Atualizado em 18/10/2021

“Ontem li uma reportagem que me deixou intrigado, falando da cura das doenças raras em um método chamado de CRISPR. … como curar a doença genética? Mudar todas as células da pessoa? Li alguns artigos. Bem, estou certo em pensar que quando se falam desta cura é a modificação genética, ainda como óvulo? Ou seja, não é possível fazer isso em adultos? Veja o link para a reportagem AQUI “. RLB de Coimbra, Portugal.

Caro R, sua pergunta é muito interessante e foi feita também por outras pessoas que leram este blog. Para responder com segurança sobre esta questão, convidei a doutoranda Cinthia Vila Nova Santana, que submeteu suas respostas ao seu orientador Renan Pedra de Souza, do Programa de Pós-Graduação em Genética do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Veja abaixo o que eles responderam.

Além disso, vejam a reportagem que foi publicada em 2018 Clicar Aqui

Veja também novas informações experimentais de 2021 CLIQUE AQUI

Cinthia e Renan também enviaram referências de artigos e livros sobre cada etapa do seu pensamento e elas estão disponíveis comigo para quem se interessar, basta solicitar por e-mail.

Cinthia – O desenvolvimento da técnica de DNA recombinante em 1970 marcou o início de uma era importante na Biologia. Pela primeira vez, pesquisadores foram capazes de manipular moléculas de DNA (ativando e desativando, ou seja, editando os genes – Figura ilustrativa acima), o que tornou possível o estudo de genes de interesse medicinal e biotecnológico. Desde então, muitos avanços aprimoraram as técnicas de biologia molecular, possibilitando o estudo dos genes não apenas isolados, mas também no organismo como um todo.

Muitas das ferramentas para edição do genoma são baseadas no princípio da complementariedade de bases: a base Adenina é complementar à Timina e a Citosina é complementar à Guanina. Isto possibilitou o desenvolvimento de técnicas para multiplicação de fragmentos de DNA (chamada de reação da polimerase em cadeia, PCR), permitiu o silenciamento de genes (knockout) ou diminuição da expressão gênica (knockin) e também inserção de mutações em um gene, por exemplo.

Apesar das tecnologias disponíveis, nem sempre se consegue a recombinação desejada. Além disso, o genoma de eucariotos (como nós, seres humanos) contém milhões de bases de DNA, tornando difícil a sua manipulação.

A fim de superar estes desafios, novas técnicas para edição do DNA são constantemente desenvolvidas e, recentemente, o sistema CRISPR-Cas ganhou merecida atenção. Apesar de descrito em 1987, este sistema foi somente empregado como ferramenta biotecnológica em 2012 e em 2013 já foi eleito um dos destaques do ano pela revista científica Nature.

LOR – Mas o que vem a ser esta nova técnica CRISPR-Cas?

Cinthia – CRISPR é uma sigla em inglês que significa: Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas.

Aparentemente é algo complicado, mas se analisarmos com atenção não é tão difícil quanto parece. Como o próprio nome indica, CRISPR trata de sequências de bases palindrômicas, assim como ARARA, que é uma palavra palindrômica, ou seja, pode ser lida de trás para frente sem mudar o sentido. Elas são curtas e agrupadas e se repetem com espaços regulares entre elas, por exemplo, a cada 20 nucleotídeos há uma repetição (Figura 2).


Figura 2: Representação do sistema CRISPR-Cas. Em azul mais à esquerda estão os genes associados a CRISPR (“cas genes”) e mais à direita, os losangos pretos representam as repetições (“repeat”), enquanto que os quadrados coloridos são os espaçadores regulares (“spacer”). A este conjunto dá-se o nome de locus da CRISPR (Figura adaptada de http://rna.berkeley.edu/crispr.html).

O sistema CRISPR-Cas foi primeiramente descrito em bactérias como um mecanismo de defesa contra vírus.

Esta defesa acontece da seguinte forma: durante uma infecção virótica, o DNA do vírus é liberado dentro da célula bacteriana e é integrado ao sistema CRISPR como um novo espaçador (como se fosse um dos quadrados coloridos da Figura 2) (Figura 3, estágio 1). A sequência CRISPR é então transcrita (isto é, a informação é passada de DNA para RNA) e processada para gerar os CRISPR RNAs (crRNAs), cada um codificando a informação de uma sequência espaçadora específica (Figura 3, estágio 2). Cada crRNA associa-se com uma proteína Cas que usa o crRNA como molde para silenciamento de elementos genéticos externos (Figura 3, estágio 3).

 
Figura 3: Mecanismo de ação do sistema CRISPR-Cas9. Conferir corpo do texto para maiores detalhes. Fonte: http://rna.berkeley.edu/crispr.html

Em resumo, com o uso do CRISPR, a bactéria consegue impedir que o vírus seja bem-sucedido em sua infecção através de modificações do material genético do vírus. 


