Este espaço é destinado a opinião de pessoas com experiência em diversos assuntos relacionados com as neurofibromatoses.

Em mais uma continuidade da divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o texto completo e didático da Dra. Vanessa Waisberg, doutora em oftalmologia, que tem sido uma colaboradora incansável do CRNF, atendendo pessoas com NF1 e Schwannomatose relacionada ao gene NF2, que foi justamente o tema de seu doutorado e prêmio nacional de oftalmologia. Agradecemos muito por mais esta colaboração e publicaremos a segunda parte (Problemas Oftalmológicos nas Schwannomatoses) na próxima semana.

Dr. Lor

 

 

Dra. Vanessa Waisberg

Oftalmologista com doutorado em

Medicina Molecular pela UFMG

Introdução

 

O olho e seus anexos estão frequentemente envolvidos nos pacientes com Neurofibromatose tipo 1 (NF1). Algumas dessas manifestações oculares, como os nódulos de Lisch, os gliomas de vias ópticas, os neurofibromas plexiformes e os nódulos de coroide são característicos da doença e fazem parte dos critérios diagnósticos da NF1 .

Enquanto os nódulos de Lisch não oferecem risco a saúde ocular, os gliomas ópticos e os neurofibromas palpebrais precisam de acompanhamento e podem eventualmente comprometer a visão dos pacientes.

Outros achados oculares podem ser encontrados em portadores de NF1, mas não são considerados critérios diagnósticos.

 

Nódulos de Lisch

Os nódulos de Lisch foram descritos pela primeira vez em 1937 pelo oftalmologista austríaco Karl Lisch. Eles são as manifestações oculares mais comuns e mais bem conhecidas da NF1.

O nódulos de Lisch (Figura 1)  são pequenas lesões elevadas, bem delimitadas, de coloração que varia entre o amarelo e o marrom, que podem ser discretas ou evidentes e aparecem na superfície da íris de cerca de 95% dos pacientes adultos com NF1. Histologicamente, os nódulos de Lisch são hamartomas, tumores de crescimento lento e benigno. O número e o tamanho dos nódulos de Lisch aumentam com a idade. Eles são incomuns antes dos dois anos de idade e aos dez anos de idade é possível identificar essas lesões em cerca de 70% dos pacientes.

 

Figura 1 – Variações dos nódulos de Lisch

 

Neurofibromas plexiformes orbitários e periorbitários.

A maioria dos neurofibromas (ver capítulo sobre neurofibromas) orbitários e periorbitários (NFO) se desenvolve ao longo das ramificações do nervo trigêmeo. Os neurofibromas isolados de pálpebra superior podem assumir a forma de S e geralmente causam leve ptose sem obstruir o eixo visual. Os neurofibromas localizados na pálpebra e região periorbitária podem causar ptose e levar a ambliopia por privação ou ambliopia refracional. Ambliopia é a redução da acuidade visual causada por interação binocular anormal durante o período de desenvolvimento visual. Os neurofibromas orbitários com ou sem envolvimento palpebral invadem a órbita lateral e raramente podem invadir estruturas intracranianas.

A incidência dos NFO em crianças com NF1 é menor que 10%. Apesar dos NFO serem congênitos, eles podem não ser evidentes logo após o nascimento. A maioria é identificada nos primeiros anos de vida. Toda criança com assimetria periorbitária ou proptose unilateral deve ser avaliada para descartar NFO. Não existe indicação de biopsia para confirmar o diagnóstico de NFO nas crianças que já possuem o diagnóstico de NF1.Toda criança diagnosticada com NFO independente do diagnóstico de NF1 deve realizar ressonância  magnética (RM) do encéfalo e da órbita para confirmar o diagnóstico de NFO e definir sua extensão. A necessidade de nova RM depende da progressão clínica.

 

Figura 2 – Diferentes apresentações do neurofibroma palpebral

 

Manejo oftalmológico

Recomenda-se que crianças com NFO realizem exame oftalmológico a cada seis meses durante os primeiros oito anos de vida, que é o período de desenvolvimento visual e é também o período que os NFO geralmente apresentam as maiores taxas de crescimento.

Os principais problemas oftalmológicos relacionados aos NFO são ambliopia, estrabismo, glaucoma e neuropatia óptica compressiva.

O manejo do estrabismo nas crianças com NFO é complexo. O oftalmologista deve priorizar o tratamento não cirúrgico da ambliopia, incluindo a correção dos erros refracionais e tratamento oclusivo. O tratamento cirúrgico do estrabismo deve ser considerado nos primeiros anos de vida quando a gravidade do estrabismo prejudica o tratamento da ambliopia. Uma abordagem conservadora inicial permite que o tratamento cirúrgico seja realizado quando o crescimento do NFO tenha diminuído e o processo geral do quadro esteja mais estável.

