Este espaço é destinado a opinião de pessoas com experiência em diversos assuntos relacionados com as neurofibromatoses.

O trabalho com doenças raras é desafiador, seja como médica ou pesquisadora, porque lidamos com doenças nem sempre tão conhecidas pela população e também na própria área da saúde.

Apesar de ter sido minha primeira vez num encontro sobre neurofibromatose, pude perceber como a Joint Global Neurofibromatosis Conference 2018 foi um evento histórico. Contando com público recorde para a comunidade da NF, com quase 900 participantes, superando até mesmo as expectativas mais otimistas da própria organização, voltei para o Brasil muito animada.

Sempre acreditei que na interação entre pesquisadores (da área básica a clínica), profissionais das diversas áreas envolvidos com o diagnóstico e tratamento (genética, neurologia, dermatologia, cirurgia, nutrição, psicologia, etc), famílias e pacientes, com o intuito de prover o melhor para estes.

Qual não foi minha alegria ao encontrar logo nas primeiras sessões, uma mesa com experts em pesquisa e tratamento e também uma mãe e uma pessoa com NF1 discutindo acerca do tema.

A presença forte de associações de pacientes mostrou como o engajamento pode trazer diferença em eventos dessa magnitude, estimulando o avanço da ciência e também acolhendo famílias.

Com uma programação concorrida, os temas abordados trouxeram temas diversos, entre os quais destaco:

  • O aperfeiçoamento sobre a fisiopatologia da doença (como acontece) , em especial sobre os neurofibromas plexiformes. Modelos animais e cascatas metabólicas cada vez mais bem compreendidos, com destaque para os esforços para entender o processo de malignização dos tumores permitem ampliar os horizontes terapêuticos;
  • Pesquisas para entender a relação genótipo-fenótipo e influência epigenética. Com o avanço no campo do diagnóstico molecular, a preocupação em entender o significado dos achados de mutação é fundamental para interpretação correta dos dados e conduta subsequente;
  • As excelentes participações das brasileiras Juliana Sousa, que tratou sobre força muscular, um tema que está começando a se destacar no cenário mundial e que teve um trabalho pioneiro aqui no Brasil, avaliando condições físicas dos pacientes com NF1; e também Karin Cunha, que tratou sobre alterações orais;
  • Sessões sobre NF2 e Schwannomatose, onde também seguem os esforços para melhores técnicas cirúrgicas, modelos animais para entender estas condições e busca por medicações;
  • Os aspectos cognitivos, que foram abordados de forma especial, trazendo a luz uma discussão que tem ganhado espaço, ao tratar da dificuldade escolar e autismo, por exemplo, e as terapias multidisciplinares para estes casos;
  • Quantificação da condição psicossocial e qualidade de vida e estratégias para atenuar o impacto;
  • Novas drogas, com resultado promissor, mas ainda com muito a ser estudado sobre tolerância e efetividade;
  • Assuntos importantes que muitas vezes não são abordados na prática clínica como dor e prurido;
  • Abordagem do câncer de mama em pacientes com NF1 e também o papel do gene NF1 nos demais canceres, o que pode nos permitir compreender melhor sobre este gene
  • Por fim, a revisão/atualização dos critérios diagnósticos de NF1  de 1988, mas também NF2 e Schwannomatose. Uma das alterações a ser incorporada é o nódulo coroideano identificado por OCT, objeto de estudo do meu mestrado, o que torna esta participação ainda mais especial para mim.

Além dos novos conhecimentos adquiridos e compartilhados, trouxe na mala novas ideias e amigos, além do vigor e inspiração renovados. Ver o Brasil com um trabalho de qualidade, que está em consonância com o cenário mundial, e pesquisadores com projetos inovadores me deixou muito orgulhosa e otimista.

   

Momentos do Congresso em Paris – Esquerda: Dr. Vincent Riccardi e sua esposa Susan e Dr. Lor e sua esposa Thalma. Direita: Dr. Vincent Riccardi conversando com Dr. Bruno Cota sobre sua pesquisa sobre a música como tratamento na NF1.

Impressão geral

Essa foi a minha primeira participação em um congresso internacional de neurofibromatoses, portanto algumas impressões podem estar superestimadas por algum encantamento inicial, enquanto outras possam estar subestimadas por eu não ter destinado a merecida atenção a temas possivelmente relevantes, dentre tantos trabalhos interessantes que foram apresentados.

Primeiramente, o congresso motivou-me desde a sua abertura, quando ao longo de toda a manhã foi realizado um ciclo de palestras, com pesquisadores de diferentes áreas, sobre os avanços científicos sobre os aspectos genéticos e fisiopatológicos, avaliação e manejo dos neurofibromas cutâneos.

Além dos pesquisadores presentes, ressalto a importante participação de um paciente e de uma mãe de um paciente com NF1, que compuseram a mesa de debate que se seguiu às palestras.