Se quiser entender um pouco melhor sobre CRISPR-Cas9, veja o vídeo https://www.youtube.com/watch?v=2pp17E4E-O8.

LOR – Mas como um mecanismo de defesa bacteriano contra vírus pode se tornar uma ferramenta biotecnológica em seres humanos?
Cinthia – A resposta vem em duas partes. Primeiro, o processo de defesa acontece por alteração genética que é controlável, ou seja, teoricamente é possível decidir qual a alteração que será realizada no material genético.

Segundo, embora outras técnicas de mutação regulada (ou dirigida) sejam conhecidas, o sistema CRISPR-Cas9 é consideravelmente mais simples em relação às técnicas anteriores.

LOR – Então, a técnica CRISPR-Cas9 pode ser usada em seres humanos?

Cinthia – Esta hipótese está em teste. Resultados experimentais ainda preliminares indicam que grupos de poucas células podem responder a esta metodologia de maneira satisfatória, mas ainda não se sabe qual é o efeito do CRISPR em um ser humano. Várias das metodologias anteriores capazes de gerar alterações no código genético de maneira regulada mostraram-se funcionais em grupos de poucas células, mas sem efeitos no ser humano.

Até abril de 2016 já foram publicados cerca de 1.200 artigos científicos citando o sistema CRISPR-Cas9, segundo o site de pesquisas biomédicas PubMed (disponível no endereço eletrônico http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed).

Diversos estudos já utilizaram esta técnica para edição do DNA em linhagens celulares, plantas (trigo, arroz, tabaco), fungos, Drosophila, peixes (zebrafish), camundongos, sapos e até mesmo macacos, nas mais diversas aplicações: agricultura (aumentar resistência a pragas nas lavouras de trigo), reprodução de modelos de câncer em camundongos para estudos de vias biológicas e de efeitos de medicamentos, identificação de genes essenciais para viabilidade celular especialmente em câncer, alteração de mutações responsáveis por doenças genéticas em modelos experimentais.

No entanto, estudos em seres humanos são praticamente inexistentes e o principal foco dos estudos neste momento é entender melhor como certas características são determinadas.

LOR – E em relação às neurofibromatoses? Existe algum trabalho publicado?

Cinthia – Em pesquisa feita no site do PubMed com os termos “CRISPR neurofibromatosis” (em inglês), apenas dois estudos são exibidos: Shalem e colaboradores (2014) e Beauchamp e colaboradores (2015). Os dois trabalhos utilizam a técnica CRISPR para regular os genes NF1 e NF2, somente em modelos experimentais, novamente com o objetivo de compreender melhor o desenvolvimento da neurofibromatose.

LOR – A técnica CRISPR-Cas9 poderia ser usada para alterar as mutações nos genes das neurofibromatoses? Caso afirmativo, qual seria o tempo de expectativa?

Cinthia – O primeiro problema desta questão é conceitual. O que representaria alterar o código genético de um paciente com neurofibromatose, assumindo que isto fosse possível? Seria possível recuperar a produção de neurofibromina?

No seu blog, você já abordou a dificuldade em se fazer um medicamento para reposição da neurofibromina (ver aqui). As mesmas dificuldades são pertinentes neste caso do CRISPR. Como você explicou, a neurofibromina é uma proteína necessária especialmente durante o desenvolvimento do bebê dentro do útero. Logo, não se espera que a alteração do código genético em pacientes fosse capaz de reverter uma série de sintomas associados à inexistência de neurofibromina ainda em estágios iniciais de desenvolvimento.

Bom, mas e se considerarmos então uma intervenção do código genético ainda durante a vida intrauterina? Essa questão nos leva a outra linha de raciocínio. Em cerca de metade dos casos de NF1 a mutação é nova, o que significa dizer que nenhum dos pais possuía em seu código genético aquela alteração e muito provavelmente não ficarão sabendo de sua existência antes do nascimento. Para os casais em que se conhece um histórico familiar da doença uma possibilidade seria o aconselhamento genético para que todas as opções sejam consideradas.

LOR – Mas então, neste momento, a técnica CRISPR-Cas9 não poderia ter utilidade para pacientes com neurofibromatoses?

Cinthia – Esta técnica é realmente uma revolução no campo da ciência e já é referida como uma possível “cirurgia do genoma”, mas ainda há muito que se descobrir quanto ao seu funcionamento.

Primeiro há de se entender como seria o resultado desta técnica em um indivíduo sem neurofibromatose para depois estudá-la como um tratamento. Grupos de pesquisadores também estão atrás de respostas para várias das perguntas feitas neste texto.

