A NF Midwest lançou um folheto (em inglês) para profissionais da saúde. Seu conteúdo é bastante explicativo para facilitar o diagnóstico e acompanhamento das pessoas com NF1. Ver aqui: http://www.nfmidwest.org/wp-content/uploads/2012/10/Information-for-Medical-Professionals-2017.pdf
Muitas famílias que acessam este blog ainda permanecem com algumas dúvidas sobre as manchas café com leite e outras manchas cutâneas. O e-mail abaixo, enviado por S. de local desconhecido, é um exemplo desta situação e por isso vou tentar responder uma a uma as questões que ela nos trouxe e me autorizou a divulgar neste blog. Leia mais
“Tenho um filho de 6 anos com 4 manchas e outro de 5 meses com 2 manchas desde o nascimento, ambos sem qualquer outro sinal de NF1. Eu sou branca, italiana, mas meu marido tem a pele escura, pois é de origem indiana. Dois médicos aqui em Ruanda e na Itália, disseram que não se trata de NF1 e que a diferença na cor de nossa pele é a causa destas manchas em nossos filhos. Isto é verdade? ” Mensagem em inglês de LF, de Ruanda, África.
Cara L, obrigado pela sua pergunta.
Esta informação, de que a diferença na cor da pele dos pais poderia causar manchas café com leite nos filhos, circula entre pessoas de várias partes do mundo, pois já a ouvi de médicos no Brasil, nos Estados Unidos, na Inglaterra[1] e agora você me fala dos médicos na África e na Itália.
Primeiramente, preciso deixar bem claro que as manchas café com leite típicas da neurofibromatose NÃO SÃO CAUSADAS pela possível diferença de cor da pele entre os pais, inclusive este esclarecimento já consta de nossa cartilha “As manchinhas da Mariana” (ver AQUI).
No entanto, esta ideia, de que o casamento entre pessoas com diferenças na cor da pele possa causar problemas de saúde, precisa ser melhor compreendida.
Este conceito, que considero equivocado parece-me pertencer às ideias de “pureza racial”, de que existiriam “raças” humanas e que algumas seriam melhores e outras piores e que o casamento (ou a reprodução) entre pessoas de cor de pele diferente levaria a uma “degeneração” da espécie humana. Ver o excelente filme “Loving”, que mostra como a luta de um casal nesta situação levou a mudanças nas leis racistas norte-americanas (ver o trailer AQUI).
Infelizmente, estas ideias de fundo racista continuam a ser defendidas por muitas pessoas, apesar de todas as evidências científicas de que não existem raças humanas no sentido biológico. O que existem são diferenças no campo das ideias, dos costumes, da língua, da música, ou seja, diferentes culturas entre populações que se originaram em regiões climáticas distintas (sobre isto, veja a excelente palestra da socióloga Dorothy Roberts AQUI).
Atualmente (2021), penso que não existem raças biológicas, mas existe racismo, ou seja, os preconceitos contra pardos e pretos (negros) causa profunda desigualdade e injustiça social. Portanto, o problema social é mais importante do que o conceito biológico. O racismo discrimina, fere e mata. Ver aqui um texto sobre quando nos tornamos racistas.
A pele ficou diferente entre populações geográficas distantes entre si porque a maior ou menor exposição destas antigas populações à luz do sol fez com que a espécie humana (sem raças) se tornasse mais ou menos pigmentada para proteger sua saúde. Assim, em regiões de muita radiação ultravioleta, a pele mais escura protege uma vitamina importante no desenvolvimento neurológico, o ácido fólico; ao contrário, em regiões de pouca radiação ultravioleta, a pele mais clara permite a síntese de outra vitamina fundamental no desenvolvimento ósseo, a vitamina D.
Desta forma, as pessoas com pele mais pigmentada tiveram filhos mais saudáveis nos ambientes com muita radiação solar, enquanto as pessoas com pele mais clara tiveram filhos mais saudáveis em ambientes com pouca radiação solar. Ao longo de milhares de anos foram sendo selecionadas populações com diferentes cores de pele para cada uma das regiões climáticas do planeta.
Isto nada tem a ver com calor, nem mesmo com o câncer mais perigoso de pele, o melanoma, que não depende de exposição ao Sol. Também nada a ver com inteligência, caráter ou comportamento. São peles diferentes apenas pelos motivos evolutivos acima descritos. No entanto, a cor da pele tem servido para explicações racistas de afirmam que existem pessoas superiores e pessoas inferiores, explicações estas que são usadas para justificar a escravidão e a exploração das classes econômicas dominantes sobre o restante da população.