Indicações de tratamento

Após o diagnóstico, os NFO devem ser  acompanhados através de exame oftalmológico periódico e RM. Tumores estáveis podem ser acompanhados clinicamente. Nem todos os tumores irão progredir ou causar sintomas significativos. Quando se observar piora clínica está indicado realizar RM.

Até recentemente o tratamento cirúrgico era o principal tratamento disponível para  os NFO sintomático. Quando o tumor pode ser ressecado completamente a cirurgia geralmente é o tratamento de escolha. Infelizmente a cirurgia é desafiadora em muitos casos de NFO e  os resultados cirúrgicos geralmente não são satisfatórios a longo prazo devido à característica infiltrava do tumor e sua tendência a recorrer.

Nos últimos anos, o tratamento com quimioterápico oral se tornou uma opção de tratamento para pessoas com NF1 maiores que 2 anos com neurofibromas plexiformes inoperáveis  Alguns pacientes apresentam regressão parcial do tumor com o tratamento.

Muitos fatores influenciam a indicação do tratamento, como o tamanho do tumor, a localização, a taxa de crescimento, a idade do paciente, o risco de complicações irreversíveis e a gravidade dos sintomas. Alguns casos podem ser observados, outros podem ter indicação de cirurgia, tratamento  quimioterápico,  ou uma combinação dos dois.

 

Gliomas de Vias Ópticas

Gliomas de vias ópticas (GO) ocorrem em 5% a 25% das crianças com NF1. Eles podem aparecer em qualquer parte da via óptica e acometer um ou os dois nervos ópticos, o quiasma, as estruturas retro quiasmáticas como o hipotálamo e as radiações ópticas. Tipicamente, apresentam pouca tendência ao crescimento e muitas crianças permanecem assintomáticas. Raramente esses tumores podem ser agressivos. O motivo do comportamento agressivo de alguns GO ainda é desconhecido.

Nos gliomas assintomáticos a conduta é acompanhamento oftalmológico. Quando se observar redução na acuidade visual que não possa ser atribuída a outras causas, como erro refracional, ambliopia ou outros problemas anatômicos do olho, está indicado realizar ressonância magnética.

As principais indicações para realizar o tratamento do GO são piora clinica e aumento progressivo do GO. A piora clínica pode ser piora da acuidade visual, piora da proptose, sintomas neurológicos, perda da visão de cores ou disfunção endócrina.  A primeira linha de tratamento é a quimioterapia. Radioterapia e cirurgia raramente são indicados.

Figura 3 – Localização e imagens de glioma das vias ópticas

 

Alterações de Coroide

 As alterações da coroide, que é a camada vascular da parede ocular,  foram incluídas recentemente como critério diagnóstico devido a sua alta especificidade e sensibilidade para NF1, mas não oferecem risco para a visão.

As alterações de coroide da NF1 não são detectadas através do exame tradicional de fundo de olho.  Elas são identificadas com o exame de tomografia de coerência óptica (OCT), que produz imagens da retina e da coroide com a luz infra vermelha. As alterações de coroide aparecem como nódulos hiper refletivos e podem ser numerosos ou raros.

Outros Achados Oftalmológicos

– Glaucoma: o glaucoma na NF1 ocorre em cerca de 1% dos pacientes. Geralmente é unilateral e na maioria das vezes está associado a um neurofibroma palpebral ou periorbitário e ao ectrópio uveal, que é uma alteração congênita da íris. Nos glaucomas que ocorrem precocemente o tratamento geralmente é cirúrgico, semelhante ao tratamento do glaucoma congênito.  Nos casos mais tardios o tratamento com colírios pode ser tentado. A acuidade visual fica comprometida no olho afetado na maioria dos casos.

– Alterações da retina: o comprometimento da retina na NF1 é raro, mas tumores como hamartomas astrocíticos, hamartomas retinianos, hemangiomas capilares e tumores vasoproliferativos já foram descritos.

– Erros refracionais: a prevalência de miopia leve a moderada (-0,50 a -6,0 dioptrias) é um pouco maior que na população geral.  A prevalência da alta miopia, astigmatismo e hipermetropia é semelhante à da população geral.

 

Referências:

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Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o texto esclarecedor da Dra. Cinthia Vila Nova Santana, doutora em genética , que vem colaborando com nossos conhecimentos sobre as pessoas com NF1. Muito obrigado por mais esta colaboração, que é uma necessidade dos profissionais de saúde que trabalham com doenças genéticas.