A ciência avança rapidamente, as técnicas estão aprimorando a cada dia e nós, pesquisadores das neurofibromatoses, investigaremos todos as técnicas que tenham um potencial, mesmo que mínimo, de melhorar a vida dos pacientes com neurofibromatoses.

 

“O médico viu as manchas café com leite, disse que minha filha tem a mesma doença do Homem Elefante e me mostrou as fotos no computador. Eu fiquei chocada. ” AP, de Divinópolis, MG.

Cara AP, obrigado pelo seu triste relato, provavelmente compartilhado por muitas outras famílias. É a primeira vez que comentarei este tema neste blog.

Quando uma de minhas três filhas recebeu o diagnóstico de neurofibromatose do tipo 1 (NF1) estávamos em 1981 e, como médico, eu também havia aprendido na Faculdade de Medicina que aquela era a doença do Homem Elefante. Eu também fiquei arrasado ao imaginar que minha menina iria se transformar numa pessoa com grandes deformidades corporais.

Na mesma época (1980), o cineasta norte-americano David Lynch lançou seu filme “O Homem Elefante” (VER AQUI O FILME LEGENDADO) a história comovente de Joseph Merrick, um homem que viveu na Inglaterra do Século Dezenove e que era exibido em circos até ser resgatado pelo médico Frederick Treves, que o levou para um hospital onde Joseph Merrick passou o resto de sua vida sendo estudado pelos médicos, intrigados com aquela doença desconhecida. O filme aumentou a convicção de que a causa dos problemas físicos de Joseph Merrick era a Doença de von Recklinghausen, como era comumente conhecida da NF1.

Durante muitos anos, sofri com a expectativa de que, mais cedo ou mais tarde, as deformidades físicas aconteceriam com minha filha. Pelo fato de ser médico, acreditava que ela devesse ser cuidada por outros colegas médicos e, desta forma eu não estudava a sua doença (até porque não conseguia ler alguma coisa sobre NF1 sem chorar) e permaneci restrito aos conhecimentos ultrapassados que havia recebido na minha graduação na Faculdade de Medicina, até que em 2002 entrei para a Associação Mineira de Apoio às Pessoas com Neurofibromatoses, e a partir daí descobri que a maioria dos meus colegas não conhece as neurofibromatoses.

Portanto, até 2002, não tive conhecimento de que em 1982 já se suspeitava que a doença de Joseph Merrick não era a NF1, mas sim outra doença chamada Síndrome de Proteus. Esta suspeita foi confirmada por análise genética: a doença que acometeu Joseph Merrick é causada por uma mutação no gene AKT1, é ainda mais rara do que a NF1 e ocorre em 1 em cada milhão de pessoas.

A Síndrome de Proteus apresenta-se de formas variadas em decorrência de alteração nos genes reguladores dos receptores de insulina, o que leva ao hipercrescimento assimétrico de partes do corpo, podendo afetar a pele, o tecido subcutâneo, músculos, ossos e órgãos internos. Este crescimento aumentado acontece no início da infância e pode estabilizar em torno dos 15 anos.

Atualmente já dispomos de critérios clínicos bem estabelecidos para o diagnóstico da Síndrome de Proteus (VER AQUI REVISÃO RECENTE) . São eles:

1) Hipercrescimento progressivo e assimétrico, geralmente a partir de 6 a 18 meses de idade, com deformidade da estrutura óssea.

2) Um tipo de nevo especial chamado “cerebriforme” que pode ocorrer geralmente na planta do pé, ou na palma da mão, ou orelha. Este sinal é típico da Síndrome de Proteus.

3) Nevo verrucoso epidérmico linear.

4) Desequilíbrio adiposo (aumento da gordura nas partes afetadas e pouca gordura nas partes não afetadas).

5) Outros: defeitos vasculares (hemangioma), aumento de órgãos internos, tumores (especialmente cistos ovarianos e meningiomas), degeneração bolhosa pulmonar e dismorfias faciais.

O tratamento da Síndrome de Proteus consiste de avaliações clínicas regulares para se tentar controlar o excesso de crescimento, com procedimentos ortopédicos e cirurgias, e correção da escoliose se houver. Recomenda-se estudo radiológico do corpo inteiro na avaliação inicial e se necessário diante de sintomas novos.

Além disso, (especialmente depois da infância) é preciso o monitoramento e tratamento das tromboses venosas profundas e embolia pulmonares, monitoramento da função pulmonar (pode haver doença restritiva) e das manifestações cutâneas (nevos), assim como estarmos atentos à chance de aparecimento de tumores malignos (20%). Atenção especial deve ser dada às dificuldades de aprendizado e problemas emocionais decorrentes das dificuldades sociais provocadas pelo preconceito.

Não há risco de transmitir a doença para os filhos.

