Este espaço é destinado a opinião de pessoas com experiência em diversos assuntos relacionados com as neurofibromatoses.

“Tenho NF1, estou com 26 anos e vou me casar em breve. Existe um meio de garantir que meus filhos biológicos não venham com a doença? “ JR, de Natal, RGN.

 
Caro J, obrigado pela sua pergunta, que é de interesse comum.


Primeiramente, vamos lembrar que a chance de seu filho (ou filha) herdar a sua mutação é de 50% em cada gestação. Ou seja, há uma chance em duas do bebê nascer sem NF1, ou como tirar coroa na moeda jogada para o alto.

Para garantir que uma mutação que causa a NF1 não seja passada adiante numa gestação existem técnicas de reprodução humana assistida, ou seja, métodos desenvolvidos por equipes especializadas. Estes métodos permitem a seleção daqueles embriões que não contém a mutação para NF1 e a sua inseminação artificial. Como isto é feito?

De forma resumida, é o seguinte. O casal interessado procura os centros de reprodução assistida, onde a mulher receberá hormônios que irão estimular o amadurecimento de vários de seus óvulos de uma só vez. No momento certo estes óvulos são recolhidos e colocados em contado com os espermatozoides do parceiro para que haja a fecundação. Geralmente, mais de um óvulo é fecundado e alguns embriões são obtidos, mas ainda não sabemos quais deles têm o diagnóstico de NF1.

Três dias depois de formados os embriões, uma biópsia muito delicada é feita retirando-se apenas uma célula de cada embrião e esta célula é levada para análise do DNA. Aqueles embriões que não apresentarem a mutação para NF1 são transferidos para o útero da mulher, onde darão continuidade à gestação. Assim, temos a garantia de que os bebês concebidos por esta técnica não apresentarão a NF1.

Desde 2002 este método vem sendo aplicado em pessoas com NF1 e NF2, mas nem sempre funciona bem e ainda são relativamente poucos casos realizados na experiência mundial. 


Sua pergunta seguinte provavelmente é querer saber onde poderá realizar este procedimento, chamado de diagnóstico pré-implantacional (DPI).

No momento, no Brasil, o DPI é permitido por lei, embora haja pessoas que não o aprovam por questões éticas, com o receio de que ele venha a ser usado para excluir embriões femininos, por exemplo. Existem clínicas privadas brasileiras que realizam estes procedimentos em parceria com clínicas internacionais, as quais ficam responsáveis pela análise da mutação NF1 (ou NF2) no DNA a partir daquela única célula retirada do embrião. Não conheço nenhum serviço público no Brasil que esteja realizando o DPI para pessoas com neurofibromatoses.

Em nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais temos adotado a busca por soluções públicas para os problemas e questões apresentados pelas pessoas com neurofibromatoses, ou seja, defendemos o fortalecimento do Sistema Único de Saúde.

Por isso, temos elaborado propostas na Associação Mineira de Apoio às pessoas com Neurofibromatoses (AMANF) direcionadas ao SUS, no sentido de que este serviço seja oferecido às pessoas com NF. Estamos nesta luta neste momento (2021).

 

 

Atualizado em 18/10/2021

“Ontem li uma reportagem que me deixou intrigado, falando da cura das doenças raras em um método chamado de CRISPR. … como curar a doença genética? Mudar todas as células da pessoa? Li alguns artigos. Bem, estou certo em pensar que quando se falam desta cura é a modificação genética, ainda como óvulo? Ou seja, não é possível fazer isso em adultos? Veja o link para a reportagem AQUI “. RLB de Coimbra, Portugal.

Caro R, sua pergunta é muito interessante e foi feita também por outras pessoas que leram este blog. Para responder com segurança sobre esta questão, convidei a doutoranda Cinthia Vila Nova Santana, que submeteu suas respostas ao seu orientador Renan Pedra de Souza, do Programa de Pós-Graduação em Genética do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Veja abaixo o que eles responderam.

Além disso, vejam a reportagem que foi publicada em 2018 Clicar Aqui

Veja também novas informações experimentais de 2021 CLIQUE AQUI

Cinthia e Renan também enviaram referências de artigos e livros sobre cada etapa do seu pensamento e elas estão disponíveis comigo para quem se interessar, basta solicitar por e-mail.

Cinthia – O desenvolvimento da técnica de DNA recombinante em 1970 marcou o início de uma era importante na Biologia. Pela primeira vez, pesquisadores foram capazes de manipular moléculas de DNA (ativando e desativando, ou seja, editando os genes – Figura ilustrativa acima), o que tornou possível o estudo de genes de interesse medicinal e biotecnológico. Desde então, muitos avanços aprimoraram as técnicas de biologia molecular, possibilitando o estudo dos genes não apenas isolados, mas também no organismo como um todo.