Assim, mais luz solar, pele negra; menor luz solar, pele branca. E se o casamento (ou a reprodução) acontecer entre pessoas de pigmentação diferente de pele, então múltiplas e maravilhosas variações na cor da pele surgem e aumentam a diversidade humana, que é a fonte principal de nossa riqueza, inclusive para nossa sobrevivência como espécie (ver o excelente livro de Pascal Picq AQUI ).
Ou seja, no casamento entre pessoas de diferentes cores de pele não há qualquer prejuízo à saúde dos filhos. Ao contrário, haverá maior diversidade biológica, fonte da resistência aos desafios do meio ambiente, ou seja, mais saúde.
Mas a sua pergunta ainda existe: nestes casamentos podem aparecer pequenas manchas atípicas?
Não encontrei qualquer estudo científico que tenha comprovado ou afastado esta ideia. No entanto, atendemos em nosso Centro de Referência uma população formada por cerca de um terço de genes de origem africana, um terço de origem indígena e um terço de origem europeia. Ou seja, somos uma população mestiça, onde há maior chance de casamento entre pequenas variações de cor da pele do que entre os extremos da pigmentação.
Portanto, para responder sua pergunta, teríamos que realizar um estudo científico adotando alguma das classificações de cor da pele e sair investigando todas as pessoas que se casam com outras de cor diferente para saber se em seus filhos aparecem ou não mais manchas cutâneas do que no restante da população. Vamos supor que o resultado mostrasse que sim, que haveria mais manchas ocasionais, qual seria a utilidade deste enorme esforço para a saúde das pessoas?
Não vejo utilidade médica ou clínica nesta divisão das pessoas pela cor da pele, exceto para algumas poucas doenças (como anemia falciforme, por exemplo). Ao contrário, penso que se dermos importância exagerada à cor da pele, além de seus efeitos biológicos de proteção do ácido fólico e da vitamina D, podemos aumentar os preconceitos, o racismo e a cruel divisão social que já existe entre os seres humanos.
[1] Ferner, Huson & Evans: Neurofibromatosis in Clinical Practice, Springer, London, 2011 ver AQUI
CASO VOCÊ ESTEJA DIANTE DE UMA PESSOA COM NF1 E SINTOMAS AGUDOS SUGESTIVOS DE ISQUEMIA CEREBRAL (VER ABAIXO MAI S DETALHES) VEJA O TRATAMENTO IMEDIATO QUE DEVE SER PROVIDENCIADO:
- oxigenação
- rápida instituição de medidas para aumentar o fluxo sanguíneo cerebral podem reduzir a chance de uma isquemia transitória progredir para infarto cerebral:
- hidratação intravenosa com fluidos isotônicos (geralmente em uma dose diária de 1,25 a 1,50 vezes a taxa de manutenção normal),
- evitar hipotensão
- hiperventilação deve ser evitada.
- níveis séricos de eletrólitos e glicose devem ser normalizados.
- atividade convulsiva, se presente, deve ser tratada com agentes farmacológicos apropriados.
- os exames de imagem devem ser realizados em caráter de emergência para verificar se ocorreu uma hemorragia. Embora os pacientes sejam frequentemente avaliados inicialmente com o uso de tomografia, que detectará prontamente hemorragia, a ressonância com imagens ponderadas em difusão confirmará a presença de um AVC completo.
- Na ausência de hemorragia, agentes antiplaquetários podem ser usados, para diminuir a probabilidade de formação de microtrombos em locais de estenose arterial. A aspirina é usada em muitas instituições (na dose diária de 325 mg para adultos e 81 mg [ou menos] para crianças pré-adolescentes), e o tratamento é instituído mesmo quando a revascularização cirúrgica é planejada.
Conheça melhor a displasia vascular cerebral
Os pesquisadores reviram 266 crianças com NF1 que haviam realizado ressonância magnética e 17 delas apresentavam doença vascular cerebral (6%). Para compreender melhor estes casos, eles realizaram outras análises.
Dentre todas as crianças, apenas 35 delas com NF1 realizaram a angiorressonância magnética (ARM), que é uma ressonância especial para examinarmos os vasos cerebrais. Por meio da ARM eles descobriram que a doença das artérias cerebrais era mais comum naquelas crianças com NF1 que também tinham gliomas ópticos (76%), especialmente os gliomas ópticos mais extensos (que ultrapassam o quiasma óptico).
E quais foram os problemas clínicos apresentados pelas crianças com NF1 e doença arterial cerebral? A tabela abaixo mostra os sinais e sintomas neurológicos que cerca da metade das 17 crianças com NF1 e doença vascular cerebral apresentaram e que provavelmente estão relacionados com a doença vascular.