Mais informações podem ser encontradas em: Proteus Foundation 4915 Dry Stone Drive Colorado Springs CO 80918 Phone: 719-660-1346 www.proteus-syndrome.org

ou
Proteus Foundation UK 2 Watermill Close Bexhill-on-Sea East Sussex TN39 5EJ United Kingdom Phone: 01424 736640 Email: traceywhitewoodneal@yahoo.co.uk www.proteus-syndrome.org.uk 


Até 15 dias atrás, eu havia visto apenas uma pessoa com a Síndrome de Proteus, um adulto, que convive bem com a assimetria corporal causada pela doença, não apresenta dificuldades de aprendizado e seu maior problema foi o ganho de peso (uma das epidemias em que que vivemos), o que está forçando as articulações dos joelhos e causando artrose e dor.

Até 15 dias atrás, eu me referia à Doença do Homem Elefante com uma espécie de alívio, afastando-a da NF1, dizendo: – Não, a Doença do Homem Elefante não é NF1, é Proteus! – e creio que eu fazia um gesto involuntário com as mãos, como se quisesse me livrar daquele peso sobre os ombros que carreguei durante tantos anos.

No entanto, há 15 dias, atendi uma criança de dois anos com suspeita de NF1, mas que na verdade nasceu com a Síndrome de Proteus. E eu decidi não mencionar aos pais a história do “Homem Elefante”.

Amanhã explicarei o porquê.

Viajarei na próxima semana para Porto Alegre, onde participarei de um seminário no Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre “Neurofibromatoses: cura ou tratamento? ”



Voltarei a postar novas informações no dia 18 de abril.
Até lá.

A partir de hoje, quem desejar marcar consultas conosco pode utilizar o e-mail:
adermato@hc.ufmg.br
ou telefonar para 31 3409 9560 numa quarta de 8 às 10 horas, em virtude de férias do pessoal da secretaria.

 

Nos últimos dias venho respondendo diversas perguntas sobre problemas ósseos que ocorrem com mais frequência nas pessoas com NF1 do que na população em geral.

 

Já comentei sobre dois grupos de problemas mais graves, os desvios da coluna (escoliose e cifoescoliose) e as displasias (da tíbia e da asa menor do esfenoide). Hoje veremos outros problemas ósseos relacionados com a NF1, que apesar de menos graves podem causar alguns transtornos na vida das pessoas que nasceram com eles.

De um modo geral, a NF1 reduz a resistência dos ossos, tornando-os mais fracos (a chamada osteopenia) e menos calcificados (osteomalácia), uma situação intermediária entre o osso normal e a osteoporose e até mesmo a osteoporose verdadeira (ver trabalho do grupo do Peltonen.

Estes problemas aparecem nas radiografias como ossos menos densos, menos mineralizados e com alterações no seu desenvolvimento e formato normais. A osteopenia, a osteomalácia e a osteoporose contribuem para as dificuldades de tratamento nas escolioses e na displasia da tíbia.

As pessoas com NF1 apresentam também menor força muscular e coordenação motora (ver AQUI o trabalho realizado em nosso Centro de Referência), o que as torna mais vulneráveis a quedas. Estas quedas mais frequentes associadas aos ossos menos resistentes fazem com que a chance de fraturas ósseas aumente nas pessoas com NF1. 


Outro problema encontrado em grande parte das pessoas com NF1 é a baixa estatura, o que significa que o esqueleto se desenvolve abaixo do tamanho médio da população, considerando a idade e o sexo da criança. Não sabemos ainda a causa da baixa estatura na NF1, mas sabemos que ela não responde bem aos tratamentos hormonais e por isso o hormônio do crescimento é contraindicado como tentativa de aumentar a estatura pelo risco colateral deste medicamento desenvolver tumores nas crianças com NF1.

Além da osteopenia e da baixa estatura, as pessoas com NF1 podem crescer com outras displasias ósseas menos graves do que da tíbia e do esfenoide, como o aumento da circunferência da cabeça, chamada de macrocrania (macro – grande, crania – crânio). A macrocrania é apenas um aumento do crânio e do cérebro um pouco além do desenvolvimento normal, que é mais acentuado nos meninos do que nas meninas, e que não causa problemas para a saúde.

A macrocrania não tem nenhuma relação com hidrocefalia, como infelizmente muitas pessoas e profissionais da saúde pensam, pois a macrocrania na NF1 acompanha o desenvolvimento da criança e não é causada por aumento da pressão dentro do cérebro. Não há necessidade de qualquer tratamento para a macrocrania na NF1.

Outras displasias ósseas congênitas mais comuns nas pessoas com NF1 do que na população em geral são algumas deformidades no tórax, como uma depressão na região do esterno (pectus excavatum) ou assimetria e elevação do esterno (pectus carinatum). Algumas destas displasias podem causar limitações para a saúde e seu tratamento requer cirurgia (ver AQUI uma revisão sobre o assunto).

