas pessoas com NF1 aumenta a sensibilidade dolorosa de um modo geral.
  • Outras causas – é possível haver outros mecanismos de dor nas neurofibromatoses que desconhecemos por enquanto. Por exemplo, na NF1 não sabemos exatamente por que os neurofibromas cutâneos raramente são dolorosos, enquanto plexiformes e nodulares muitas vezes o são. Além disso, os schwannomas raramente são dolorosos na NF2, mas são muito dolorosos na Schwannomatose. E todos estes tumores se originam da mesma célula de Schwann, na bainha dos nervos periféricos!

 

Em resumo, dores de diferentes intensidades e causas podem estar agindo ao mesmo tempo numa pessoa com neurofibromatose e por isso o tratamento da dor crônica e da dor neuropática geralmente é complexo e multidisciplinar.

 

Tratamentos para dor crônica (ESPECIALMENTE NEUROPÁTICA)

 

Está claro que o primeiro tratamento sempre será tentar remover a causa da dor.

Enquanto a causa está sendo removida (ou quando não é possível sua remoção) devemos usar outros procedimentos.

Costumávamos recomendar nesta página a chamada escada analgésica, baseada em orientação da Organização Mundial da Saúde, que foi reavaliada em 2010.

A partir de agora, utilizaremos uma adaptação dos procedimentos indicados pela extensa revisão realizada por Bates e colaboradores, 2019.

O primeiro passo para o tratamento adequado é diagnosticar e quantificar a dor e medir seu impacto na qualidade de vida, por meio de questionários estruturados e escalas para medir a dor e a realização de exame físico clínico por profissional experiente. Exames complementares podem ser necessários.

Depois de diagnosticada e quantificada a dor, podem ser utilizados os passos apresentados adiante.

É muito importante saber que o tratamento da dor neuropática é quase sempre MULTIDISCIPLINAR, envolvendo profissionais da saúde que orientem para a reabilitação física, apoio psicológico, higiene do sono, exercícios físicos regulares e outras ações complementares.

Legenda:

Antidepressivos tricíclicos (exemplos: Amitriptilina e Nortriptilina)

IRSN: inibidores da recaptação da serotonina e noradrenalina (exemplos: Duloxetina e Venlafaxina)

GABA: gabapentinoides (exemplos Pregabalina e Gabapentina)

Tópicos (exemplos: Lidocaína e Capsaicina)

Reservados aos especialistas no tratamento da dor

ISRS: inibidores seletivos da recaptação da serotonina (por exemplo, Citalopram, Escitalopram. Fluoxetina, Fluvoxamina, Paroxetina, Sertralina)

Anticonvulsivantes (por exemplo: Lamotrigina, Carbamazepina, Topiramato, Valproato)

ARNMDA: antagonistas dos receptores NMDA (por exemplo,  Cetamina (ou ketamina), Tramadol e Metadona )

Intervenções, incluindo neuromodulação, opioides e drogas de liberação direta.

 

Observações

AntinflamatóriosNão há evidência científica de uso de antinflamatórios (não esteroides) na dor neuropática.

Canabidiol – O uso de medicamentos derivados da cannabis tem sido recomendado algumas vezes em nosso CRNF para a dor crônica, mas alguns estudos recentes (ver aqui e aqui) indicam que precisamos de mais pesquisas científicas bem controladas para afirmarmos que estes medicamentos são eficientes.

Tratamentos adjuvantes

Outros tratamentos são oferecidos, inclusive em clínicas de dor, e podem ajudar no controle da dor neuropática e da dor fantasma.

Veja abaixo alguns tratamentos propostos e sua eficiência no tratamento da dor crônica (clique nos textos em azul para abrir as referências científicas).

Atividades físicas – quando realizadas de modo regular e em intensidade adequada possuem efeito benéfico moderado, embora ainda seja baixa a qualidade das evidências científicas.

Meditação – baixa evidência sobre a dor diretamente, mas podem melhorar a depressão e a qualidade de vida.

Estimulação elétrica transcutânea (TENS) – possui evidência moderada para efeitos locais.

Terapia com espelho e realidade virtual – sem evidências científicas.

Biofeedback  – efetivo para determinadas condições dolorosas.

Eletroconvulsoterapia – baixa qualidade das evidências científicas.

Acupuntura  – parece ter um efeito placebo, ou seja, a pessoa ficaria sugestionada a sentir menos dor.

Massagem – apesar de muita expectativa sobre seus efeitos, ainda não temos evidências científicas de que as massagens afetem a dor neuropática.

Estimulação cerebral profunda – poucos estudos

Estimulação da medula espinhal – estudos insuficientes

 

Tratamentos cirúrgicos específicos para a dor crônica

Há dor crônica que pode ser curada com a cirurgia, por exemplo, por exemplo, o tumor glomus. Há maior frequência de tumor glomus em pessoas com Neurofibromatose do tipo 1 , que é um tumor geralmente benigno que surge nos corpos glomus, e pode ser removido na maioria das vezes por cirurgia (ou ser usada a ketamina quando a cirurgia é impossível).

Nas demais formas de dor crônica, sempre que a cirurgia puder remover a causa da dor, ela será prioritária. Outras vezes, técnicas cirúrgicas podem, ser usadas quando medicamentos e terapias adjuvantes falharam.

Mais informações sobre os tratamentos para a dor crônica podem ser obtidas com profissionais da saúde especialistas no tratamento da dor crônica.

 

 

Belo Horizonte, 4 de abril de 2023