Uma verdadeira nuvem de palavras composta por siglas, termos e jargões técnicos por parte dos cientistas, entremeadas com números e índices percentuais, foi enriquecida com a opinião daqueles a quem mais importa toda a discussão proposta: as pessoas e famílias com NF1.

Ao final dessa seção surgiram-me inúmeras reflexões: Estamos desenvolvendo aquilo que o paciente realmente deseja? Nossos anseios são coerentes com o anseio do paciente e de seus familiares? Aquilo que consideramos ter maior impacto sobre as suas vidas tem o mesmo impacto atribuído por eles? Creio que essas questões devem ser norteadoras no desenvolver da ciência.

 

Tratamentos para neurofibromas cutâneos

Embora não tenha sido apresentado nenhum estudo com algum medicamento comprovadamente eficaz no manejo dos neurofibromas cutâneos, muitos avanços têm sido obtidos com a melhor compreensão dos mecanismos biológicos que levam ao surgimento desses tumores benignos, bem como na avaliação da quantidade e crescimento dessas lesões, de modo que, respectivamente, drogas mais eficazes possam ser desenvolvidas, bem como parâmetros mais fidedignos para a análise dessa eficácia possam ser obtidos.

Quanto ao tratamento cirúrgico dos neurofibromas cutâneos, uma técnica que parece ganhar mais adeptos e que realmente sugere melhores resultados, especialmente na quantidade de lesões que podem ser tratadas em um único procedimento, é a eletrodissecção. No entanto, não devemos nos esquecer que a sua execução demanda um profissional bem habilitado, além da disponibilidade de bloco cirúrgico e necessidade de anestesia geral.

 

Diagnóstico das NF

Em relação ao diagnóstico das NF, muito se estuda quanto às mutações genéticas específicas e marcadores biológicos, mas nenhum ainda se mostrou com acurácia e viabilidade suficiente para determinar isoladamente o diagnóstico de certeza da NF1, NF2 e schwannomatose.

No entanto, a utilização da análise genética como auxílio ao diagnóstico é uma das propostas apresentadas na revisão dos critérios diagnósticos, ainda em construção. Um ponto, ao meu ver positivo, foi a cautela na discussão sobre a construção de um novo modelo de definição diagnóstica, na qual foi mantida a relevância dos critérios clínicos, bem como a viabilidade para a aplicação dos critérios diagnósticos, inclusive por aqueles não são especialistas em NF.

Neurofibromas plexiformes

Outro ponto chave foi referente aos avanços no desenvolvimento de drogas para o tratamento de tumores plexiformes inoperáveis. Alguns estudos foram apresentados, com resultados promissores com o uso de fármacos imunoterápicos, mas que ainda carecem de comprovação do efeito e tolerabilidade do medicamento em um número maior de pessoas, para que possam ser criteriosamente utilizados fora do âmbito da pesquisa.

Além da redução dos tumores plexiformes inoperáveis em parte considerável dos pacientes, foi observado em um desses estudos uma melhora em alguns parâmetros cognitivos e de qualidade de vida, mas que também carecem de observação por um tempo maior e em maior número de pessoas, além de uma metodologia direcionada para esse desfecho.

O valor dado ao parâmetro “qualidade de vida” como objetivo dos tratamentos propostos foi sem dúvida um dos pontos positivos do congresso, sendo inclusive proposto em um dos estudos a utilização de um questionário específico para mensurá-lo nas pessoas com NF1.

 

Problemas psicológicos e de aprendizado

Problemas de caráter psicológico também foram temas recorrentes, não somente em relação àqueles já conhecidos na doença, que compõe os problemas cognitivos, mas também relacionados aos transtornos do humor, como a depressão.

Quanto à parte cognitiva, também há um enorme contingente de pesquisadores no mundo inteiro dedicados tanto com à avaliação, diagnóstico e estratificação desses problemas, inclusive com a utilização de modelos animais, bem como com a investigação da correlação desses problemas com determinantes genéticos específicos.

No entanto, poucos estudos referentes ao tratamento dos problemas cognitivos foram apresentados, dentre os quais se incluem modelos de terapias cognitivas não farmacológicas, realizadas por neuropsicólogos ou por meio de programas computadorizados, que apresentaram alguns resultados animadores, mas que por outro lado carecem de metodologias mais robustas e replicação em outros estudos;  e as terapias farmacológicas, dentre as quais ainda não se observou grandes avanços, exceto com o uso do metilfenidato para os sintomas específicos da TDAH, em alguns grupos de pacientes com NF1. A lovastatina, como já descrito anteriormente em outro tema específico desse blog, ainda não demonstrou benefício significante para os problemas cognitivos na NF1.