Diante de todas estas alterações ósseas (desvios na coluna, displasias, macrocrania, baixa estatura e osteopenia), compreendemos porque é necessário o exame clínico anual da coluna e dos ossos das pessoas com NF1. Ocasionalmente, se algum novo problema é encontrado, pode ser necessária a realização de radiografias, da medida da densidade óssea e dos níveis sanguíneos de Vitamina D, cálcio e hormônio da paratireoide.

Por falar em Vitamina D, amanhã comentarei a suspeita de que as pessoas com NF1 apresentam deficiência de Vitamina D.

 

Ontem comentei sobre o estudo realizado na Universidade de Indiana nos Estados Unidos, usando o imatinibe em diversas pessoas com NF1 e neurofibromas plexiformes (quem desejar ver o artigo completo em inglês basta clicar AQUI – em inglês).

Outros estudos mais recentes sobre o uso de imatinibe em neurofibromas plexiformes inoperáveis em pessoas com NF1 apontam na mesma direção, ou seja, de que devemos continuar a estudar mais ampla e profundamente esta possibilidade terapêutica.

Algumas reflexões podem ser feitas sobre os resultados do Dr. Robertson e colaboradores, que deram origem ao nosso atual projeto de pesquisa.

A primeira delas é que não sabemos a taxa de crescimento dos plexiformes antes do tratamento com o imatinibe no estudo do grupo do Dr. Robertson. É possível que aqueles tumores com maior taxa de crescimento apresentem resposta melhor ao imatinibe do que os outros menos ativos? Será que a utilização inicial da tomografia computadorizada com emissão de pósitrons (PET CT) poderia definir o nível metabólico dos plexiformes e indicar os mais adequados para o uso do imatinibe?

Segundo, os autores relatam que o tamanho mínimo dos neurofibromas plexiformes deveria ser de 10 mm, ou seja, tumores muito pequenos para causar grandes riscos, de um modo geral. Não seria mais indicado o imatinibe para pessoas com plexiformes maiores (e, de preferência mais ativos, como vimos acima) e inoperáveis?

Terceiro, não sabemos se houve uma distinção segura entre os neurofibromas difusos (epineurais) e os neurofibromas nodulares (perineurais), os quais possuem origens embriológicas distintas, diferentes momentos de crescimento, diferentes padrões vasculares e possíveis diferenças nas barreiras teciduais à perfusão do medicamento. Não teria sido prudente a separação prévia ou retrospectiva dos efeitos do imatinibe sobre os neurofibromas difusos e os nodulares?

Quarto, sentimos falta de informação sobre os efeitos do imatinibe sobre os sintomas (como dor e disfunção neurológica) e a qualidade de vida das pessoas com o tratamento experimental. Não teria sido mais útil, para todos nós que trabalhamos na clínica e para as pessoas com NF1, se soubéssemos como o tratamento com o imatinibe foi percebido pelas pessoas que o usaram?

Finalmente, quando se busca corretamente a objetividade (medindo-se apenas o tamanho do tumor) não se corre o risco de perdermos informações que talvez sejam mais importantes para as pessoas com NF1, como dor, outros sintomas e qualidade de vida?

Por exemplo, outra pesquisa, realizada com 3 pessoas com NF1 e plexiformes inoperáveis, mostrou que a intensa dor neuropática (presente em muitos plexiformes, especialmente os nodulares), que é de difícil tratamento, praticamente foi eliminada com o uso de outro medicamento (sirolimus), sem que houvesse redução apreciável do tamanho dos tumores (ver aqui o trabalho completo). Portanto, o tamanho do tumor não é o único problema a ser resolvido.

De qualquer forma, a pesquisa do Dr. Robertson e colaboradores (2012) constitui uma base segura sobre a qual podemos formular a proposta de um novo estudo multicêntrico no Brasil.

Pretendemos realizar um estudo com 50 pessoas com NF1 (25 crianças e 25 adultos), as quais utilizariam o imatinibe em neurofibromas plexiformes inoperáveis e sintomáticos e em crescimento (avaliado pelo PET CT), medindo-se o tamanho do tumor e os efeitos clínicos sobre as pessoas, além de levarmos em conta as diferenças entre plexiformes difusos e plexiformes nodulares.

Estamos dando os passos necessários para este projeto, como submetê-lo aos Comitês de Ética em Pesquisa e buscar o financiamento (cerca de 400 mil reais) junto à Universidade Federal de Minas Gerais, à FAPEMIG e ao CNPq.

Quem sabe, algum leitor deste blog tem recursos financeiros para patrocinar este projeto?

 

O pediatra pediu uma avaliação com endocrinologista porque meu filho que tem NF1 está com baixa estatura. O que devo fazer? ISA, de Montes Claros, MG.