Muitas das ferramentas para edição do genoma são baseadas no princípio da complementariedade de bases: a base Adenina é complementar à Timina e a Citosina é complementar à Guanina. Isto possibilitou o desenvolvimento de técnicas para multiplicação de fragmentos de DNA (chamada de reação da polimerase em cadeia, PCR), permitiu o silenciamento de genes (knockout) ou diminuição da expressão gênica (knockin) e também inserção de mutações em um gene, por exemplo.

Apesar das tecnologias disponíveis, nem sempre se consegue a recombinação desejada. Além disso, o genoma de eucariotos (como nós, seres humanos) contém milhões de bases de DNA, tornando difícil a sua manipulação.

A fim de superar estes desafios, novas técnicas para edição do DNA são constantemente desenvolvidas e, recentemente, o sistema CRISPR-Cas ganhou merecida atenção. Apesar de descrito em 1987, este sistema foi somente empregado como ferramenta biotecnológica em 2012 e em 2013 já foi eleito um dos destaques do ano pela revista científica Nature.

LOR – Mas o que vem a ser esta nova técnica CRISPR-Cas?

Cinthia – CRISPR é uma sigla em inglês que significa: Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas.

Aparentemente é algo complicado, mas se analisarmos com atenção não é tão difícil quanto parece. Como o próprio nome indica, CRISPR trata de sequências de bases palindrômicas, assim como ARARA, que é uma palavra palindrômica, ou seja, pode ser lida de trás para frente sem mudar o sentido. Elas são curtas e agrupadas e se repetem com espaços regulares entre elas, por exemplo, a cada 20 nucleotídeos há uma repetição (Figura 2).


Figura 2: Representação do sistema CRISPR-Cas. Em azul mais à esquerda estão os genes associados a CRISPR (“cas genes”) e mais à direita, os losangos pretos representam as repetições (“repeat”), enquanto que os quadrados coloridos são os espaçadores regulares (“spacer”). A este conjunto dá-se o nome de locus da CRISPR (Figura adaptada de http://rna.berkeley.edu/crispr.html).

O sistema CRISPR-Cas foi primeiramente descrito em bactérias como um mecanismo de defesa contra vírus.

Esta defesa acontece da seguinte forma: durante uma infecção virótica, o DNA do vírus é liberado dentro da célula bacteriana e é integrado ao sistema CRISPR como um novo espaçador (como se fosse um dos quadrados coloridos da Figura 2) (Figura 3, estágio 1). A sequência CRISPR é então transcrita (isto é, a informação é passada de DNA para RNA) e processada para gerar os CRISPR RNAs (crRNAs), cada um codificando a informação de uma sequência espaçadora específica (Figura 3, estágio 2). Cada crRNA associa-se com uma proteína Cas que usa o crRNA como molde para silenciamento de elementos genéticos externos (Figura 3, estágio 3).

 
Figura 3: Mecanismo de ação do sistema CRISPR-Cas9. Conferir corpo do texto para maiores detalhes. Fonte: http://rna.berkeley.edu/crispr.html

Em resumo, com o uso do CRISPR, a bactéria consegue impedir que o vírus seja bem-sucedido em sua infecção através de modificações do material genético do vírus. 


Se quiser entender um pouco melhor sobre CRISPR-Cas9, veja o vídeo https://www.youtube.com/watch?v=2pp17E4E-O8.

LOR – Mas como um mecanismo de defesa bacteriano contra vírus pode se tornar uma ferramenta biotecnológica em seres humanos?
Cinthia – A resposta vem em duas partes. Primeiro, o processo de defesa acontece por alteração genética que é controlável, ou seja, teoricamente é possível decidir qual a alteração que será realizada no material genético.

Segundo, embora outras técnicas de mutação regulada (ou dirigida) sejam conhecidas, o sistema CRISPR-Cas9 é consideravelmente mais simples em relação às técnicas anteriores.

LOR – Então, a técnica CRISPR-Cas9 pode ser usada em seres humanos?

Cinthia – Esta hipótese está em teste. Resultados experimentais ainda preliminares indicam que grupos de poucas células podem responder a esta metodologia de maneira satisfatória, mas ainda não se sabe qual é o efeito do CRISPR em um ser humano. Várias das metodologias anteriores capazes de gerar alterações no código genético de maneira regulada mostraram-se funcionais em grupos de poucas células, mas sem efeitos no ser humano.

Até abril de 2016 já foram publicados cerca de 1.200 artigos científicos citando o sistema CRISPR-Cas9, segundo o site de pesquisas biomédicas PubMed (disponível no endereço eletrônico http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed).