Música e NF1

O único estudo apresentado envolvendo a música e a sua possível utilidade como recurso terapêutico para os problemas cognitivos e de socialização na NF1 foi o que apresentamos, de autoria dos pesquisadores do CRNF e de outros pesquisadores e estudantes de diversas áreas, como a musicoterapia, fonoaudiologia, psicologia, e, é claro, da música.

Esse estudo encontra-se em seus estágios iniciais, ainda como projeto piloto, do qual participam adolescentes de 12 a 18 anos com NF1.  O projeto consiste em aulas semanais de música, com enfoque no desenvolvimento da rítmica musical, que além de construir um modelo de treinamento musical específico para as pessoas com NF1, tem o objetivo de investigar se esse treinamento pode resultar em benefícios para alguns aspectos da cognição, para a socialização e qualidade de vida dos pacientes.

O trabalho despertou o interesse de pesquisadores da área da cognição de outros países, sendo que um deles já considerará como uma das ferramentas a ser utilizada no seu próximo estudo. Um notável pesquisador que demonstrou interesse especial pelo tema foi um dos nossos grandes mentores em pesquisas na NF, doutor Vincent Riccardi, com o qual tive a honra e o prazer de conversar pessoalmente, e ainda o privilégio de ouvir algumas de suas ideias motivadoras (ver foto, Dr. Riccardi conversando comigo sobre o projeto).

Tendência para alguns tipos de câncer

Outros temas do congresso também me despertaram muita atenção, seja por sua relevância clínica ou por seu caráter inovador, dentre os quais destaco, todos referentes à NF1: a incidência aumentada de câncer de mama; a proposta de um novo modelo animal para os estudos experimentais; o uso de técnicas modernas de neuroimagem nos estudos de avaliação cognitiva; os problemas na cavidade oral, descritos pela Dra. Karin Cunha; além, obviamente, dos excelentes trabalhos apresentados pelos pesquisadores do CRNF, alguns já descritos nesse blog.

Peço desculpas por não ter abordado o tema NF2 e Schwannomatose aqui, uma vez que a minha área de estudo até o momento abrange somente a NF1, e como foram muitos os trabalhos apresentados no congresso, na maioria das vezes simultâneos e em salas diferentes, precisei dirigir o meu foco de atenção ao meu campo de pesquisa atual.

Convite

Obrigado a todos que tiveram paciência de ler até aqui, e aproveito para convidar os adolescentes de 12 a 18 anos que têm NF1 para participarem das aulas de música, à partir de fevereiro de 2019, compondo um novo grupo do estudo que citei acima. O contato pode ser feito diretamente comigo, pelo email brucezar@hotmail.com.br, ou pelo telefone 31-99851-8284.

Bruno

 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

Relato sobre o Congresso feito pela Dra. Juliana Ferreira de Souza, que realizou palestra sobre a redução da força muscular nas pessoas com NF1.

 

Como médica e pesquisadora em Neurofibromatoses, estive presente a todas as Conferências anuais em Neurofibromatoses, organizadas pela Children’s Tumor Foundation, desde 2009 (em Portland – Oregon – EUA).  Posso dizer que a Conferência Global em Neurofibromatoses, que aconteceu entre os dias 2 e 6 de novembro de 2018, em Paris – França, foi um marco. Não apenas um marco pessoal, por ter sido a 10a Conferencia em Neurofibromatoses subsequente da qual participei mas, antes e mais importante,  pela sensação de que estamos progredindo.

Este progresso me pareceu mais palpável nesta Conferência (que reuniu em torno de 800 pesquisadores do mundo todo) do que em qualquer outro momento anterior. Ao meu ver, progredimos por várias razões:

  • Pela maior aproximação da pesquisa básica com a pesquisa clínica;
  • Pela discussão de temas de relevância para os pacientes e suas famílias (como o impacto estético dos neurofibromas cutâneos);
  • Pelo crescimento do interesse pelo tema que fui convidada a abordar (força muscular e aptidão física na Neurofibromatoses tipo 1 – NF1), que ganhou espaço, relevância e interessados entre médicos e pesquisadores;
  • Por estarmos mais próximos de uma possível opção terapêutica para alguns casos graves (como os plexiformes inoperáveis em indivíduos com NF1);
  • Pela ampla discussão que está ocorrendo para atualizar os critérios diagnósticos e a nomenclatura para as Neurofibromatoses.

Ver a equipe do Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da UFMG, da qual faço parte, inserida e partícipe deste processo, sendo reconhecida como referência na pesquisa e atenção aos indivíduos com Neurofibromatoses na América Latina, reforça nosso propósito de sermos capazes de prover atendimento e aconselhamento de qualidade e atualizado aos indivíduos com Neurofibromatoses e de seguir na tentativa de contribuir na produção de conhecimento científico que possa refletir em melhoria da qualidade de vida de indivíduos com a doença.