Dr. Lor

 

 

Cinthia Vila Nova Santana

Biomédica, Doutora em Genética

Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Fundação ProAR

 

O desenvolvimento da engenharia genética na década de 1970 marcou o início de uma era importante na medicina. Pela primeira vez, pesquisadores foram capazes de manipular moléculas de DNA através de técnicas como a clonagem e reação em cadeia da polimerase (PCR), o que tornou possível o estudo de genes de interesse medicinal e biotecnológico. Desde então, muitos avanços aprimoraram as técnicas de biologia molecular, possibilitando o estudo dos genes não apenas isolados, mas também no organismo como um todo.

O primeiro relato de terapia gênica se deu em 1990, em uma paciente com uma deficiência imunológica grave provocada por uma condição genética rara (Anderson, 1990). Essa técnica envolvia a inserção de cópias funcionais do gene responsável pela produção de uma enzima ausente ou defeituosa. Embora esse tratamento tenha mostrado resultados promissores, também revelou desafios significativos, como a possibilidade de reações adversas, eficácia limitada e, até mesmo, risco de morte.

Anos mais tarde, as pesquisadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier anunciaram, em 2012, uma nova técnica de edição de genomas (CRISPR) que iria revolucionar o campo da terapia gênica. Essa descoberta conferiu, em 2020, o prêmio Nobel em Química para essas duas pesquisadoras (The Nobel Foundation, 2020). A nova metodologia reacendeu a esperança de cura para doenças genéticas, como as neurofibromatoses, que são provocadas por erros em um local específico no nosso DNA. Nesse capítulo, vamos entender um pouco mais sobre terapia gênica e como o método pode influenciar no tratamento da Neurofibromatose do tipo 1 (NF1).

 

Tratamentos genéticos e suas possibilidades na NF1

Antes de falarmos sobre tratamentos genéticos (ou terapia gênica), vamos compreender alguns conceitos. O nosso DNA contém genes onde estão armazenadas as instruções para a fabricação de proteínas. É como se os genes fossem o manual de instruções para a montagem de peças ─ as proteínas ─ e essas peças fazem o trabalho necessário para garantir o bom funcionamento do nosso corpo. Quando alguma instrução está defeituosa, temos proteínas que não funcionam corretamente, ou até mesmo que não são nem produzidas, e isso pode acarretar doenças genéticas como, por exemplo, a fibrose cística, anemia falciforme, beta talassemia, e as neurofibromatoses. Os tratamentos genéticos, por sua vez, têm como objetivo corrigir esses erros no DNA (também chamados de mutações), a fim de tratar uma doença (Anguela & High, 2019).

A NF1 é uma doença genética, resultante da mutação no gene que produz a proteína neurofibromina, presente em vários tipos celulares (especialmente em neurônios e nervos periféricos) e tem como função controlar o crescimento das células. Nas pessoas com NF1, essa proteína está ausente ou defeituosa, o que gera uma proliferação e um crescimento celular descontrolado, característico dos tumores (neurofibromas) observados na doença (Brems et al., 2009; Gutmann et al., 2017). Até o momento, não existe cura para a NF1, apenas tratamentos das condições específicas que surgem em cada paciente.

Mas, então, você poderia se perguntar: se o problema está na ausência da neurofibromina, por que não tomamos a neurofibromina artificial para correção da NF1? Existem alguns fatores a se considerar.

Primeiramente, esta é uma proteína grande (com cerca de 327 kDa e 2818 aminoácidos) e com uma conformação complexa (Nordlund et al., 1993; Upadhyaya et al., 2008), o que dificulta a sua síntese em laboratório.

Além disso, essa proteína é importante desde a vida intrauterina para o desenvolvimento do bebê, por isso muitas manifestações clínicas da doença, como as manchas café com leite, por exemplo, já estão presentes ao nascimento. Assim, a administração da neurofibromina após o nascimento não seria capaz de reverter as consequências da ausência dessa proteína em estágios iniciais do desenvolvimento.

Somando-se a isso, cerca de metade dos casos de NF1 são resultantes de mutações novas, quando não há histórico familiar (Mckeever et al., 2008), e, portanto, o diagnóstico da doença não é conhecido durante a gestação, o que inviabilizaria um possível tratamento.

Nesse contexto, terapias genéticas surgem como uma esperança de tratamento, e quem sabe até mesmo cura, para a NF1. Vejamos abaixo alguns dos avanços e pesquisas que estão sendo realizadas nessa área.

 

Terapia gênica direta – Substituição do gene defeituoso

 

A terapia gênica direta para NF1 busca corrigir a mutação ou substituir o gene NF1 defeituoso por uma cópia funcional (Leier et al., 2020), visando restaurar a função da neurofibromina e reduzir o crescimento dos tumores e outras manifestações associadas à doença. Essa parece ser uma excelente alternativa de tratamento, no entanto, alguns desafios ainda precisam ser superados para que a substituição do gene seja uma realidade.

