Temos atendido crianças com neurofibromatose do tipo 1 (NF1) que também nos chegam com o diagnóstico de Transtorno no Espectro do Autismo (TEA) em nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
As famílias querem saber se devem tratar suas crianças como TEA ou não.
Temos respondido que as pessoas com NF1 podem apresentar sintomas parecidos com os sintomas do TEA, mas que estes sintomas são causados pelo desenvolvimento inadequado do sistema nervoso.
Alguns problemas cognitivos acontecem porque a variante genética que ocorreu no DNA produz deficiência de uma proteína (chamada neurofibromina), a qual é fundamental para o desenvolvimento neurológico especialmente na vida intrauterina (ver revisão de 2022 sobre este tema clicando aqui – em inglês).
Nossa opinião tem sido que a maioria destas pessoas com NF1 tem sintomas parecidos com TEA, mas não possuem TEA.
Um estudo científico publicado em 2020 (ver abaixo), reforça nossa opinião, embora apresente limitações (ver abaixo).
O estudo sugere que:
- Não houve mais diagnóstico de TEA em pessoas com NF1 do que na população em geral (cerca de 2%).
(Notar que o diagnóstico de TEA foi relatado a partir dos registros médicos e a população comparada foi a dos Estados Unidos)
- Alguns sintomas de TEA estavam presentes em pessoas com NF1, mas não eram suficientes para o diagnóstico de TEA por meio de testes validados para a pesquisa de autismo.
(Ou seja, as crianças com NF1 pontuaram nestes testes um pouco mais do que as crianças sem NF1 e sem TEA)
- A presença do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em pessoas com NF1 pode explicar uma certa confusão entre os diagnósticos de NF1 e TEA
(Quando estes diagnósticos são feitos por meio de questionários respondidos por pais e professores, alguns sintomas do TDAH se assemelham a alguns sintomas de TEA e podem gerar falsos diagnósticos de TEA)
- Os comportamentos das crianças com NF1 mostraram uma socialização normal, apesar da menor capacidade de comunicação.
O estudo foi realizado em Portland (Oregon, Estados Unidos) e intitulado “Transtornos do Autismo e do Déficit de Atenção e Hiperatividade e sintomas em crianças com Neurofibromatose do Tipo 1” e publicado por Hadley Moroti e colaboradores, um grupo de especialistas em psicologia, psiquiatria e desenvolvimento infantil, na revista científica Developmental Medicine & Neurology (ver aqui o artigo completo – em inglês).
LIMITAÇÕES DO ESTUDO
A equipe de cientistas reconhece que algumas características do estudo limitam a capacidade de extrair conclusões definitivas sobre o assunto, uma vez que o mesmo foi feito com poucas pessoas com NF1 (apenas 45 pessoas examinadas diretamente) e sem acompanhamento ao longo do tempo.
Além disso, a equipe não possuía informações clínicas sobre as variantes genéticas e a gravidade da NF1 nas crianças avaliadas.
Finalmente, foram avaliadas apenas crianças na idade escolar, portanto, os resultados podem não se aplicar a adolescentes e adultos com NF1.
Apesar de suas limitações, o estudo traz outras informações importantes sobre este tema, as quais resumirei a seguir.
TEA É MAIS COMUM DO QUE NF1
A equipe de cientistas lembra que na população em geral a NF1 é considerada uma doença rara (1 em cada 3000 crianças). Por outro lado, quando o TEA é diagnosticado por especialistas (e não por pais ou professores), sua incidência é de cerca de 1 em cada 50 pessoas (1 a 2%), ou seja, o TEA é 60 vezes mais comum do que a NF1.
CAUSAS DA NF1 E DO TEA
A NF1 é uma doença de causa bem conhecida, provocada por variantes genéticas patogênicas no gene NF1, que alteram a produção de uma proteína (neurofibromina), a qual regula o crescimento dos tecidos, especialmente o sistema nervoso. A deficiência da neurofibromina produz diversos problemas no desenvolvimento neurológico.
O TEA parece ter causas genéticas (90% – com variantes localizadas em múltiplos genes) e ambientais (ver artigo interessante e bastante compreensível do Dr. Dráuzio Varela sobre as causas do TEA, clicando aqui). A explicação mais aceita é de que variantes genéticas patogênicas em genes responsáveis pela produção de algumas proteínas dos neurônios afetariam o aprendizado, a linguagem, a comunicação social e a memória.
Mas o gene da NF1 não parece estar entre os genes causadores do TEA.
SINTOMAS PARECIDOS
A NF1 pode causar problemas no desenvolvimento cognitivo, dificuldades de aprendizado, atraso motor, limitação das habilidades sociais, descontrole emocional, ansiedade e sintomas de desatenção e hiperatividade.
Estes mesmos problemas e sintomas também podem ocorrer em crianças diagnosticadas com TEA. Por isso, alguns estudos anteriores, realizados com critérios diagnósticos de TEA menos rigorosos (baseados apenas nos relatos de pais e professores), mostraram que cerca de metade das crianças com NF1 teriam TEA (ver aqui o estudo realizado na Inglaterra em 2013).
Sabendo que o TEA é 60 vezes mais comum do que a NF1, é possível que as famílias, escolas e profissionais da saúde estejam mais familiarizados com o TEA do que com a NF1. Então, é mais comum enquadrar os problemas cognitivos, comportamentais, motores e sociais das crianças com NF1 no TEA, do que reconhecer que são problemas causados pela própria NF1 e não pelo TEA.
Além disso, têm sido propagados tratamentos para os sintomas do TEA (que ainda precisam ser comprovados: ver aqui – em inglês), mas ainda não existem tratamentos propostos para os transtornos cognitivos específicos para a NF1.
Assim, o diagnóstico do TEA acaba por se tornar aparentemente mais útil para as famílias com NF1 do que o diagnóstico da própria NF1. Porque as famílias e os profissionais da saúde ficam com a impressão de que poderemos oferecer mais recursos de tratamento para o TEA, mas não para a NF1.
SINTOMAS DE TDAH PODEM PARECER TEA
Este estudo também sugere que o diagnóstico de TDAH foi mais comum (8,8%) nas pessoas com NF1 do que na população em geral (5%).
Vários comportamentos do TDAH podem se assemelhar a comportamentos de crianças com TEA, assim, a maior presença de TDAH entre pessoas com NF1 (do que na população em geral) pode induzir ao falso diagnóstico de TEA nelas.
Para conhecer melhor os sintomas de TDAH visite nossa cartilha sobre dificuldades cognitivas nas pessoas com NF1 clicando aqui.
CONCLUSÃO
Diante de uma pessoa com diagnóstico de NF1 e com problemas cognitivos e/ou comportamentais, devemos procurar a ajuda de especialistas na psicologia e psiquiatria que possam realizar com segurança a distinção entre TEA ou TDAH.
Achamos que será útil levar ao/a profissional que irá avaliar a criança com NF1 os resultados encontrados neste estudo que acabamos de comentar.
Mas, independentemente da criança com NF1 ter ou não o TEA, se ela apresentar problemas e sintomas que prejudiquem seu desenvolvimento e sua socialização, há diversas maneiras de ajudá-la.
Ela precisa contar com o investimento amoroso e paciente de sua família, sua escola, sua comunidade de forma geral, e sua rede de profissionais da saúde, que devem estar bem informados e integrados entre si.
A redação deste documento foi feita pelo Dr. Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues (Dr. Lor) e pela Dra. Luíza de Oliveira Rodrigues e contou com a aprovação do Dr. Nilton Alves de Rezende e do Dr. Renato de Souza Viana.
Setembro 2022