Convulsões 4
Paralisias e perda de força 7
Ataques isquêmicos transitórios 1
Reflexos aumentados 2
Outros sintomas menos específicos 7
Em outras palavras, cerca da metade delas desenvolveu algum tipo de problema neurológico importante no exame clínico e estes sintomas e sinais podem ser sinais úteis para suspeitarmos da presença de problema vascular cerebral numa criança com NF1, especialmente se ela também apresentar glioma óptico. No entanto, a outra metade das crianças com NF1 e doença vascular cerebral não apresentava qualquer sintoma específico e devemos ficar atentos a esta possibilidade.
E quais foram os problemas vasculares encontrados na angiorressonância? A tabela abaixo mostra as principais alterações vasculares encontradas nas 17 crianças examinadas.
Estenose das artérias cerebrais (Doença de Moyamoya) 16
Deformidades das artérias 8
Infarto cerebral 4
“Sinal da hera” na ressonância comum 10
Vamos entender um pouco estes termos técnicos, para podermos compreender o seu significado clínico e as alternativas de tratamentos.
A Doença de Moyamoya é o estreitamento das artérias cerebrais na base do cérebro (ver figura acima) e pode acontecer em um ou ambos os lados do cérebro (ver AQUI). O estreitamento da artéria pode facilitar o seu entupimento completo em algum momento, fazendo com que falte sangue na região do cérebro irrigada por aquela artéria. Se faltar o sangue (que leva oxigênio e açúcar), os neurônios e o tecido cerebral naquela área podem morrer, e a isto chamamos de infarto cerebral ou derrame cerebral. A consequência é a perda da função neurológica correspondente àquela área do cérebro que foi danificada (paralisia dos movimentos de um dos lados do corpo, por exemplo).
As deformidades das artérias são vasos tortos, dilatados, ausentes, menores ou dilatados, e todas estas situações podem facilitar o seu entupimento ou rompimento, com as consequências que vimos acima.
O “sinal da hera” é um sinal que pode ser visto na ressonância comum, e que está relacionado com a Doença de Moyamoya (ver AQUI ) e por isso ele deve ser procurado em todas as ressonâncias de crianças com NF1. O sinal se parece com a planta hera subindo pela superfície de uma pedra (ver figura ao lado as listas brancas penetrando o encéfalo).
Voltando ao estudo canadense, eles observaram que, ao longo de 7 anos de acompanhamento das 17 crianças com NF1 e doença vascular cerebral, 6 delas pioraram tanto seu estado clínico quanto sua angiorressonância, e por isso elas precisaram ser tratadas com cirurgia de revascularização.
Outro tratamento proposto para a prevenção do entupimento das artérias cerebrais nas crianças com NF1 e doença arterial cerebral foi o uso de ASPIRINA regularmente para impedir a formação de coágulos nas estenoses e assim evitar os infartos cerebrais. Apesar de os autores do estudo terem dado aspirina para várias das crianças com NF1 e doença vascular cerebral, eles afirmaram que ainda não podemos saber com segurança se a aspirina seria capaz de evitar de fato infartos futuros. Temos que lembrar que no Brasil, onde temos regiões com endemia de dengue, o uso de aspirina pode ser ainda mais arriscado.
O estudo canadense também sugere que a ressonância magnética deva ser feita em TODAS as crianças com NF1, o que contraria o consenso sobre o manejo clínico de pessoas com NF1 (ver AQUI e AQUI), mas concorda com as recomendações da American Heart Association na prevenção do acidente vascular cerebral (ver AQUI ).
Os canadenses avaliaram que além dos custos financeiros habituais da ressonância comum para o sistema nacional de saúde, a angiorressonância acrescentaria também 12% de tempo a mais de sedação para as crianças. No entanto, eles comentam que uma única criança com um acidente vascular cerebral corresponderia a cerca de 40 mil dólares o seu tratamento (cerca de 120 mil reais).
Eles concluem que toda criança com NF1 que for realizar um estudo de imagem (de preferência a ressonância magnética) deveria realizar a angiorressonância, especialmente se houver suspeita de glioma óptico e ou doença vascular cerebral. Caso não seja possível a angiorressonância, devemos pedir a ressonância magnética com contraste, com recomendação de se procurar sinais sugestivos de doença vascular e o Sinal da Hera, um detalhe técnico especializado percebido pelos bons radiologistas.
Nos casos de confirmação da doença vascular, eles recomendam o uso de aspirina para a prevenção de coágulos, mantendo sempre a perspectiva de que a cirurgia de revascularização poderá ser necessária.
