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Post #4 – final

Esta é a quarta e última parte da conversa com uma jovem estudante (MD, de 17 anos), que gostaria de saber como poderia se tornar uma cientista para descobrir a cura para a neurofibromatose do tipo 1 para um dia poder ajudar seu irmão mais novo, que nasceu com a doença. Nossa correspondência foi muito interessante e então, com a autorização de MD, resumi abaixo algumas perguntas e respostas que foram surgindo durante nossa conversa, porque talvez elas sejam úteis a outras pessoas.

A quinta pergunta de MD:

Como conviver com minha família religiosa?

Todas as etapas e condições que já comentamos antes parecem tornar muito difícil para uma garota como você, negra, brasileira e filha de trabalhadores, se tornar uma cientista. Para tornar as coisas ainda um pouco mais complicadas, você também relata um conflito com sua família, que possui princípios religiosos, os quais parecem se contrapor ao campo científico no qual você pretende ingressar.

Você pergunta sobre como conviver com sua família com crenças diferentes e, ao mesmo tempo, viver sua própria vida de acordo com as evidências materialistas que a ciência apresenta.

Você tem razão, não é fácil, especialmente quando as crenças religiosas interferem nas estruturas públicas de ensino e pesquisa. Se desejar, veja uma reflexão mais detalhada sobre isto no texto “Entre deus e o orientador ateu”.

Neste difícil território das opiniões, minha sugestão para você é deixar qualquer arrogância científica de lado e lembrar que o surgimento da ciência é muito recente na história. Nossa gente sobreviveu (e muitos povos originários ainda sobrevivem) por dezenas de milhares de anos sem a ciência, portanto, não podemos desprezar outras formas de ver o mundo simplesmente porque a ciência se mostra mais capaz de fazer previsões corretas sobre a realidade material, o que nos permite confiar mais nos satélites, por exemplo, do que nos búzios para prever o clima de amanhã.

Dependendo do campo do conhecimento, a ciência poderá ter respostas mais úteis, por exemplo no enfrentamento de uma pandemia, na criação de vacinas, no aquecimento do planeta ou no funcionamento das doenças neurológicas e psiquiátricas. Por outro lado, a ciência não oferece evidências objetivas sobre o sentido da vida individual ou sobre seus valores morais. Por isso, em determinados assuntos, muito subjetivos, é perda de tempo contrapor a ciência aos conhecimentos tradicionais ou mesmo contra a religião.

Além disso, compreender bem as informações científicas requer uma educação básica, a qual a maioria da população brasileira não tem acesso. Quantos jovens são forçados a abandonar a escola para trabalhar! Por isso precisamos ter respeito pelas pessoas cuja história de vida as levou à falta de escolaridade e de formação científica.

Com muito cuidado, podemos oferecer os dados científicos a quem não compreende a ciência somente quando algo objetivo precisa ser resolvido e a ciência tenha dados confiáveis sobre aquele assunto. Por exemplo, vamos vacinar nossas crianças? Ou, como evitar a gravidez precoce? Quais as vantagens de se oferecer educação sexual para todas as pessoas? Como podemos combater o racismo? Por que mulheres e homens são iguais em capacidades e direitos? Se o planeta está aquecendo, o que devemos fazer?

Solidão e conhecimento

Outro comentário seu, mas não menos importante, foi que “se sente solitária, porque acredita em um ideal que quase ninguém acredita”. Vamos chamar esta situação que descreveu de “solidão filosófica”, algo que acontece progressivamente à medida que vamos vivendo, pensando, estudando e descobrindo coisas sobre o mundo. Essas novas percepções (científicas, por exemplo) podem reduzir o número de pessoas que nos reconheciam anteriormente como parte de seu grupo (religioso, por exemplo) (se desejar, ver aqui um poema sobre isso ).

No entanto, nós precisamos do reconhecimento dos outros para construirmos nossa identidade porque somos, em parte, aquilo que os outros pensam que somos. Então, vivemos nos equilibrando entre o desejo de possuir uma identidade (que nos distingue do grupo) e o desejo de pertencer ao grupo (que tende a nos assimilar e massificar).

Neste sentido, o conhecimento científico adquirido também gera o desejo de pertencer a uma comunidade mais ampla, internacional e acadêmica, na qual vamos querer (novamente) construir nossa identidade, reproduzindo noutro nível o conflito permanente entre ser único e pertencer ao grupo. Enfim, sempre buscaremos por status em qualquer grupo social ao qual desejarmos pertencer, como todo ser humano neurotípico.

