Este espaço é destinado a opinião de pessoas com experiência em diversos assuntos relacionados com as neurofibromatoses.

Terminou na semana passada, em Bruxelas, na Bélgica, a Global NF Conference, que reuniu uma parte da comunidade científica internacional que se dedica ao estudo da NF1 e das Schwannomatoses. Foram 305 assuntos abordados no congresso e destacamos a seguir algumas informações.

A primeira, é que foi um evento patrocinado por alguns laboratórios da indústria farmacêutica, principalmente a Astrazeneca (representada pela Alexion – seu braço comercial para as doenças raras) e a SpringWorks. Assim, já podíamos esperar, como aconteceu, as diversas sessões de propaganda explícita de medicamentos disfarçadas de comunicações científicas. 

A segunda, é que, no meio de muita propaganda, encontramos mais alguns tijolos úteis nessa lenta construção do conhecimento científico sobre NF1 e Schwannomatoses, como alguns avanços no uso da inteligência artificial (14 temas) e no chamado tratamento genético (outros 14 temas). 

A terceira, é que os medicamentos produzidos pelas indústrias patrocinadoras, chamados de inibidores da via MEK dominaram a pauta da reunião (1 em cada 5 temas discutidos). Assim, é preciso compreender o que são estes medicamentos antes de prosseguirmos nossa análise. 

Inibidores MEK 

Já se sabe que diversas manifestações clínicas da NF1 ocorrem porque há insuficiência de uma proteína chamada neurofibromina, a qual controla o crescimento celular assim:

Quando a célula deve crescer, ocorre um estímulo para o crescimento celular, que leva ao início de uma cadeia de eventos dentro da célula, que leva à ativação da etapa MEK, que leva à multiplicação celular. 

Quando a célula não deve crescer: ocorre um estímulo para o crescimento celular, que leva ao início da cadeia de eventos dentro da célula, mas ela sofre BLOQUEIO PELA NEUROFIBROMINA, evitando a ativação da etapa MEK , e então não ocorre multiplicação celular. 

Portanto, a insuficiência da neurofibromina nas pessoas com NF1 permite que a célula cresça quando não deveria, dando origem aos tumores (múltiplas células). 

Os medicamentos inibidores MEK foram desenvolvidos para “substituir” a neurofibromina, ou seja, inibir a etapa MEK, evitando o crescimento inadequado das células e a formação dos tumores.

O mecanismo suposto faz sentido e assim foi desenvolvido o medicamento selumetinibe (um dos inibidores MEK em estudo e discutidos no congresso), o primeiro a ser aprovado para uso terapêutico em diversos países nos neurofibromas plexiformes SINTOMÁTICOS E INOPERÁVEIS (ver aqui mais informações sobre isso). 

Os resultados de estudos com vários inibidores MEK foram apresentados no evento, a maioria deles com efeitos semelhantes ao selumetinibe: cerca de 30% de redução do volume dos plexiformes em metade das crianças que usaram a droga por pelo menos 8 meses, mas sem o uso de placebo para comprovação e com efeitos colaterais moderados (inclusive 10% de fraturas ósseas, ainda não relatadas, segundo resumo apresentado no evento pela pesquisadora Andrea Baldwin e colaboradores, vários deles também autores da pesquisa que justificou a aprovação do medicamento pelas autoridades de saúde).

Nos estudos apresentados em Bruxelas, a maioria patrocinada pelos fabricantes das drogas, além dos neurofibromas plexiformes sintomáticos e inoperáveis, os inibidores MEK também estão sendo testados em experimentos clínicos, modelos animais, culturas de células e relatos de casos clínicos, mas os resultados são ainda inconclusivos nas seguintes situações: 

  1. neurofibromas cutâneos, 
  2. gliomas das vias ópticas
  3. glioblastomas  
  4. dor neuropática (em camundongos e mini porcos)
  5. dificuldades cognitivas (em moscas drosófilas)
  6. fadiga  (1 caso)
  7. tratamento adjuvante na transformação maligna 
  8. “preventivos” para crescimento dos tumores 
  9. “preventivos” para displasia do esfenoide
  10. tratamento de problemas psiquiátricos em pessoas com NF1

A expectativa de usar um mesmo tipo de medicamento para essa lista de problemas clínicos tão diferentes entre si parece pouco realista, mas, quem sabe? 

Em conclusão, é possível que a busca por tratamentos das complicações da NF1 com inibidores MEK continue por alguns anos e, nesta busca, esperamos que medicamentos mais eficientes, mais seguros e com preço mais acessível sejam encontrados. 

Esperamos também que, para isso, o financiamento dos estudos se torne cada vez mais público e menos privado (ver aqui as ideias de Isabelle Stengers como é possível), para garantir que as pessoas sejam as mais beneficiadas e não as ações da indústria de medicamentos.

Nos próximos dias comentaremos outras novidades do congresso. 