Como já vimos, o NF1 é um gene grande, com cerca de 350 kb, e complexo (Pasmant et al., 2015), o que dificulta consideravelmente sua manipulação em laboratório. Pesquisadores conseguiram menos de 10% de sucesso nas taxas de transfecção, isto é, incorporação do gene funcional dentro das células (Bai et al., 2019). Além disso, o sistema de entrega do gene funcional ainda não está bem estabelecido para a NF1. Opções de entrega como a utilização de vetores virais, nanopartículas, exosomos e polímeros ainda não conseguem acomodar o tamanho do gene da NF1 em seu sistema. Imagine tentar transportar um bolo de casamento de 7 andares em uma bicicleta, é muito difícil conseguir entregar o bolo íntegro no local da festa.

 

CRISPR – Edição do genoma

 

Alternativamente à substituição do gene, a edição de parte do genoma se torna uma opção mais plausível no caso da NF1. Existem três abordagens principais para edição do DNA:

  • utilização de nucleases dedo de zinco (ZFN, do inglês zinc finger nucleases);
  • uso de nucleases efetoras semelhantes a ativadores de transcrição (TALENs, do inglês transcription activator-like effector nucleases);
  • sistema CRISPR-Cas (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats).

As duas primeiras utilizam como domínio de reconhecimento do DNA estruturas proteicas (dedos de zinco e proteínas TAL – transcription activator-like, respectivamente), ao passo que o sistema CRISPR-Cas utiliza o pareamento das bases nitrogenadas (adenina com timina e citosina com guanina), o que confere maior especificidade a essa metodologia.

Desde que foi descrito como ferramenta de edição de genoma em 2012 (Jinek et al., 2012), o sistema CRISPR-Cas vem sendo amplamente utilizado devido à sua simplicidade, eficácia e versatilidade (Wang & Doudna, 2023). Vamos entender um pouco mais sobre ele.

CRISPR acontece naturalmente em bactérias, como um mecanismo de defesa contra infecções por vírus (Figura 1) (Mojica et al., 2005). De maneira geral, quando um vírus infecta uma bactéria, ele injeta seu material genético dentro dela. Parte desse material é então incorporado no DNA da bactéria como um novo espaçador do sistema CRISPR. Vamos imaginar que a bactéria é uma casa que foi invadida pelo vírus. As câmeras de segurança conseguem identificar esse vírus e guardar a sua imagem nos arquivos (espaçadores do sistema CRISPR). Essa imagem é impressa e entregue aos seguranças para que fiquem alertas em caso de nova tentativa de invasão pelo vírus. No caso da bactéria, a sequência do vírus é, então, transcrita (“impressa”, isto é, a informação é passada de DNA para RNA) e processada para gerar os RNAs de CRISPR (crRNAs), como observado na Figura 1. Estes, por sua vez, associam-se a uma proteína Cas, que irá cortar o material genético do vírus invasor utilizando o crRNA como molde para esse silenciamento em infecções futuras (Wang & Doudna, 2023).

Figura 1: Representação esquemática do sistema CRISPR numa célula procariota. Com uma infecção por vírus, a bactéria incorpora parte desse material genético em seu próprio genoma, como um espaçador do sistema CRISPR (estágio 1). Essa informação será transformada (transcrita) em um pré-crRNA (estágio 2) e então processada para que, em caso de uma nova infecção viral, o crRNA maduro possa clivar (destruir) o material genético do vírus (estágio 3), impedindo o sucesso da infecção.

Inspirados nesse sistema, os pesquisadores começaram a trabalhar na possibilidade de utilizar CRISPR como ferramenta para edição de genomas. Após anos de estudo, o grupo liderado por Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier descobriu como realizar esse feito que iria revolucionar o campo das ciências biomédicas. Eles identificaram que para editar o genoma com CRISPR eram necessários basicamente três componentes (Figura 2) (Jinek et al., 2012):

  • RNA guia: é a combinação do crRNA (onde está a sequência complementar ao alvo) com o tracrRNA (contribui para a estabilidade da estrutura e seu reconhecimento pela enzima Cas);
  • Enzima Cas (do inglês CRISPR associated): essa enzima possui a capacidade de cortar o DNA na região específica identificada pelo RNA guia. Existem várias enzimas descritas hoje em dia, mas a primeira delas foi a Cas9;
  • DNA alvo com a sequência PAM: o DNA alvo é a sequência de interesse que será editada. Próximo a ela, está o motivo adjacente ao protoespaçador ou PAM (do inglês, Protospacer Adjacent Motif), que é uma sequência curta (cerca de 2 a 5 nucleotídeos) essencial para a ancoragem do complexo Cas/RNA guia. A sequência PAM funciona como uma bandeira para confirmação que aquela região do DNA alvo é realmente onde deve acontecer a edição.