Como estamos vendo, a doença vascular cerebral em crianças com NF1 é uma complicação importante, potencialmente grave e provavelmente tem sido pouco diagnosticada em nosso meio. E nós precisamos de mais cirurgiões vasculares familiarizados com esta complicação.
Atualização 2024 – Um estudo publicado em 2024 (ver aqui a referência completa em inglês) sugere que a cirurgia de revascularização e o uso de aspirina são recomendados, mas ainda precisamos de mais pesquisas para indicar o momento exato da intervenção cirúrgica.
Outro estudo, também publicado em 2024 (ver aqui) indica que a cirurgia de revascularização indireta (usando a artéria temporal superficial) diminui o risco de infarto cerebral, mas que as pessoas com NF1 apresentam menor risco desta complicação. É importante notar que a maioria das pessoas estudadas estava em uso de aspirina como preventivo. Apesar de considerarem a displasia vascular mais benigna nas pessoas com NF1, , a equipe optou por realizar a cirurgia quando havia o sinal da hera na ressonância magnética.
Um exemplo recente em nossa experiência
Atendemos em nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses a menina JKC, de 8 meses na primeira consulta, com diagnóstico de NF1, uma mutação nova na família, que apresentava crises convulsivas acompanhada de alterações coerentes no eletroencefalograma e imagens de pouco desenvolvimento cerebral nas região frontal e parietal direitas. Nos meses seguintes evoluiu com grande dificuldade no controle das crises convulsivas e com crises de paralisia transitória dos membros à esquerda. Foi realizada a angiorressonância (ver imagem abaixo), que comprovou graves estreitamentos graves de várias artérias cerebrais.
As setas brancas indicam as obstruções, subdesenvolvimento e redução do calibre de diversas artérias no hemisfério cerebral direito.
Os neurocirurgiões consultados recomendaram o uso de aspirina e a cirurgia de revascularização por causa da progressão das crises de paralisia motora, mas todos reconhecem o alto risco do tratamento. Estamos aqui torcendo para que tudo corra bem com nossa querida JKC.
Depois deste post descobri mais um artigo científico que concorda em linhas gerais com o que foi exposto acima:
Moyamoya syndrome in children with neurofibromatosis type 1: Italian–French experience
Síndrome de moyamoya em crianças com neurofibromatose do tipo 1: experiência franco-italiana
Moyamoya syndrome (MMS) is the most common cerebral vasculopathy among children with neurofibromatosis type 1 (NF1). In this study, we clinically, radiologically, and genetically examined a cohort that was not previously described, comprising European children with NF1 and MMS. The NF1 genotyping had been registered. This study included 18 children. The mean age was 2.93 ± 3.03 years at the NF1 diagnosis and 7.43 ± 4.27 years at the MMS diagnosis. In seven patients, MMS was diagnosed before or at the same time as NF1. Neuroimaging was performed in 10 patients due to clinical symptoms, including headache (n = 6), cerebral infarction (n = 2), and complex partial seizures (n = 2). The remaining eight children (47%) had MMS diagnosed incidentally. Sixteen children were characterized molecularly. The features of MMS were similar between patients with and without NF1. Additionally, the NF1 phenotype and genotype were similar between children with and without MMS. Interestingly, three children experienced tumors with malignant histology or behavior. The presence of two first cousins in our cohort suggested that there may be potential genetic factors, not linked to NF1, with an additional role respect of NF1 might play a role in MMS pathogenesis. The incidental diagnosis of MMS, and the observation that, among children with NF1, those with MMS were clinically indistinguishable from those without MMS, suggested that it might be worthwhile to add an angiographic sequence to brain MRIs requested for children with NF1. A MMS diagnosis may assist in properly addressing an NF1 diagnosis in very young children who do not fulfill diagnostic criteria.
4/6/2017 – Uma leitora deste blog perguntou se podemos usar o doppler transcraniano (DoppT) diante da suspeita de uma doença vascular cerebral em pessoas com NF1. Estudei o assunto e encontrei dois estudos científicos que utilizaram o DoppT com esta finalidade. Um deles (ver AQUI) realizou DoppT em 40 crianças com NF1 e 4 delas apresentaram alterações sugestivas de problemas vasculares. Os médicos realizaram então uma ressonância magnéticas nestas quatro crianças e em 3 delas havia doença vascular cerebral. Portanto, sim, creio que o doppler transcraniano pode ser usado nas crianças com NF1 com suspeita de doença vascular cerebral.