Cara I. Obrigado pela sua participação. Minha primeira recomendação é que você deve seguir a orientação do pediatra, pois ele pode ter encontrado sinais ou sintomas que precisam da avaliação da endocrinologia.

De fato, há diversas situações em que as pessoas com NF1 precisam da avaliação especializada da endocrinologia. As pessoas com NF2 e Schwannomatose não apresentam estes problemas na mesma frequência que as pessoas com NF1.

A causa mais comum das consultas à endocrinologia é a baixa estatura, muito comum nas pessoas com NF1 (variam os estudos entre 30 e 60%) e, por causa dela, os médicos suspeitam que a baixa estatura possa ser decorrente da falta de hormônio do crescimento.

Apesar de algumas crianças com NF1 apresentarem baixa do hormônio do crescimento, elas respondem mal ao tratamento com reposição do hormônio (não crescem como as crianças que não tem NF1) e o medicamento aumenta o risco de crescimento dos tumores (especialmente os plexiformes) e transformação maligna. Por isso, atualmente, não recomendamos o uso de reposição do hormônio do crescimento nas pessoas com NF1.

Outra causa de dúvida é o baixo peso e a circunferência do crânio aumentada, que deixam intrigados pediatras e nutricionistas. Sabemos que se trata de uma situação muito comum na NF1, para a qual ainda não temos explicações sobre suas causas, mas não há necessidade de ser tratada com suplementos, dietas especiais ou medicamentos estimulantes do apetite.

Outras crianças são levadas à endocrinologia por causa de puberdade precoce, ou seja, aparecimento das características sexuais antes da hora, com crescimento acelerado ou não. A puberdade precoce acomete cerca de 3% das crianças com NF1, mais meninos do que meninas, e podem estar associadas ou não com um tumor benigno chamado glioma, que pode atingir o nervo óptico e outras partes do sistema nervoso central.

 

A puberdade precoce deve ser tratada e acompanhada pela endocrinologia.

Nossa observação clínica também sugere que a puberdade tardia (cerca dos 16 anos) possa ocorrer com mais frequência na NF1, acompanhada de timidez e retraimento do comportamento sexual. Não temos encontrado outros problemas de saúde decorrentes desta puberdade um pouco mais atrasada.

Outra situação que requer a colaboração da endocrinologia é a hipertensão arterial de origem recente. Esta pressão alta encontrada em 4% das pessoas com NF1 pode ser causada pelo estreitamento das artérias renais (2% dos casos) e, depois de diagnosticada, deve ser tratada pela cirurgia vascular.

A outra causa da pressão aumentada, especialmente nos adultos, em cerca de 2% das pessoas com NF1, são tumores chamados de feocromocitomas (que liberam adrenalina e outras substâncias semelhantes). Eles causam, além da pressão aumentada, dor de cabeça, grande produção de suor (sem calor), taquicardia, palpitações e emagrecimento. Estes tumores precisam da avaliação e acompanhamento urgente da endocrinologia.

Outras situações menos comuns que levam pessoas com NF1 à endocrinologia são os emagrecimentos exagerados (síndrome diencefálica) e a ginecomastia (crescimento da mama uni ou bilateral antes da puberdade e/ou em meninos).

Curiosamente, talvez a causa mais comum de consulta à endocrinologia por parte da população em geral seja também a menos frequente nas pessoas com NF1: o diabetes do tipo 2.  O nosso grupo do Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais tem constatado em diversos estudos, as pessoas com NF1 têm menos chances de desenvolver o diabetes tipo 2, que tantos problemas de saúde causa na vida adulta. 