Dr. Lor

 

 

 

Na semana passada opinei (ver aqui o texto) que precisamos criar associações de defesa da saúde das pessoas, nas quais possamos contar com cientistas que nos ajudem a compreender e colocar a ciência do nosso lado e não do lado do lucro e dos interesses capitalistas.

Recebi muitos comentários sobre o texto, a maioria em apoio à ideia de que precisamos nos defender dos maus usos da ciência. Destaco alguns deles a seguir, que melhoraram minha compreensão do assunto.

 

Em quem confiar?

Sendo “a ciência “ uma abstração, não seria o caso de perguntar em quem devemos confiar? Uso abstração no sentido de que “a ciência “ é uma ideia e como tal só existe na mente das pessoas. Como um método e como uma aplicação ideal deste método. Na prática a ciência é feita por pessoas e, como você colocou, a complexidade dos assuntos nos faz delegar o entendimento completo para especialistas em quem confiamos implicitamente.

Então acho que no final é uma questão de escolher os especialistas nos quais se vai confiar, e neste ponto entram os outros critérios que você cita: motivação financeira, consenso, visão de mundo etc.

No fundo, portanto, é uma questão de confiar na reputação de um grupo de pesquisas, empresa ou entidade.

Juliano Viana, Cientista da computação.

Resposta: Seu argumento ajudou a esclarecer que o uso da ciência é uma escolha política.

 

Anônimo justificado

Não bastasse a desinformação criminosa difundida na internet (como o Sol brilhante na tela, em meio à tempestade e cavalos mortos na vida real – desenhados na charge), há o conluio igualmente criminoso da indústria farmacêutica com as associações que congregam pacientes.

AMANF é honrosa exceção que deve ser preservada.

Peço para minha opinião ser anônima, pois publiquei um texto semelhante em que apontei para a manipulação das associações pelos laboratórios e isto me rendeu embaraços no passado.

 

Esperança equilibrista

Concordo em gênero, número e grau. Me lembro também de uma questão que corre paralela. A esperança do “desta vez, vai”… E não funciona! Da próxima vez haverá um medicamento salvador.

Isto foi revelado por uma pessoa querida que acompanhava o marido em tratamento, pois cada vez que iam ao médico existia uma nova ” esperança equilibrista” . Eles estavam cansados.

Mirtes Maria do Vale Beirão, Professora aposentada de pediatria da UFMG

 

Pouco é melhor do que nada

Acredito nas vacinas e agradeço aos cientistas por sua dedicação em desenvolvê-las.
Quanto ao remédio mencionado, é o que temos no momento e considero 30% de redução de neurofibromas plexiformes razoável, em se tratando de um tumor tão grave. Até para, posteriormente, se tentar uma cirurgia.

Clara Terezinha, professora de Educação Infantil, Psicomotricista, Pedagoga, Portadora de NF1, do Rio de Janeiro

 

Trabalho de formiguinha

É um trabalho de formiguinha disseminar estes “avanços” no meio de tantos conflitos de interesse… Tenho um olhar crítico porque talvez não sejam “tão avanços assim” e não valem o que estão cobrando. É uma posição delicada, pois, de certa forma, questionamos a ciência e, neste cenário (de polarização), isto fica mais complicado e os negacionistas podem usar e abusar destas críticas.

Unaí Tupinambás, Professor de Medicina da UFMG

 

E a situação atual das pessoas com doenças raras?

Muito importante e assertiva a nova publicação no site da AMANF. Entendo a cautela tendo em vista se tratar de uma indústria farmacêutica e pesquisadores vinculados a ela, especificamente. Também compreendo e assino embaixo da necessidade de lutar por uma ciência em saúde pública, gratuita e de qualidade. Temos muito o que lutar para que avancem as pesquisas científicas no centros de pesquisas públicos, sem intenções de interesses privados servientes ao grande capital. Entendo todas essas urgências e sigo na luta para que esse cenário se modifique.

Mas me pergunto, enquanto não temos essa resposta tão esperada pela ciência em saúde pública e enquanto portadora da SWN/NF2, tendo certa urgência pois para nós é uma luta contra o tempo, qual conduta tomar? Como decidir?

Essa é a grande questão que paira em minha mente!

Me vejo diante de uma encruzilhada entre continuar apenas acompanhando o crescimento dos tumores ou tentar um tratamento para os tumores através desse medicamento.

Erica Onofre, Doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento.

Resposta: Cara Érica, o medicamento em questão é para casos específicos de pessoas com NF1. Ainda não temos nenhum medicamento aprovado para Schwannomatoses.

 

Humor à flor da pele

Na dermatologia, falo agora que alguns palestrantes têm pouco interesse para o tanto de conflito que possuem…

João Renato Gontijo, professor de dermatologia.