Observação de 14/7/2017:
Algum tempo depois de publicada esta informação, recebi o seguinte e-mail de FGM:
“Estou lendo seu blog e fiquei com algumas dúvidas sobre minha filha MF, de 5 anos. Moro no interior de SP e já estive no CRNF do HC da UFMG por duas vezes e o senhor me tranquilizou muito a respeito da doença e ainda me passou que o grau dela é mínimo. Porém, no ano passado, quando fui à consulta levei a ressonância do crânio (pedida por outro médico) e o senhor me disse que o resultado é comum em pessoas com NF1. Minha filha nunca teve nada de anormal, mas lendo a última publicação fiquei na dúvida sobre doença vascular cerebral. Como posso verificar isso? ”
Cara F., obrigado pelo seu comentário. Não era minha intenção trazer preocupação adicional aos pais de crianças com NF1 com este comentário sobre doença vascular cerebral. No entanto, considerando a chance de 5% desta complicação aparecer em pessoas com NF1, é minha obrigação trazer este alerta.
Para afastarmos com segurança a presença de doença vascular cerebral em pessoas com NF1 temos que realizar uma angiorressonância, que tem seus custos financeiros além dos riscos da sedação que muitas vezes é necessária em algumas crianças. Por isso, não indicamos a angiorressonância para todas as pessoas indiscriminadamente, mas apenas para aquelas que possuem risco maior (presença de gliomas, por exemplo) ou sinais neurológicos (convulsões, paralisias focais, por exemplo). Sua filha não possui nenhum destes fatores de risco, portanto, não faz sentido submetê-la a uma angiorressonância sem qualquer sintoma a ser esclarecido.
Uma alternativa que estamos tentando implementar é a realização mais frequente de doppler transcraniano em crianças com NF1, como uma forma de triagem para possíveis casos de doença vascular cerebral. O doppler transcraniano permite a identificação de estenoses e alterações no fluxo sanguíneo de forma rápida, segura e não invasiva, e que não necessita de sedação. Para isto estamos implementando uma parceria com a Hemominas (ver aqui http://lormedico.blogspot.com.br/2017/07/tema-311-nova-parceria-com-hemominas.html ).
Espero que num futuro breve possamos contar com este exame para indica-lo com mais frequência nas crianças com NF1 como forma de prevenção da doença vascular cerebral.
Temos um motivo de esperança para começarmos o novo ano: foram publicados ontem no New England Journal of Medicine, uma das mais importantes revistas médicas do mundo, os resultados dos estudos pré-clínico (em camundongos) e de Fase 1 (com 24 crianças e adolescentes entre 3 a 18 anos) obtidos com um novo medicamento chamado SELUMETINIBE no tratamento de neurofibromas plexiformes (ver AQUI o artigo em inglês).
Sabemos que até hoje não dispomos de um tratamento eficiente para os neurofibromas plexiformes que atingem metade das pessoas com NF1 e geralmente são congênitos, ou seja, estão presentes desde o nascimento embora possam se tornar visíveis apenas depois dos primeiros meses ou anos de vida. Os plexiformes geralmente apresentam sua maior taxa de crescimento no começo da infância e depois podem permanecer estáveis.
Os plexiformes variam em tamanho e profundidade, podem ser pequenos ou grandes, alguns não causam sintomas, mas outros podem provocar deformidades, dor e problemas funcionais. Além disso, cerca de 1 em cada 5 deles, especialmente os mais volumosos e profundos, pode se transformar em tumor maligno. Portanto, os plexiformes constituem uma preocupação para as famílias que esperam ansiosamente por uma forma de tratamento além da cirurgia, a qual geralmente não apresenta resultados plenamente satisfatórios.
Por isso, há uma busca intensa entre os especialistas em NF por um tratamento medicamentoso para os plexiformes e foi isso que fez a equipe liderada pela Dra. Brigit Widemann, do Instituto de Pesquisa em Câncer Pediátrico de Bethesda nos Estados Unidos. A equipe iniciou em 2011 um estudo com o medicamento SELUMETINIBE produzido pelo laboratório farmacêutico Astra-Zeneca em camundongos e em crianças e adolescentes com plexiformes e apresentaram seus resultados ontem.
A equipe observou que depois do uso oral do SELUMETINIBE por cerca de um ano e meio, TODOS os plexiformes apresentaram alguma redução com o medicamento, que diminuíram entre 5% até 45% de volume na ressonância magnética, além de apresentarem menos dor, menos disfunção e deformidade. Estes resultados permaneceram estáveis cerca de um ano depois de concluída a fase experimental.
Segundo os pesquisadores, o medicamento foi bem tolerado pelas pessoas (alguns poucos casos de acne, sintomas intestinais, baixa de neutrófilos no hemograma e aumento da creatinofosfoquinase) e apenas uma redução transitória da função cardíaca de um dos voluntários.