Diversos estudos já utilizaram esta técnica para edição do DNA em linhagens celulares, plantas (trigo, arroz, tabaco), fungos, Drosophila, peixes (zebrafish), camundongos, sapos e até mesmo macacos, nas mais diversas aplicações: agricultura (aumentar resistência a pragas nas lavouras de trigo), reprodução de modelos de câncer em camundongos para estudos de vias biológicas e de efeitos de medicamentos, identificação de genes essenciais para viabilidade celular especialmente em câncer, alteração de mutações responsáveis por doenças genéticas em modelos experimentais.

No entanto, estudos em seres humanos são praticamente inexistentes e o principal foco dos estudos neste momento é entender melhor como certas características são determinadas.

LOR – E em relação às neurofibromatoses? Existe algum trabalho publicado?

Cinthia – Em pesquisa feita no site do PubMed com os termos “CRISPR neurofibromatosis” (em inglês), apenas dois estudos são exibidos: Shalem e colaboradores (2014) e Beauchamp e colaboradores (2015). Os dois trabalhos utilizam a técnica CRISPR para regular os genes NF1 e NF2, somente em modelos experimentais, novamente com o objetivo de compreender melhor o desenvolvimento da neurofibromatose.

LOR – A técnica CRISPR-Cas9 poderia ser usada para alterar as mutações nos genes das neurofibromatoses? Caso afirmativo, qual seria o tempo de expectativa?

Cinthia – O primeiro problema desta questão é conceitual. O que representaria alterar o código genético de um paciente com neurofibromatose, assumindo que isto fosse possível? Seria possível recuperar a produção de neurofibromina?

No seu blog, você já abordou a dificuldade em se fazer um medicamento para reposição da neurofibromina (ver aqui). As mesmas dificuldades são pertinentes neste caso do CRISPR. Como você explicou, a neurofibromina é uma proteína necessária especialmente durante o desenvolvimento do bebê dentro do útero. Logo, não se espera que a alteração do código genético em pacientes fosse capaz de reverter uma série de sintomas associados à inexistência de neurofibromina ainda em estágios iniciais de desenvolvimento.

Bom, mas e se considerarmos então uma intervenção do código genético ainda durante a vida intrauterina? Essa questão nos leva a outra linha de raciocínio. Em cerca de metade dos casos de NF1 a mutação é nova, o que significa dizer que nenhum dos pais possuía em seu código genético aquela alteração e muito provavelmente não ficarão sabendo de sua existência antes do nascimento. Para os casais em que se conhece um histórico familiar da doença uma possibilidade seria o aconselhamento genético para que todas as opções sejam consideradas.

LOR – Mas então, neste momento, a técnica CRISPR-Cas9 não poderia ter utilidade para pacientes com neurofibromatoses?

Cinthia – Esta técnica é realmente uma revolução no campo da ciência e já é referida como uma possível “cirurgia do genoma”, mas ainda há muito que se descobrir quanto ao seu funcionamento.

Primeiro há de se entender como seria o resultado desta técnica em um indivíduo sem neurofibromatose para depois estudá-la como um tratamento. Grupos de pesquisadores também estão atrás de respostas para várias das perguntas feitas neste texto.

A ciência avança rapidamente, as técnicas estão aprimorando a cada dia e nós, pesquisadores das neurofibromatoses, investigaremos todos as técnicas que tenham um potencial, mesmo que mínimo, de melhorar a vida dos pacientes com neurofibromatoses.


Muitas pessoas perguntam se por terem nascido com neurofibromatose tem direito à aposentadoria por invalidez. Esta é uma pergunta importante e precisa ser respondida tendo em vista as leis existentes.

Por exemplo, ontem comentei sobre o Projeto de Lei Federal que está tramitando no Congresso Nacional em relação às pessoas com neurofibromatoses, encaminhado por um deputado federal pelo Espírito Santo, Sergio Vidigal (PDT). É um projeto bastante semelhante à lei que já está em vigor em Minas Gerais, segundo a qual as pessoas acometidas por neurofibromatoses já são consideradas portadoras de necessidades especiais (Lei 21.459, de 2014, fruto do PL 3.037/12, sancionada pelo governador de Minas Gerais em 2014).

A Lei mineira “inclui no grupo de pessoas com deficiência aquelas acometidas com neurofibromatose, doença incurável e degenerativa, também chamada de síndrome de Von Recklinghausen, que causa dores crônicas e desfiguração de partes do corpo. A norma assegura às pessoas com neurofibromatose os direitos e benefícios previstos na Constituição e na legislação estadual para a pessoa com deficiência, desde que ela se enquadre no conceito definido na Lei 13.465”.