Conclusão

Você já percebeu nesta conversa que mesmo quando os temas são aparentemente simples, todos os assuntos são complexos porque a sociedade é complexa, porque nós, humanes, somos complexes (veja só quanta complexidade está envolvida no uso destas palavras “humanes” e “complexes” que usei para incluir os diferentes gêneros!). Ou seja, não temos respostas simples para questões complexas se quisermos resolvê-las de fato, sem preconceitos religiosos nem arrogância científica.

Então, tanto você, uma jovem estudante, quanto eu, um velho médico e cientista, para abordarmos qualquer assunto, devemos estar preparados para enfrentarmos sua complexidade. Parece um longo caminho e, de fato, o é.

No entanto, apesar de todas as dificuldades que conversamos, nossa vida como cientistas pode ser uma fascinante viagem pelas dúvidas e perguntas e, quem sabe, com bastante sorte, poderemos encontrar algumas respostas valiosas.

Entre elas, a resposta para algum tratamento efetivo para os problemas que afligem as pessoas com NF1.

Dr Lor

Junho 2022

 

 

Comentários sobre este texto, que foi lido por estudantes de graduação que estão realizando sua Iniciação Científica sob a orientação do Dr. Bruno Cézar Lage Cota durante seu projeto de doutorado, no qual ele está pesquisando os efeitos do treinamento musical sobre a capacidade cognitiva de adolescentes com NF1.

Gabriela Poluceno (medicina)

Como se tornar uma cientista? A minha resposta como uma jovem que acabou de entrar na universidade, de 22 anos, nova nesse mundo da pesquisa é: ainda não sei!

É um processo que acredito ser longo, trabalhoso, repleto de marcas importantes (será? um doutorado dá a alguém um título de cientista?) e que começa com algo tão simples quanto uma boa pergunta.

Claro que equipamentos de qualidade, uma boa estrutura e financiamento fazem uma diferença enorme nesse contexto (inclusive, infelizmente, define através do lucro a importância de certos estudos), porém acredito que o passo inicial para ser um cientista consista em ter curiosidade e criatividade para realizar boas perguntas.

 Conseguir extrair bons questionamentos de lugares não-usuais e elaborar soluções interessantes e pouco convencionais estão entre as habilidades que acredito que bons cientistas possuem e que basearam as grandes revoluções científicas.

A nossa pesquisa atual é um ótimo exemplo disso, ao utilizar a música e um diferente olhar sobre o processamento auditivo como pontapé inicial para um possível tratamento para a NF1. Ter o interesse e a motivação de afetar positivamente a vida de alguém, melhorar sua qualidade de vida ou até mesmo curar uma doença são atitudes essenciais durante o trajeto de um verdadeiro cientista, de modo que tenha-se sempre em mente que estamos lidando com pessoas e não apenas números, exames ou sintomas.

As questões éticas que isso envolve são inúmeras, e deve-se deixar claro que o sofrimento humano nunca compensa qualquer tipo de conhecimento científico adquirido, e que, ciência sem ética não é ciência.

Agora, de um ponto de vista mais prático, eu diria para que quando entrasse numa universidade, buscasse professores orientadores e uma iniciação científica, mas como exatamente fazer isso? Afeto! Tenha boas relações com seus professores, faça amigos, conheça pessoas dos mais diversos contextos e se assuste para onde a vida te levará! Ciência não se faz sozinho e não se vira cientista sozinho. A beleza da ciência está na diversidade e no coletivo.

Veja meu caso, ter tido aula com a professora Juliana, que em uma de nossas conversas de feedback citou a AMANF, o que me gerou muito interessante e me fez correr atrás do professor Bruno. Ao chegar no Bruno, que me acolheu imensamente e sou muito grata, pude acompanhar diversas consultas e ter um contato próximo com as pessoas participantes da pesquisa, que me trouxe a esse grupo enorme de estudantes, professores e colaboradores!

Por fim, essa é a minha pequena visão até agora de como se tornar um cientista, caminho longo que acredito que tenho muito a percorrer e que ainda sei pouquíssimo sobre.

E por fim, uma reflexão: reconhecer a ignorância não faz parte de ser um verdadeiro cientista?

 

Maíla Araújo Pinto (medicina)

Desde o ensino médio, eu sonhava em me tornar cientista e, com isso, almejava entrar para a iniciação científica no contexto universitário. Dessa forma, assim que entrei na faculdade de medicina fui em busca de como realizar esse sonho. Entretanto, por mais que esse desejo fosse antigo, só consegui de fato entrar para iniciação científica ao terceiro ano da faculdade.