 

 

Figura 2: Representação esquemática do sistema CRISPR como ferramenta de edição do genoma. Basicamente são necessários apenas três componentes, o RNA guia formado pela combinação do crRNA e o tracrRNA, a enzima Cas9 e o DNA alvo juntamente com a sequência PAM.

 

De maneira geral, o que acontece na edição do genoma é a entrega do complexo contendo o RNA guia acoplado à enzima Cas, para o tecido que necessita da edição. Um dos métodos mais comuns de entrega é através de vetores virais, que consistem em vírus modificados para não causarem doença, assim como por nanopartículas, exosomos, eletroporação, entre outros métodos de transporte.

Diversas adaptações foram realizadas nesse sistema para permitir uma atuação mais ampla na edição do genoma. Por exemplo, é possível modificar uma base nitrogenada sem necessariamente clivar o DNA utilizando proteínas acopladas à Cas, ou ativar e desativar genes, regular a expressão de genes através de modulação epigenética (afrouxando ou condensando o DNA para deixá-lo mais ou menos disponível para a maquinaria de transcrição da célula), entre outras aplicações [para maiores detalhes, ver revisão de (Chavez et al., 2023)].

Inúmeros estudos utilizam o sistema CRISPR como ferramenta de edição genética na busca pelo tratamento de doenças, mas, até o momento, apenas uma terapia gênica com essa ferramenta foi aprovada para uso em pacientes. No final de 2023, o Reino Unido, seguido dos EUA, aprovaram a terapia com CRISPR para tratamento da anemia falciforme e beta talassemia (Food and Drug Administration (FDA), 2023), após anos de pesquisas e acompanhamento de pacientes. Os resultados são bastante promissores e nos dão esperança para que, em breve, essa metodologia possa ser empregada no tratamento de outras doenças.

No que se refere à NF1, ainda existem poucos estudos com essa metodologia. De maneira geral, a literatura mostra a utilização da ferramenta CRISPR para criar organismos modelos experimentais da doença, a fim de que pesquisas mais aprofundadas possam ser realizadas para melhor entendimento da doença e busca de alvos terapêuticos. Contudo, até então, não existem publicações com o uso de CRISPR no tratamento da NF1.

Afinal, existe cura da NF1 com terapia gênica?

Leier e colaboradores e Staedtke e colaboradores resumem, em seus artigos de revisão, possibilidades de terapias genéticas para a NF1 (Leier et al., 2020; Staedtke et al., 2024). A terapia gênica é sim um grande avanço na medicina, no entanto, existem algumas limitações. É importante destacar que o tamanho e complexidade do gene NF1, a dificuldade com o sistema de entrega (vetores virais e não virais), o aspecto sistêmico da doença que afeta múltiplos órgãos e tecidos, a importância da neurofibromina desde a vida uterina, o diagnóstico tardio e a alta taxa de mutações novas em pessoas sem histórico familiar são alguns dos fatores que dificultam os avanços para o tratamento genético da NF1. Apesar disso, a ciência está caminhando em busca desse tratamento e espera-se que, em breve, novas possibilidades se tornem realidade.

 

Referências

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Outras informações sobre este tema em nosso site:

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https://amanf.org.br/2016/02/novidade-no-dna-das-pessoas-com-nf1/

https://amanf.org.br/2016/03/pergunta-188-por-que-nao-dar-neurofibromina-para-quem-tem-nf1/

https://amanf.org.br/2016/09/reproducao-assistida/

https://amanf.org.br/2018/08/novas-mutacoes/

https://amanf.org.br/2019/04/quando-sera-cura-neurofibromatoses/

https://amanf.org.br/2019/05/reuniao-174-da-amanf-discutiu-novo-tratamento-genetico-a-festa-junina-e-outros-assuntos/

 

 

 

Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o excelente texto de um grupo de neurocientistas da Universidade Federal de Minas Gerais, que tem participado há muitos anos do desenvolvimento dos nossos conhecimentos sobre as pessoas com NF1.

Muito obrigado por mais esta colaboração, que já nasce como uma referência fundamental para a população brasileira.

Dr. Lor

 

Danielle de Souza Costa (Ph.D.)

Jonas Jardim de Paula (Ph.D.)

Débora Marques de Miranda (M.D., Ph.D)

Neuropsicologia da NF1

A Neurofibromatose Tipo 1 (NF1) é uma condição genética que afeta o sistema nervoso central e periférico frequentemente associada a déficits cognitivos (até 80% dos casos), sendo as dificuldades de aprendizagem uma das adversidades mais comuns no quadro (Hyman et al. 2005). Apesar de déficits cognitivos serem uma característica chave da NF1, o perfil de comprometimentos tem se mostrado bastante heterogêneo (Crow et al., 2022). Variáveis sociodemográficas (p.ex., idade, sexo, escolaridade e nível de educação dos pais) não impactam significativamente o perfil de déficits cognitivos na NF1 e os comprometimentos são difusos e salientes ao longo da vida (Crow et al., 2022).