Nesta semana, o professor Élcio Neves da Silva, uma pessoa que está exercendo grande liderança na organização da associação capixaba de apoio às pessoas com neurofibromatoses, também me informou que foi publicada uma nova Lei no Estado do Espírito Santo, semelhante à de Minas Gerais, que reconhece as necessidades especiais das pessoas com neurofibromatoses.

A nova Lei, de autoria do deputado estadual Doutor Homero (PMDB), recebeu o número 10.490/2015, e foi publicada no Diário Oficial do Espírito Santo no dia 18 de janeiro de 2016. Ela pretende assegurar a todas as pessoas com NF os cuidados diferenciados garantidos pela Constituição Estadual e demais legislações em vigor.

Estas leis e o projeto federal têm alguns pontos em comum, sobre os quais precisamos conversar. Primeiro, quero deixar claro que entendo que as pessoas que propuseram estas leis buscam a melhoria das condições de saúde das pessoas com neurofibromatoses. No entanto, alguns conceitos incluídos no texto das leis podem causar dificuldades na sua aplicação.

Primeiro, tanto a lei estadual como o projeto federal se destinam ao benefício de pessoas com o que eles denominam de Síndrome de Recklinghausen. É importante lembrar que os conhecimentos modernos sobre as neurofibromatoses não utilizam mais a denominação de Síndrome (ou Doença) de Recklinghausen desde o início da década de 90 no século passado.

Não é apenas uma questão de troca de nomes, mas já se decorreram mais de 26 anos desde o consenso internacional alcançado depois das descobertas dos genes causadores das neurofibromatoses. A partir daquela data, toda informação científica vem sendo construída dentro de um novo modelo científico, o qual não mais confunde as neurofibromatoses com a Doença de von Recklinghausen e nem com os sete tipos de NF propostos pelo Professor Riccardi.

Segundo, as leis dão a entender “A” neurofibromatose é uma doença genética rara que se manifesta por volta dos 15 anos e provoca o crescimento anormal de tecido nervoso pelo corpo, formando pequenos tumores externos chamados de neurofibromas.

Então, mais uma vez, para evitar confusões, é preciso lembrar que todas AS neurofibromatoses já estão presentes ao nascimento (nos genes) e que podem se manifestar em qualquer época da vida, desde os primeiros anos de idade (geralmente a NF1), no começo da vida adulta (geralmente a NF2) ou depois dos 30 anos (geralmente a Schwannomatose).

Terceiro, as leis mencionam que as pessoas acometidas têm de conviver com dores crônicas ou “desfiguramento” de partes do seu corpo, o que causa grande sofrimento ao indivíduo e a seus familiares.

De fato, para algumas pessoas, o principal problema de sua doença são as dores, como na Schwannomatose. No entanto, geralmente dor não é a principal queixa das pessoas com NF1 e NF2. Além disso, é preciso esclarecer, porque isso assusta e faz sofrer muitas famílias, que algum tipo de deformidade corporal pode acontecer em menos de 10% das pessoas com NF1 e praticamente estas complicações estão ausentes na NF2 e Schwannomatose.

Numa nota de divulgação da nova Lei no Espírito Santo, a Sra. Luísa Bustamante finaliza dizendo: “A intenção é chamar a atenção das autoridades para o problema. São inúmeras pessoas que estão nessa condição e que são perfeitamente capazes; porém, não são aproveitadas pelo mercado de trabalho pelo fato de terem essa patologia. Além da luta pela vida, o preconceito por causa das mudanças no corpo também é um desafio para quem tem essa doença incurável”.

Concordo plenamente que estas propostas são humanitárias e buscam o reconhecimento das neurofibromatoses por parte da sociedade e das autoridades.

No entanto, talvez seja interessante esclarecer a questão da capacidade ou não para o trabalho.

Existem pessoas com neurofibromatose que são capazes e outras que são incapazes para o trabalho. O simples fato de nascer com a doença não significa que haverá impedimento de sua capacidade funcional, mas serão certas eventuais complicações, que podem ou não ocorrer ao longo da vida, é que levarão ou não uma determinada pessoa às necessidades especiais.

Assim, temos que ver as limitações e potencialidades de cada caso, para não tornarmos incapaz uma pessoa produtiva ou não reconhecermos as necessidades especiais de alguém limitado pela doença. Não podemos tratar pessoas desiguais da mesma forma, assim como não podemos tratar pessoas semelhantes de forma desigual.

Parabéns Élcio e demais companheiros por mais este passo dado em mais um Estado brasileiro e contem com nosso apoio do Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.