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Maria Graziela Malevichi é mãe de uma criança com neurofibromatose e a partir de sua experiência familiar teve a ideia de formar uma REDE de informação e compartilhamento para ajudar outras pessoas. Publicamos recentemente sua proposta aqui:  https://amanf.org.br/2021/01/uma-grande-ideia/

Recebi nova carta da Graziela, com perguntas importantes e compartilho aqui por achar que são do interesse de outras pessoas.

Caro Dr. Lor, estou tentando enxergar esse projeto da REDE, onde estamos e para onde queremos chegar.

Gostaria de ter um Centro de referência de Neurofibromatose e doenças raras no Brasil. O que acha?

 

Resposta Dr. Lor

Cara Graziela, obrigado pela sua importante pergunta.

 

Chamamos de Doença Rara qualquer doença que afete menos de 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. Esta definição é da Organização Mundial de Saúde.

Vamos lembrar algumas informações sobre as Doenças Raras.

  1. Existem mais de 7 mil doenças raras nos seres humanos, a maioria delas causadas por problemas genéticos (Brasil e colaboradores, Genes 2019, 10, 978; doi:10.3390/genes10120978)
  2. Em cada dez doenças raras, menos de uma delas tem tratamento comprovado neste momento (Austin e colaboradores, Clin Transl Sci (2018) 11, 21–27; doi:10.1111/cts.12500)
  3. As neurofibromatoses (NF1, NF2 e Schwannomatose) são apenas 3 entre as milhares de doenças raras.
  4. Individualmente, as doenças são raras, mas somadas fazem com que o total de pessoas com doenças raras no Brasil seja em torno de 11 milhões de pessoas.
  5. As pessoas com NF formam um grupo de cerca de 80 mil indivíduos no Brasil, ou seja, um grupo pequeno, formado por menos de 1% das pessoas com doenças raras.
  6. Portanto, apesar das NF serem mais comuns do que a maioria das outras doenças raras, ainda assim as neurofibromatoses atingem apenas uma pequena parte das pessoas com doenças raras.

Todas as doenças raras possuem duas necessidades em comum:

1)      Precisam ser reconhecidas pelos profissionais da saúde como possíveis portadoras de uma doença rara.

Ou seja, os profissionais de saúde devem ser habilitados, treinados para suspeitar de uma doença rara.

2)      Diante da suspeita, elas precisam ser encaminhadas a especialistas capazes de confirmar ou afastar o diagnóstico de uma doença rara.

Ou seja, é preciso que algumas médicas e médicos se dediquem a conhecer as doenças raras, especialmente geneticistas, e que sejam profissionais com fácil acesso por parte da população.

A partir do diagnóstico realizado, cada uma das pessoas com doenças raras possui necessidades completamente diferentes entre si em termos de condutas clínicas, tratamentos, suporte e acompanhamento. 

Há doenças raras com tratamentos comprovados (menos de uma em cada dez), há outras para as quais há tratamentos paliativos e outras para as quais não há qualquer tratamento específico e a conduta médica deve promover a melhor qualidade de vida possível.

Temos defendido que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, por isso, compreendemos que todas as etapas acima (a suspeita do diagnóstico, a confirmação do diagnóstico e o tratamento) devem ser realizadas dentro do Sistema Único de Saúde (SUS).

Somente o SUS seria capaz de habilitar todos os profissionais de saúde para suspeitar de uma doença rara. Por exemplo, as unidades básicas de saúde deveriam ter acesso a um sistema informatizado de diagnóstico preliminar que poderia sugerir alguma doença rara a partir de determinados sintomas e sinais fora do comum.

No entanto, como existem mais de 7 mil doenças raras, provavelmente é humanamente impossível que uma médica ou médico seja capaz de diagnosticar todas elas. Assim, parece ser necessária a ajuda de programas de computador com Inteligência Artificial para tornar o diagnóstico de uma doença rara mais preciso e rápido (Brasil e colaboradores, Genes 2019, 10, 978; doi:10.3390/genes10120978).

Uma vez suspeitada a doença rara, mais uma vez, somente o SUS seria capaz de criar uma rede de especialistas para oferecer o diagnóstico e os possíveis tratamentos para as pessoas com doenças raras.

Quais os especialistas seriam necessários?

Sabendo que cerca de 8 em cada 10 doenças raras são de origem genética, e as outras duas de origem imunológica, os especialistas para o diagnóstico deveriam ser geneticistas e imunologistas. No entanto, mesmo com a participação de geneticistas e imunologistas, é possível que somente a inteligência artificial seria capaz de oferecer diagnóstico rápido e seguro para as mais de 7 mil doenças raras.

Além disso, apesar de apenas cerca de 500 doenças raras apresentarem algum tratamento comprovado, as condutas mais adequadas para cada uma delas podem demandar diversas outras especialidades, o que talvez exija a participação da inteligência artificial cada vez mais no futuro.

Quantas médicas e médicos formariam esta rede? 

Apesar de serem alguns milhões de pessoas com doenças raras, ainda assim elas são doenças raras, então, não é possível haver especialistas disponíveis em todas as cidades.

Por exemplo, vamos considerar a neurofibromatose do tipo 1 (NF1), que acontece em 1 em cada 3 mil pessoas. Numa cidade como Belo Horizonte, com 3 milhões de pessoas, devem viver cerca de mil pessoas com NF1. Quantos médicos especialistas são necessários para atender clinicamente a esta população?