Como acontece com toda pesquisa científica, tenho algumas dúvidas sobre o estudo. Primeiro, o tamanho (volume) dos plexiformes estudados variou de 29 ml (ou seja, pouco maior que uma colher de sopa) até 8744 ml (ou seja, um tumor do tamanho de uma criança de seis meses de idade). Será que a causa e o comportamento destes tumores são semelhantes o bastante para tirarmos conclusões parecidas sobre o efeito do medicamento?
Segundo, tenho receio de que a participação do laboratório farmacêutico Astra-Zeneca no fornecimento da droga, na análise dos resultados da dosagem sanguínea e na redação e submissão do artigo científico, possa ter influenciado de alguma forma a seleção dos voluntários, a exclusão de outros e a interpretação dos resultados. Sabe-se que os interesses financeiros da indústria farmacêutica fazem com que ela se comporte de forma criminosa muitas vezes.
No entanto, na minha opinião, este é o resultado mais promissor de todos os estudos que conheço que testaram medicamentos no tratamento de neurofibromas plexiformes, o que me traz esperança de que num futuro breve as Fases 2 e 3 da pesquisa com o SELUMETINIBE confirmem estes resultados iniciais e o medicamento possa se constituir numa recomendação de consenso internacional.
Até lá, bom ano novo para todas as famílias que juntas enfrentam as NF.
PS: Agradeço o desenho da Alice, minha neta, que ilustra este post.
“Tenho NF1, estou com 26 anos e vou me casar em breve. Existe um meio de garantir que meus filhos biológicos não venham com a doença? “ JR, de Natal, RGN.
Primeiramente, vamos lembrar que a chance de seu filho (ou filha) herdar a sua mutação é de 50% em cada gestação. Ou seja, há uma chance em duas do bebê nascer sem NF1, ou como tirar coroa na moeda jogada para o alto.
Para garantir que uma mutação que causa a NF1 não seja passada adiante numa gestação existem técnicas de reprodução humana assistida, ou seja, métodos desenvolvidos por equipes especializadas. Estes métodos permitem a seleção daqueles embriões que não contém a mutação para NF1 e a sua inseminação artificial. Como isto é feito?
De forma resumida, é o seguinte. O casal interessado procura os centros de reprodução assistida, onde a mulher receberá hormônios que irão estimular o amadurecimento de vários de seus óvulos de uma só vez. No momento certo estes óvulos são recolhidos e colocados em contado com os espermatozoides do parceiro para que haja a fecundação. Geralmente, mais de um óvulo é fecundado e alguns embriões são obtidos, mas ainda não sabemos quais deles têm o diagnóstico de NF1.
Três dias depois de formados os embriões, uma biópsia muito delicada é feita retirando-se apenas uma célula de cada embrião e esta célula é levada para análise do DNA. Aqueles embriões que não apresentarem a mutação para NF1 são transferidos para o útero da mulher, onde darão continuidade à gestação. Assim, temos a garantia de que os bebês concebidos por esta técnica não apresentarão a NF1.
Desde 2002 este método vem sendo aplicado em pessoas com NF1 e NF2, mas nem sempre funciona bem e ainda são relativamente poucos casos realizados na experiência mundial.
Sua pergunta seguinte provavelmente é querer saber onde poderá realizar este procedimento, chamado de diagnóstico pré-implantacional (DPI).
No momento, no Brasil, o DPI é permitido por lei, embora haja pessoas que não o aprovam por questões éticas, com o receio de que ele venha a ser usado para excluir embriões femininos, por exemplo. Existem clínicas privadas brasileiras que realizam estes procedimentos em parceria com clínicas internacionais, as quais ficam responsáveis pela análise da mutação NF1 (ou NF2) no DNA a partir daquela única célula retirada do embrião. Não conheço nenhum serviço público no Brasil que esteja realizando o DPI para pessoas com neurofibromatoses.
Em nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais temos adotado a busca por soluções públicas para os problemas e questões apresentados pelas pessoas com neurofibromatoses, ou seja, defendemos o fortalecimento do Sistema Único de Saúde.
Por isso, temos elaborado propostas na Associação Mineira de Apoio às pessoas com Neurofibromatoses (AMANF) direcionadas ao SUS, no sentido de que este serviço seja oferecido às pessoas com NF. Estamos nesta luta neste momento (2021).
Atualizado em 18/10/2021
“Ontem li uma reportagem que me deixou intrigado, falando da cura das doenças raras em um método chamado de CRISPR. … como curar a doença genética? Mudar todas as células da pessoa? Li alguns artigos. Bem, estou certo em pensar que quando se falam desta cura é a modificação genética, ainda como óvulo? Ou seja, não é possível fazer isso em adultos? Veja o link para a reportagem AQUI “. RLB de Coimbra, Portugal.