 

A faculdade que ingressei é particular e não obtive resposta acerca do processo da iniciação científica. Por outro lado, sempre que tive a possibilidade conversei com professores demonstrando meu interesse.

 

Em vista disso, minha oportunidade surgiu quando conheci o professor Bruno Cota que em sua apresentação contou sobre seu projeto de doutorado pela universidade federal. O caminho não é fácil, nem antes de entrar, nem durante o processo, mas sem dúvida tem sido uma experiência enriquecedora. Sendo assim, caso se tornar cientista seja de fato um sonho, vale a pena buscar formas de alcançar.

 

Marina Silva Corgosinho (enfermagem)

Acredito que todos que desejam e possuem o gosto pela busca de conhecimento já é um dos caminhos para ser um cientista, além disso é necessário estar matriculado em um curso de ensino superior, e a melhor parte é que pode ser qualquer curso, basta buscar um projeto e um profissional que esteja disposto a caminhar juntamente com você durante todo o processo de construção do projeto, que será em forma de uma iniciação científica.

Ser um cientista vai além de boas notas ou ser um destaque, é ser responsável e ter a certeza de que seus estudos irão beneficiar as pessoas e às vezes podem vir a descoberta da cura de alguma doença ou uma inovação que fará bem a todos. 

 

Thaís Andreza Oliveira Barbosa (fonoaudiologia)

Como o Lor já ressaltou, o ambiente da universidade pública nos proporciona muitas oportunidades de ingressar no meio acadêmico e científico. Eu ainda estou no começo dessa caminhada, mas posso dizer que algo essencial é o apoio dos nossos professores e orientadores nesse processo.

 

Nem sempre decidir pesquisar algo é fácil (arrisco dizer que provavelmente nunca é) e surgem muitas dúvidas e inseguranças ao longo do caminho, então o apoio desses profissionais mais experientes é essencial, bem como a confiança deles de que somos capazes de embarcar nessa oportunidade.

 

Vitória Perlin Santiago (medicina)

Como se tornar um cientista e minha experiência ao longo da iniciação científica.

Como relatado pelo professor Lor, para se tornar um cientista é necessário passar por diversas formações acadêmicas, que demandam tempo, dedicação e recursos, podendo estes serem financeiros ou governamentais.

Como ainda sou estudante no curso de medicina, estou nos primeiros passos de minha carreira científica, ou seja, participando de uma iniciação científica. O projeto de doutorado sobre a relação da música com a Neurofibromatose tipo 1, do professor Bruno, foi introduzido a mim em meu segundo ano de curso, na nossa primeira aula juntos. Naquele momento, despertou em mim características que acho fundamentais para quem quer seguir na área da ciência, a curiosidade acerca do projeto, o entusiasmo de querer fazer parte e a identificação com o tema da pesquisa.

Após diversas reuniões com o professor Bruno em que ele, pacientemente, explicava seus estudos, hipóteses e métodos, ficava cada vez mais clara e consciente a vontade de participar do projeto, principalmente por ser diferente de qualquer outra experiência oferecida ao longo do curso. Quando finalmente começamos a realizar as práticas da pesquisa, ficou ainda mais nítido o quanto o professor Bruno estava empolgado com seu projeto, sempre buscando as melhores soluções, dedicando cada dia mais de seu tempo à pesquisa, se solidarizando com os participantes estudados e nunca estando satisfeito com pequenos resultados, indo cada vez mais profundo em seus estudos. Toda essa dedicação do professor incentivou ainda mais a minha participação, e tenho certeza que das outras voluntárias também, pois vemos nele algo que também é muito essencial para ser um cientista, o propósito de mudar a vida de muitas pessoas com os resultados encontrados.

Estou na pesquisa há quase um ano e meio e posso garantir que está sendo uma experiência única, não só pelos diversos conhecimentos científicos que adquiri, mas pelas pessoas que conheci, histórias que me emocionei e interesses que despertei.

Com isso, pela minha experiência, entendo que para se tornar um cientista, além das formações acadêmicas, é necessário ter muita dedicação e foco em seus objetivos; sempre ter curiosidade e buscar saber cada vez mais, não estando satisfeito com apenas alguns resultados; se identificar com o tema da sua pesquisa, pois isso faz com que você tenha incentivo e interesse em segui-la; encontrar pessoas que estejam dispostas a contribuir em seus estudos e estejam em sintonia com você, pois elas serão essenciais para orientá-lo e ser um apoio e, por fim, sempre lembrar do propósito da pesquisa, para que a essência dela não se perca e você tenha satisfação em seus resultados.