Uma boa notícia, afinal, para quem tem NF1.
Riccardi reafirma que o grande desafio nos estudos sobre tratamento dos neurofibromas é a nossa pouca capacidade atual de quantificarmos cientificamente a “carga de tumores” de uma pessoa, ou seja, qual a gravidade de cada caso, uma vez que a NF1 se apresenta de formas extremamente diferentes entre uma pessoa e outra, ainda que ambas possuam a mesma mutação genética, como no caso de gêmeos univitelinos.
Para enfrentarmos esta questão da quantificação da carga de tumores, Riccardi propõe uma tabela de descrição dos neurofibromas, a qual adaptei para nosso uso ambulatorial e que estará disponível para quem se interessar, bastando enviar-me um e-mail neste sentido.
O desafio consiste em sermos capazes de avaliar cada tipo de neurofibroma de acordo com alguns critérios apresentados na Tabela abaixo.
Tipo
Critérios
Endoneurais (cutâneos)
Número total (dúzias a centenas)
Tamanho (poucos milímetros a vários quilogramas)
Localização (em qualquer parte da pele e mucosas)
Densidade regional (especialmente na parte central das costas, lombares, torácicos)
Planos, sesseis, pedunculados ou invertidos
Pós-traumáticos
Influência no conforto pessoal e desempenho cotidiano
Coceira – dor – rigidez
Areolares (dificuldade para amamentar)
Estética (face, mãos, braços e genitais externos)
Perineurais (subcutâneos)
Número total (poucos a muitos)
Tamanho (poucos milímetros a vários centímetros)
Localização (em qualquer parte ao longo do trajeto de um nervo)
Influência no conforto pessoal e desempenho cotidiano
Invasão regional
Coceira – dor – rigidez
Transformação maligna
Neuropatia
Estética
Perineurais (plexiformes nodulares)
Número total (poucos a geralmente muitos)
Tamanho (pequenos a muito grandes)
Localização (geralmente, mas não exclusivamente, para-espinhais)
Transformação maligna
Influência no conforto pessoal e desempenho cotidiano
Invasão regional
Coceira – dor – rigidez
Neuropatia (disfunção neurológica)
Estética
Epineurais (plexiformes difusos)
Número total (um ou vários)
Tamanho (pequenos a muito grandes)
Localização (proximal ou distal, interno ou externo, frequentemente ganglionares)
Transformação maligna
Influência no conforto pessoal e desempenho cotidiano
Invasão regional
Coceira – dor – rigidez
Neuropatia (disfunção neurológica)
Estética
Atípicos
Número total (um ou poucos)
Tamanho (médios a grandes)
Localização (geralmente se desenvolvem num subcutâneo, ou em plexiformes já existentes)
Transformação maligna
Influência no conforto pessoal e desempenho cotidiano
Invasão regional
Coceira – dor – rigidez
Como podemos ver, é uma tarefa bastante complexa em muitos casos, o que exige grande dedicação dos pesquisadores interessados em desenvolver tratamentos para os neurofibromas.
Agradeço mais uma vez ao Dr Riccardi por ter escrito este artigo e gentilmente nos ter enviado uma cópia nesta segunda feira.
Amanhã volto com outro assunto do nosso interesse: as dificuldades cognitivas na NF1.

 

O olhar sempre renovado do Dr. Riccardi (Parte 3)

Depois de ter comentado os conceitos do Riccardi sobre a distinção entre ”achados, consequências e complicações” da NF1 e lembrarmos os 5 níveis de tratamento dos neurofibromas, tentaremos hoje compreender os diferentes tipos de neurofibromas sob o olhar do nosso mestre inspirador. Na opinião do Riccardi, precisamos distinguir as características anatômicas dos neurofibromas para manejá-los clinicamente de forma adequada.

Riccardi divide os neurofibromas em três tipos fundamentais, cujos termos indicam a origem dos tumores em relação ao nervo.

Um nervo (ver figura acima) é formado por feixes de axônios (o prolongamento dos neurônios) são envolvidos pelas células de Schwann, que estão num ambiente chamado ENDONEURO. Vários axônios e o endoneuro são agrupados por uma membrana chamada PERINEURO. Vários feixes reunidos são abraçados por outra membrana mais externa, chamada EPINEURO.

 Assim, conforme a origem dos neurofibromas, eles podem ser: ENDONEURAIS (crescem sem limitações dentro na camada chamada endoneural – ver figura acima), ou PERINEURAIS (crescem sempre limitados pela camada perineural) ou EPINEURAIS (começam limitados pela camada epineural e depois perdem os limites, espalhando-se pelos tecidos ao redor).

Cada tipo de neurofibroma tem sua história clínica particular e precisamos conhecer as diferenças entre eles para tratarmos adequadamente.

Endoneurais (também chamamos de cutâneos e pedunculados)

São os mais comuns, geralmente pequenos e indolores, de consistência macia e rosados. Nascem na parte interna (endoneuro) da terminação de um nervo sensitivo na pele, crescem especialmente a partir da puberdade e praticamente nunca se tornam malignos.

PERINEURAIS (também chamamos de neurofibromas subcutâneos ou nodulares)

Surgem em qualquer parte do nervo sensitivo, da raiz até a extremidade, são nodulares e firmes porque estão envolvidos por uma bainha (perineuro), a qual define bem os seus limites, separando-os dos tecidos ao redor. Às vezes formam cordões com vários neurofibromas ao longo do trajeto de um nervo como se fossem “contas de um rosário” e podem ser dolorosos. Geralmente se apresentam nos primeiros 5 anos após o nascimento e continuam a crescer ao longo da vida.

Algumas pessoas com NF1 apresentam estes neurofibromas perineurais ao longo das raízes nervosas em várias partes da coluna vertebral ou mesmo em toda ela, situação em que denominamos de forma espinhal da NF1. Segundo Riccardi, estes neurofibromas se comportam como plexiformes e há a chance de pelo menos 15% deles sofrerem transformação maligna.