Caro R, sua pergunta é muito interessante e foi feita também por outras pessoas que leram este blog. Para responder com segurança sobre esta questão, convidei a doutoranda Cinthia Vila Nova Santana, que submeteu suas respostas ao seu orientador Renan Pedra de Souza, do Programa de Pós-Graduação em Genética do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Veja abaixo o que eles responderam.
Além disso, vejam a reportagem que foi publicada em 2018 Clicar Aqui
Veja também novas informações experimentais de 2021 CLIQUE AQUI
Cinthia e Renan também enviaram referências de artigos e livros sobre cada etapa do seu pensamento e elas estão disponíveis comigo para quem se interessar, basta solicitar por e-mail.
Cinthia – O desenvolvimento da técnica de DNA recombinante em 1970 marcou o início de uma era importante na Biologia. Pela primeira vez, pesquisadores foram capazes de manipular moléculas de DNA (ativando e desativando, ou seja, editando os genes – Figura ilustrativa acima), o que tornou possível o estudo de genes de interesse medicinal e biotecnológico. Desde então, muitos avanços aprimoraram as técnicas de biologia molecular, possibilitando o estudo dos genes não apenas isolados, mas também no organismo como um todo.
Muitas das ferramentas para edição do genoma são baseadas no princípio da complementariedade de bases: a base Adenina é complementar à Timina e a Citosina é complementar à Guanina. Isto possibilitou o desenvolvimento de técnicas para multiplicação de fragmentos de DNA (chamada de reação da polimerase em cadeia, PCR), permitiu o silenciamento de genes (knockout) ou diminuição da expressão gênica (knockin) e também inserção de mutações em um gene, por exemplo.
Apesar das tecnologias disponíveis, nem sempre se consegue a recombinação desejada. Além disso, o genoma de eucariotos (como nós, seres humanos) contém milhões de bases de DNA, tornando difícil a sua manipulação.
A fim de superar estes desafios, novas técnicas para edição do DNA são constantemente desenvolvidas e, recentemente, o sistema CRISPR-Cas ganhou merecida atenção. Apesar de descrito em 1987, este sistema foi somente empregado como ferramenta biotecnológica em 2012 e em 2013 já foi eleito um dos destaques do ano pela revista científica Nature.
LOR – Mas o que vem a ser esta nova técnica CRISPR-Cas?
Cinthia – CRISPR é uma sigla em inglês que significa: Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas.
Aparentemente é algo complicado, mas se analisarmos com atenção não é tão difícil quanto parece. Como o próprio nome indica, CRISPR trata de sequências de bases palindrômicas, assim como ARARA, que é uma palavra palindrômica, ou seja, pode ser lida de trás para frente sem mudar o sentido. Elas são curtas e agrupadas e se repetem com espaços regulares entre elas, por exemplo, a cada 20 nucleotídeos há uma repetição (Figura 2).
Figura 2: Representação do sistema CRISPR-Cas. Em azul mais à esquerda estão os genes associados a CRISPR (“cas genes”) e mais à direita, os losangos pretos representam as repetições (“repeat”), enquanto que os quadrados coloridos são os espaçadores regulares (“spacer”). A este conjunto dá-se o nome de locus da CRISPR (Figura adaptada de http://rna.berkeley.edu/crispr.html).
O sistema CRISPR-Cas foi primeiramente descrito em bactérias como um mecanismo de defesa contra vírus.
Esta defesa acontece da seguinte forma: durante uma infecção virótica, o DNA do vírus é liberado dentro da célula bacteriana e é integrado ao sistema CRISPR como um novo espaçador (como se fosse um dos quadrados coloridos da Figura 2) (Figura 3, estágio 1). A sequência CRISPR é então transcrita (isto é, a informação é passada de DNA para RNA) e processada para gerar os CRISPR RNAs (crRNAs), cada um codificando a informação de uma sequência espaçadora específica (Figura 3, estágio 2). Cada crRNA associa-se com uma proteína Cas que usa o crRNA como molde para silenciamento de elementos genéticos externos (Figura 3, estágio 3).
Em resumo, com o uso do CRISPR, a bactéria consegue impedir que o vírus seja bem-sucedido em sua infecção através de modificações do material genético do vírus.
Se quiser entender um pouco melhor sobre CRISPR-Cas9, veja o vídeo https://www.youtube.com/watch?v=2pp17E4E-O8.