Pessoas com NF1 enfrentam um risco aumentado de desenvolver comprometimentos cognitivos e disfunções motoras (Gutmann et al., 2012). A inteligência é encontrada na faixa média-inferior (ou seja, QI ≈ 85–90) e a taxa de Deficiência Intelectual (i.e., QI ≤70 e baixa funcionalidade) é maior que na população em geral (6%–7%) (Lehtonen et al., 2013). Outra característica marcante é o comprometimento de funções executivas (Beaussart et al., 2018), além de déficits de desempenho acadêmico, habilidade visuoespacial, atenção e funcionamento psicossocial (Lehtonen et al., 2013). É comum que as dificuldades cognitivas sejam evidentes já na infância, entre os 3 e 5 anos de idade (Williams et al., 2009). Apesar de o comprometimento cognitivo ser perceptível em vários domínios na NF1, não existe um perfil cognitivo claro associado à condição (Crow et al., 2022).

Em metanálise, Crow e colegas (2022) encontraram que as maiores diferenças em magnitude de efeito entre pessoas com NF1 e controles foram nos escores de inteligência (geral, de execução e verbal) e em habilidades visuoespaciais. Diferenças menores e moderadas, foram encontradas tanto para habilidades não verbais (memória de longo prazo não verbal, memória de curto prazo não verbal, velocidade de processamento, fluência não verbal, planejamento e função motora) quanto verbais (memória de trabalho verbal e linguagem receptiva). Diferenças progressivamente menores e pequenas foram observadas em linguagem expressiva, controle de interferência, atenção, mudança de conjunto (flexibilidade), fluência fonêmica, memória de trabalho não verbal, inibição de resposta, memória de longo prazo verbal, emoção, memória de curto prazo verbal, fluência semântica e tomada de decisão. Essa relativa falta de especificidade de comprometimento em dimensões cognitivas (p.ex., não verbais vs. verbais) tem sido atribuída à inteligência moderadamente mais baixa na NF1 (geralmente 1DP abaixo da média), aos déficits visuoespaciais e nas funções executivas, bem como às dificuldades de aprendizagem (Cutting et al., 2004).

Apesar das habilidades visuoespaciais serem as mais frequentemente e fortemente afetadas na NF1, além da inteligência, atenção especial tem sido dada aos déficits nas funções executivas talvez pelo seu impacto funcional mais amplo. As funções executivas (FEs; também chamadas de controle executivo ou controle cognitivo) referem-se a uma família de processos mentais top-down necessários quando você precisa se concentrar e prestar atenção, quando agir automaticamente ou confiar no instinto ou intuição seria imprudente, insuficiente ou impossível (Diamond, 2013). Há um consenso de que existem três funções executivas principais: inibição [controle inibitório, incluindo autocontrole (inibição comportamental) e controle de interferência (atenção seletiva e inibição cognitiva)], memória de trabalho e flexibilidade cognitiva (também chamada de mudança de conjunto, flexibilidade mental ou mudança de conjunto mental e intimamente ligada à criatividade). A partir dessas, são construídas as FEs de ordem superior, como raciocínio, resolução de problemas e planejamento. As FEs são habilidades essenciais para a saúde mental e física; sucesso na escola e na vida; e desenvolvimento cognitivo, social e psicológico (Diamond, 2013).

Em metanálise, Beaussart e colegas (2018) apontam que dificuldades executivas são uma característica central na NF1, pelo menos em crianças e adolescentes. As dificuldades são maiores e moderadas nos domínios memória de trabalho e planejamento/resolução de problemas e menores e pequenas para controle inibitório e a flexibilidade cognitiva. A disfunção executiva parece ser maior com o aumento da idade (diferente da metanálise de Crow et al, 2022), enquanto o tipo de ferramenta de avaliação, desempenho intelectual, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade e a composição do grupo controle não parecem afetar os resultados das funções executivas.

As principais características neuropsicológicas da NF1 foram sintetizadas na Tabela 1. Os resultados são baseados principalmente na metanálise de Crow e colaboradores (2022) – a mais recente e abrangente até o momento – junto a informações específicas de outros estudos citados neste capítulo. Organizamos a tabela com base na classificação mais recente das funções cognitivas propostas pelo Manual Estatístico-Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-5-TR – APA, 2020) que adota a nomenclatura “domínios neurocognitivos”. Complementamos esta organização os tópicos inteligência geral e desempenho escolar.

Transtornos do Neurodesenvolvimento na NF1

Transtornos do neurodesenvolvimento ocorrem com frequência na NF1, como o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) (30–50%), dificuldades de aprendizagem (30%–60%) e Transtorno do Espectro Autista (TEA) (25%–30%) (Ferner, 2007; Garg et al., 2012; Garg et al., 2013; Pride, Payne, & North, 2012).

Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH)

O TDAH é um transtorno da autorregulação caracterizado por um padrão extremo e persistente de desatenção (p.ex., descuido, desatenção, desinteresse, não terminar tarefas, desorganização, procrastinação, perder coisas, esquecimento, distração) e/ou hiperatividade-impulsividade (agitação, não ficar sentado, inquietação, barulhento, estar “a mil”, falar demais, precipitação, dificuldade para esperar, interrompe/intromete) (APA, 2022). Levantamentos populacionais sugerem que o TDAH ocorre na maioria das culturas em cerca de 5% das crianças e 2,5% dos adultos (APA, 2022).

O TDAH é um fenótipo comportamental frequentemente encontrado na NF1. Estudos encontram que 23% a 50% das crianças com NF1 atendem aos critérios para o TDAH (Barton & North, 2004; Huijbregts et al., 2010; Hyman et al., 2006; Isenberg et al., 2013; Mautner, Kluwe, Thakker, & Leark, 2002; Templer et al., 2013). Pacientes com NF1 e TDAH parecem ter um desempenho acadêmico mais baixo e mais transtornos específicos de aprendizagem do que pacientes apenas com NF1 (Hachon, Iannuzzi, & Chaix, 2011; Payne et al., 2012). Crianças com NF1 e TDAH apresentam um perfil de déficit de atenção e funções executivas semelhante ao de crianças com TDAH primário, mas com um tempo de resposta mais lento, aumentando as dificuldades de aprendizagem (Routier et al., 2024).

O metilfenidato, uma medicação estimulante comum para o TDAH, tem demonstrado consistentemente eficácia positiva no tratamento de déficits cognitivos e sintomatologia relacionada ao TDAH na NF1 (Lidzba et al., 2014; Loin-François et al., 2014; Mautner et al., 2002), embora déficits atencionais e nas funções executivas existam na NF1 independentemente da comorbidade com o TDAH (Loin-François et al., 2020).

Transtorno do Espectro Autista (TEA)

Outra alteração de neurodesenvolvimento que vem sendo corroborada como mais prevalente e grave em comparação com a população não afetada pela NF1 é o Transtorno do Espectro Autista (TEA) (Chisholm et al., 2018). O TEA é caracterizado por déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos (reciprocidade social, comunicação não verbal e relacionamentos) e por padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, incluindo fala ou outro comportamento repetitivo, insistência na mesmice, interesses restritos e alterações sensoriais (APA, 2022).

Em metanálise, Chisholm e colaboradores (2018) encontraram que as dificuldades no funcionamento social na NF1 variam de moderadas a altas, incluindo habilidades sociais reduzidas e comportamentos pró-sociais diminuídos, bem como dificuldades sociais aumentadas, como isolamento e menor aceitação pelos pares. Déficits na percepção de emoções em crianças e adultos com NF1, especialmente ao identificar emoções negativas como raiva e medo, já foram descritas, além de menor capacidade na atribuição de estados mentais. Os autores também descrevem que a sintomatologia do TEA na NF1 em comparação com amostras controle é significativamente maior (tamanho de efeito grande). Sobre a prevalência do TEA em si na NF1, apenas dois estudos foram identificados, apontando prevalência de 25% (Garg et al. 2013; Plasschaert et al. 2015). Nesses estudos, em comparação com pessoas com TEA idiopático, pessoas com NF1 apresentam menos comportamentos estereotipados e melhor contato visual (Garg et al. 2013; Morris et al. 2016; Plasschaert et al. 2015). Se a natureza dos sintomas de TEA na NF1 é diferente daquela na condição idiopática, é uma questão a ser esclarecida.

Dificuldades de aprendizagem e transtornos específicos de aprendizagem

Aproximadamente 70% dos pacientes com NF1 experimentam baixo desempenho acadêmico devido a dificuldades de aprendizagem ou problemas comportamentais (Hyman et al., 2005).

Os déficits de leitura são prevalentes na NF1 (50% a 67%) (Orraca-Castillo et al., 2014; Watt, Shores, & North, 2008) e as dificuldades em testes de linguagem associadas à leitura são maiores em crianças com NF1 do que em crianças com um transtorno específico de aprendizagem (Cutting, Koth, & Denckla, 2000). Medidas de inteligência, decodificação e precisão de leitura, além de medidas laboratoriais e comportamentais de atenção influenciam o desempenho de crianças com e sem NF1 em compreensão de leitura (Biotteau et al., 2021).