EPINEURAIS (também chamamos de neurofibromas plexiformes difusos)

São formados entre o perineuro e ocorrem em cerca de 30% das pessoas, são geralmente congênitos, surgem na vida intrauterina em qualquer parte de um nervo sensitivo, desde a raiz nervosa próxima à medula até suas terminações nervosas. Costumam estar associados a manchas cutâneas grandes (hiperpigmentadas) que são confundidas com manchas café com leite. Seu pico de crescimento é nas primeiras três décadas de vida.

Segundo Riccardi, com exceção daqueles que acontecem no nervo trigêmeo (na face), cerca de 15% deles sofrem transformação maligna em tumor maligno da bainha do nervo periférico (TMBNP). Mesmo quando benignos podem causar deformações e atingir grandes tamanhos.

Riccardi chama a atenção para um “quarto” tipo de neurofibroma, que temos chamado de “atípico”, o qual, na verdade, seria um passo intermediário na transformação de um neurofibroma epineural (nodular) ou perineural (difuso) para um tumor maligno da bainha do nervo periférico (TMBNP). Estes neurofibromas atípicos apresentam aumento anormal do metabolismo no PET CT e devem ser tratados com rapidez.

Amanhã farei meus últimos comentários sobre o artigo do Riccardi, no qual ele propõe uma forma de medirmos a gravidade dos neurofibromas, o que, segundo ele, seria fundamental para tratamentos mais eficazes.


Olá doutor gostaria de saber se existem estudos sobre a técnica de Diagnóstico Genético Pré-implantacional em pessoas que querem ter filhos e que possuem NF1, com a popularização desses métodos, poderia ser um caminho mais lógico para uma possível “eliminação” de mutações, selecionando então embriões saudáveis e consequentemente uma possível erradicação da síndrome? AG, de localidade não identificada.

Cara AG, obrigado por trazer esta questão importante, que contém em si duas outras também fundamentais. Hoje, falarei de como evitar passar adiante a NF. Amanhã, discutirei se é possível “eliminar” as neurofibromatoses.

Primeiro, sim, por meio das técnicas de inseminação artificial e reprodução assistida é possível fazer o diagnóstico se um embrião tem ou não a mutação para uma das formas de NF que um de seus pais possui.

Sabendo-se quais os embriões possuem ou não a mutação para a NF (ou para diversas outras doenças genéticas), pode-se escolher aqueles que serão implantados no útero para dar prosseguimento à gestação. Aqueles embriões que apresentam a mutação são recusados para o implante e devem permanecer congelados nas instituições de reprodução assistida, de acordo com normas legais brasileiras.

Esta tecnologia da seleção de embriões existe, mas ela não está disponível para todas as pessoas, em especial para aqueles que dependem dos serviços públicos. Alguns casais que escolhem este caminho precisam gastar grande quantidade de dinheiro para conseguir um bebê por meio desta técnica.

O direito de pessoas com doenças genéticas terem filhos (inclusive por meio da seleção de embriões) é uma discussão complexa, que precisa ser realizada pela sociedade brasileira, tendo em vista a portaria 199 de 2014 do Ministério da Saúde, (que pretende garantir às pessoas com doenças raras o atendimento pleno pelos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde) e a Lei 3037 do Estado de Minas Gerais (que estende às pessoas com neurofibromatoses os mesmos direitos das pessoas com necessidades especiais).

Sabemos que as neurofibromatoses são doenças que podem trazer complicações graves o suficiente para que os pais não queiram que seus filhos nasçam com qualquer uma das neurofibromatoses, pois com certeza haveria grande probabilidade de sofrimento para esta pessoa, o que ninguém pode desejar racionalmente.

Aquelas pessoas que nasceram com NF, ou porque apresentam uma mutação nova ou porque herdaram a mutação de um de seus pais (porque eles não sabiam que as neurofibromatoses podem ser transmitidas adiante), precisam aceitar sua doença como uma espécie de nova identidade, procurando viver da melhor forma possível, o que, felizmente a maioria consegue.

No entanto, esta aceitação nunca é tão abrangente que possa levar os pais ou mães com neurofibromatoses a desejarem ter um filho com a mesma doença que eles. Assim, é legítimo que os casais procurem medidas de auxílio gestacional para garantir que a mutação não seja passada adiante.

Levando-se em conta as complicações da gestação para as mulheres com NF1 e NF2 e os custos financeiros atuais para o implante de embriões selecionados, lembro que a adoção é uma das boas opções que devem ser consideradas por famílias nas quais um dos cônjuges tenha NF e que desejam ter filhos.

A segunda parte da sua pergunta trata da possibilidade de “eliminarmos” as NF. Isto será possível? Veremos amanhã.