LOR – Mas como um mecanismo de defesa bacteriano contra vírus pode se tornar uma ferramenta biotecnológica em seres humanos?
Cinthia – A resposta vem em duas partes. Primeiro, o processo de defesa acontece por alteração genética que é controlável, ou seja, teoricamente é possível decidir qual a alteração que será realizada no material genético.
Segundo, embora outras técnicas de mutação regulada (ou dirigida) sejam conhecidas, o sistema CRISPR-Cas9 é consideravelmente mais simples em relação às técnicas anteriores.
LOR – Então, a técnica CRISPR-Cas9 pode ser usada em seres humanos?
Cinthia – Esta hipótese está em teste. Resultados experimentais ainda preliminares indicam que grupos de poucas células podem responder a esta metodologia de maneira satisfatória, mas ainda não se sabe qual é o efeito do CRISPR em um ser humano. Várias das metodologias anteriores capazes de gerar alterações no código genético de maneira regulada mostraram-se funcionais em grupos de poucas células, mas sem efeitos no ser humano.
Até abril de 2016 já foram publicados cerca de 1.200 artigos científicos citando o sistema CRISPR-Cas9, segundo o site de pesquisas biomédicas PubMed (disponível no endereço eletrônico http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed).
Diversos estudos já utilizaram esta técnica para edição do DNA em linhagens celulares, plantas (trigo, arroz, tabaco), fungos, Drosophila, peixes (zebrafish), camundongos, sapos e até mesmo macacos, nas mais diversas aplicações: agricultura (aumentar resistência a pragas nas lavouras de trigo), reprodução de modelos de câncer em camundongos para estudos de vias biológicas e de efeitos de medicamentos, identificação de genes essenciais para viabilidade celular especialmente em câncer, alteração de mutações responsáveis por doenças genéticas em modelos experimentais.
No entanto, estudos em seres humanos são praticamente inexistentes e o principal foco dos estudos neste momento é entender melhor como certas características são determinadas.
LOR – E em relação às neurofibromatoses? Existe algum trabalho publicado?
Cinthia – Em pesquisa feita no site do PubMed com os termos “CRISPR neurofibromatosis” (em inglês), apenas dois estudos são exibidos: Shalem e colaboradores (2014) e Beauchamp e colaboradores (2015). Os dois trabalhos utilizam a técnica CRISPR para regular os genes NF1 e NF2, somente em modelos experimentais, novamente com o objetivo de compreender melhor o desenvolvimento da neurofibromatose.
LOR – A técnica CRISPR-Cas9 poderia ser usada para alterar as mutações nos genes das neurofibromatoses? Caso afirmativo, qual seria o tempo de expectativa?
Cinthia – O primeiro problema desta questão é conceitual. O que representaria alterar o código genético de um paciente com neurofibromatose, assumindo que isto fosse possível? Seria possível recuperar a produção de neurofibromina?
No seu blog, você já abordou a dificuldade em se fazer um medicamento para reposição da neurofibromina (ver aqui). As mesmas dificuldades são pertinentes neste caso do CRISPR. Como você explicou, a neurofibromina é uma proteína necessária especialmente durante o desenvolvimento do bebê dentro do útero. Logo, não se espera que a alteração do código genético em pacientes fosse capaz de reverter uma série de sintomas associados à inexistência de neurofibromina ainda em estágios iniciais de desenvolvimento.
Bom, mas e se considerarmos então uma intervenção do código genético ainda durante a vida intrauterina? Essa questão nos leva a outra linha de raciocínio. Em cerca de metade dos casos de NF1 a mutação é nova, o que significa dizer que nenhum dos pais possuía em seu código genético aquela alteração e muito provavelmente não ficarão sabendo de sua existência antes do nascimento. Para os casais em que se conhece um histórico familiar da doença uma possibilidade seria o aconselhamento genético para que todas as opções sejam consideradas.
LOR – Mas então, neste momento, a técnica CRISPR-Cas9 não poderia ter utilidade para pacientes com neurofibromatoses?
Cinthia – Esta técnica é realmente uma revolução no campo da ciência e já é referida como uma possível “cirurgia do genoma”, mas ainda há muito que se descobrir quanto ao seu funcionamento.
Primeiro há de se entender como seria o resultado desta técnica em um indivíduo sem neurofibromatose para depois estudá-la como um tratamento. Grupos de pesquisadores também estão atrás de respostas para várias das perguntas feitas neste texto.
A ciência avança rapidamente, as técnicas estão aprimorando a cada dia e nós, pesquisadores das neurofibromatoses, investigaremos todos as técnicas que tenham um potencial, mesmo que mínimo, de melhorar a vida dos pacientes com neurofibromatoses.