Num estudo envolvendo 32 estudantes com NF1(Orraca-Castillo et al., 2014), encontrou-se que a frequência da dislexia foi de 50%, enquanto a de discalculia de 18,8%. Os mecanismos relacionados à dislexia e à discalculia na NF1 foram déficits em estratégias lexicais e fonológicas e baixa recuperação de fatos numéricos. Além disso, a eficiência em estratégias lexicais/fonológicas e aritmética mental foram preditores significativos das diferenças individuais na conquista da leitura e da matemática, respectivamente. No estudo, não foram encontrados déficits em capacidades numéricas básicas na amostra.

Embora os déficits de leitura e processos subjacentes sejam mais frequentes, em metanálise, o déficit em aritmética e escrita (grande) foi maior do que em leitura (moderado) (Crow et al., 2022).

Conclusão

Em conjunto, esses achados sugerem uma interrupção dos processos de neurodesenvolvimento típicos na NF1, ressaltam a importância da neurofibromina no desenvolvimento normal do cérebro e demonstram que esforços devem ser feitos para avaliar e abordar a morbidade cognitiva em pacientes com NF1 em conjunto com as melhores práticas existentes.

 

Dificuldades cognitivas em pacientes com NF1, repercussões clínicas e transtornos do neurodesenvolvimento associados

 

Domínio cognitivo Habilidades específicas Magnitude do déficit* Características clínicas Transtornos de Neurodesenvolvimento Correlacionados
Inteligência QI Geral Alta Deficiência intelectual, problemas de aprendizagem, dificuldades laborais, dificuldades na resolução de problemas Deficiência intelectual, Atraso Global do Desenvolvimento
QI Verbal Alta
QI Executivo Alta
Perceptomotor Habilidades visuoespaciais Alta Dificuldades de orientação espacial, discriminação esquerda-direita, busca visual de informações, esquema corporal, coordenação motora reduzida. Dificuldades com conteúdo escolar visual (ex.: mapas, geometria, artes e gráficos). Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação, Transtorno Não-Verbal de Aprendizagem
Fluência não-verbal Moderada
Controle motor Moderada
Atenção Complexa Velocidade de processamento Moderada Dificuldades em estabelecer, manter e controlar o foco atencional. Nível de alerta/responsividade reduzido. Redução da velocidade de processamento (mental) e lentificação psicomotora (comportamento. Transtorno do Déficit de Atenção-Hiperatividade, Síndrome do Desengajamento Cognitivo (Sluggish Cognitive-Tempo)
Controle de interferência Moderada
Atenção sustentada Moderada
Linguagem e Comunicação Linguagem receptiva Moderada Dificuldades articular e expressar corretamente a linguagem. Problemas de compreensão na linguagem oral ou escrito. Dificuldades na comunicação social e interação com os pares. Transtorno da Linguagem, Transtorno da Fala, Gagueira, Transtorno da Pragmática (comunicação social).
Linguagem expressiva Moderada
Fluência verbal semântica Sem déficit
Fluência verbal fonêmica Sem déficit
Linguagem e Aprendizagem Memória de longo prazo (verbal) Sem déficit Dificuldades em recordar eventos recentes (episódios), problemas na junção de múltiplas informações na memória (conteúdo, local e tempo), dificuldades em manter informações mentalmente. Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade, Transtorno Específico de Aprendizagem (Dislexia e Discalculia)
Memória de longo prazo (não-verbal) Moderada
Memória de curto prazo (verbal) Sem déficit
Memória de curto prazo (não-verbal) Moderada
Funções Executivas Memória de trabalho (verbal) Moderada Dificuldades na resolução de problemas práticos no dia a dia. Desorganização, falta de planejamento, rigidez cognitiva, distratibilidade e procrastinação. Dificuldades no aprendizado de conteúdos complexos. Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade, Transtorno do Espectro Autista, Deficiência Intelectual e Atraso Global do Desenvolvimento.
Memória de trabalho (visuoespacial) Leve
Planejamento Moderada
Flexibilidade cognitiva Leve
Controle inibitório Leve
Tomada de decisão Sem déficit
Cognição Social Processamento emocional Leve Dificuldades no reconhecimento e interpretação de informações sociais e emocionais, dificuldades nos relacionamentos sociais. Transtorno do Espectro Autista, Transtorno da Pragmática
Percepção social Leve
Cognição social Moderada
Habilidades Escolares Matemática Alta Dificuldades no aprendizado e das habilidades escolares básicas (leitura, escrita e matemática). Redução da fluência de leitura e escrita. Dificuldades de compreensão de texto. Problemas na resolução de cálculos aritméticos e algébricos Transtorno Específico de Aprendizagem (Dislexia, Discalculia e Disgrafia)
Leitura Moderada
Escrita Alta

            Magnitude estimada com base nos resultados da metanálise de Crow e colaboradores (2022) e demais estudos referenciados neste capítulo.

           

Referências

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