 

Sedução dos laboratórios

Esse tipo de dúvida tem sido comum, principalmente com doenças genéticas e/ou crônicas, porque os pacientes e suas famílias desejam a cura ou a melhora de suas doenças.
Por outro lado, os médicos e demais profissionais de saúde não podem ser seduzidos pelos laboratórios, que inclusive pressionam a Conitec e a Anvisa. E financiam alguns pesquisadores.

Vocês precisavam ver o tanto de conversa eu tive com os pais de algumas crianças que atendi, eles dizendo exatamente que a vacina era nova e que não havia estudos. Eu então mostrava-lhes o cartão de vacina da criança e perguntava-lhes por que não as questionaram na ocasião. Mesmo com todos esses argumentos, não consegui convencer a todos.

Maria das Graças Oliveira, médica pneumologista e líder da luta antitabagismo

Opinião pessoal

Durante a consulta de uma criança com neurofibromatose do tipo 1 (NF1), sua família perguntou se ela devia usar um medicamento divulgado nas redes sociais e então respondi que há algumas dúvidas sobre a eficiência daquele medicamento, lançado no comércio por um certo laboratório farmacêutico.

Momentos depois, quando sugeri o uso da vacina contra a COVID, a família manifestou sua desconfiança na eficácia da vacina, porque, segundo souberam, fora “inventada muito rapidamente” e, no entanto, foi produzida pelo mesmo laboratório.

Percebi, então, nossa contradição: como podemos confiar (ou desconfiar) das vacinas, mas confiar (ou desconfiar) no tal medicamento, sendo que a vacina e o medicamento são produzidos pelo mesmo laboratório?

Tento compreender.

Por um lado, para confiar nas vacinas, aprendi na faculdade e ao longo de minha prática profissional que as vacinas trazem consigo um histórico de salvar milhões de vidas com baixíssimos riscos. Elas são uma das grandes construções científicas que acompanho desde minha infância, quando ainda havia vítimas em cadeiras de rodas que não foram vacinadas contra a poliomielite entre meus colegas de geração.

Além disso, as vacinas são recomendadas por autoridades em saúde pública, local e internacionalmente, e tenho confiança nelas, acreditando que ministros, secretários e conselhos científicos devem recomendar o melhor para a saúde de suas populações.

Do outro lado, como especialista em neurofibromatoses, há anos acompanho os esforços de diversos laboratórios farmacêuticos para descobrir alguma droga que elimine, reduza ou, pelo menos interrompa o crescimento dos tumores da NF1 de forma eficiente.

Um dos laboratórios nessa corrida tecnológica conseguiu testar uma droga e os pesquisadores (alguns recebendo pagamentos do fabricante) afirmam que a substância reduziu o volume dos neurofibromas plexiformes em até 30% em metade das crianças testadas, com poucos efeitos colaterais. Com este resultado, o laboratório conseguiu a aprovação das autoridades de saúde, nos Estados Unidos e em outros países, inclusive no Brasil, para comercializar o produto.

Considerando o efeito modesto do medicamento (apesar de promissor para estudos futuros) e o custo altíssimo do medicamento (cerca de 1 milhão de reais por ano por paciente, por tempo indefinido), as equipes médicas da AMANF e do CRNF do HC UFMG consideram que há algumas situações em que o medicamento pode ser útil, mas não concordamos com a sua prescrição disseminada como vem acontecendo.

A maioria das pessoas não tem formação suficiente em biologia ou medicina para entender os resultados complexos das pesquisas com medicamentos.

Aliás, a mesma ciência que permitiu o desenvolvimento das vacinas também permitiu a criação das armas nucleares e acelerou a tecnologia predatória do capitalismo e a devastação do planeta.

Da mesma forma, as mesmas autoridades em saúde que aprovam os medicamentos e vacinas também podem, por motivos financeiros ou políticos, recomendar procedimentos criminosos, como aconteceu no ministério da saúde durante a pandemia de COVID no governo de Jair Bolsonaro, que levaram a um excesso de mortes de mais de 300 mil pessoas em relação aos demais países.

Em resumo, temos que ter cautela diante da propaganda do laboratório e também da aprovação das autoridades em saúde para o medicamento.

Como podemos enfrentar esse tipo de dúvida?

Então, precisamos nos organizar melhor em defesa da saúde como um todo, – do SUS – participando dos Conselhos Municipais de Saúde e elegendo representantes comprometidos com a saúde pública.

Mas também precisamos construir ou pertencer a entidades coletivas de defesa das pessoas com determinadas condições de saúde, que procurem influenciar a política de saúde pública, como tentamos fazer na AMANF, por exemplo.

Nessas entidades precisamos de pessoas capazes de compreender e explicar a ciência para as demais, tomando a ferramenta poderosa da ciência das mãos do capitalismo e utilizando-a em benefício do bem estar de toda a humanidade.

Aí, poderemos confiar nas respostas da ciência.

Neste caso da família atendida, é uma resposta a favor do uso das vacinas e da cautela com o tal medicamento.

Dr Lor