Imagine que uma médica especialista possa atender, de forma ideal, cerca de 6 consultas (com uma hora de duração) por dia. Ela atenderia 24 consultas numa semana, o que daria cerca de 100 num mês e um total aproximado de mil consultas em dez meses. Portanto, poderia ver TODAS as pessoas com NF1 de Belo Horizonte pelo menos uma vez num ano.

Este cálculo acima está de acordo com nossa experiência no Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Temos atendido (Dr. Bruno Cota, Dr. Nilton Rezende e eu) cerca de 16 consultas por semana (incluindo retornos), o que resulta num total de 600 consultas por ano.

Além disso, mesmo atendendo pessoas de outras cidades e estados, nossa agenda demora, no máximo, um mês para a marcação de consulta. Portanto, nem todas as mil pessoas com NF1 residentes em Belo Horizonte têm demandado uma consulta por ano em nosso Centro.

É preciso lembrar que atendemos apenas pessoas com NF, porque não somos geneticistas nem imunologistas, mas clínicos. Portanto, desde 2014, já manifestamos nossa total adesão e disponibilidade para fazermos parte de um centro de referência em doenças raras, o que ainda não aconteceu no nosso Hospital das Clínicas.

O mesmo raciocínio pode ser feito para outras doenças raras, como a Epidermólise Bolhosa, por exemplo, uma doença que causa bolhas na pele e nas membranas mucosas, que afeta 1 em cada 50 mil pessoas. Em todo o Brasil deve haver 4 mil pessoas com epidermólise bolhosa e bastariam 4 especialistas nesta doença, em todo o Brasil, para atender a todas elas uma vez por ano.

O que quero dizer é que não faz sentido haver especialistas em epidermólise bolhosa ou neurofibromatose em cada município ou região com 50 mil pessoas, pois ele cuidaria apenas de uma pessoa com epidermólise bolhosa ou cerca de 15 pessoas com neurofibromatose. 

Portanto, não há por que fazermos centros de especialistas em cada uma das doenças raras em todas as capitais dos estados e muito menos em cada cidade. O que precisamos é de alguns poucos centros de referência com especialistas em determinadas doenças, os quais, em conjunto, possam orientar TODAS as doenças raras.

Assim, considerando o tamanho da população e a diversidade clínica entre as doenças raras, creio que uma solução para o diagnóstico seria a criação de uma rede digital de especialistas no SUS, que permitisse uma consulta inicial por videoconferência a partir da suspeita de uma doença rara na unidade básica de saúde. Daí em diante, os especialistas podem indicar os tratamentos disponíveis para cada caso.

Portanto, cara Graziela, como percebe, estou de acordo com sua ideia básica de uma rede nacional de doenças raras na qual estejam incluídas as neurofibromatoses.

Mas compreendo que esta rede deve fazer parte do SUS.

Vamos conversando.

Abraço

Dr Lor

É na esperança que me apego, dói muito em meu coração ver a doença evoluindo e não conseguir fazer muita coisa para ajudar meu filho. Como gostaria de trocar de lugar com ele. E.S., de local não identificado.

Caro E, obrigado pelo seu e-mail.

Primeiro, devo dizer que compartilho totalmente do seu sentimento, pois há vários anos tenho esperado e trabalhado para o desenvolvimento científico de algum medicamento que possa evitar o crescimento dos neurofibromas e outras complicações da Neurofibromatose do tipo 1 (NF1).

Enquanto isso, vejo a doença avançando em minha filha e nenhuma droga realmente eficiente sendo aprovada, apesar dos diversos estudos científicos em andamento em todo o mundo neste momento.

Nos momentos de desânimo, lembro-me do filósofo norte-americano William James (1842-1910), que dizia que devemos agir hoje como se o que estamos fazendo venha a fazer diferença no futuro.

O exemplo que ele usava era o seguinte: você está perdido numa floresta e encontra uma trilha e então pode acreditar em uma das duas opções:

  • Que a trilha leva a algum lugar com comida e abrigo – então, você segue esta trilha e pode encontrar uma saída da floresta;
  • Que a trilha não leva a lugar algum – então, você continua perdido e morre de fome.

Em qualquer uma das alternativas, aquilo que você decidiu e em seguida agiu de acordo fez diferença. Portanto, devemos agir com a expectativa de que nossas ações importam e mudam o nosso destino.

Então, o que estamos fazendo neste momento em busca do tratamento para as complicações da NF1?

Muita coisa.

Diversos cientistas, eu calculo em torno de mil pessoas em todo o mundo, estão pesquisando como as NFs se manifestam, porque surgem os neurofibromas, como acontecem as dificuldades cognitivas, como tratar os neurofibromas plexiformes e os gliomas ópticos, como corrigir problemas de coluna e tantas outras questões.

Em nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, apesar das dificuldades impostas pelo governo às universidades, continuaremos com nossas pesquisas até quando (e se) nossas portas forem fechadas pela falta de verbas.

Por exemplo, neste exato momento, estamos estudando como crescem os neurofibromas, como a musicoterapia pode ajudar adolescentes com NF1, como a inteligência artificial pode nos ajudar a melhorar nosso diagnóstico e atendimento, como a atividade física pode melhorar a qualidade de vida das pessoas com neurofibromatoses.

Além disso, tentamos melhorar nosso protocolo de atendimento com reuniões, estudos e discussões científicas.

Estamos agindo com a convicção de que nossa ação fará diferença no futuro das pessoas com neurofibromatoses.

Isto se chama esperança.

E, como disse o filósofo, a esperança funciona.