Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o texto esclarecedor da Dra. Cinthia Vila Nova Santana, doutora em genética , que vem colaborando com nossos conhecimentos sobre as pessoas com NF1. Muito obrigado por mais esta colaboração, que é uma necessidade dos profissionais de saúde que trabalham com doenças genéticas.

Dr. Lor

 

 

Cinthia Vila Nova Santana

Biomédica, Doutora em Genética

Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Fundação ProAR

 

O desenvolvimento da engenharia genética na década de 1970 marcou o início de uma era importante na medicina. Pela primeira vez, pesquisadores foram capazes de manipular moléculas de DNA através de técnicas como a clonagem e reação em cadeia da polimerase (PCR), o que tornou possível o estudo de genes de interesse medicinal e biotecnológico. Desde então, muitos avanços aprimoraram as técnicas de biologia molecular, possibilitando o estudo dos genes não apenas isolados, mas também no organismo como um todo.

O primeiro relato de terapia gênica se deu em 1990, em uma paciente com uma deficiência imunológica grave provocada por uma condição genética rara (Anderson, 1990). Essa técnica envolvia a inserção de cópias funcionais do gene responsável pela produção de uma enzima ausente ou defeituosa. Embora esse tratamento tenha mostrado resultados promissores, também revelou desafios significativos, como a possibilidade de reações adversas, eficácia limitada e, até mesmo, risco de morte.

Anos mais tarde, as pesquisadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier anunciaram, em 2012, uma nova técnica de edição de genomas (CRISPR) que iria revolucionar o campo da terapia gênica. Essa descoberta conferiu, em 2020, o prêmio Nobel em Química para essas duas pesquisadoras (The Nobel Foundation, 2020). A nova metodologia reacendeu a esperança de cura para doenças genéticas, como as neurofibromatoses, que são provocadas por erros em um local específico no nosso DNA. Nesse capítulo, vamos entender um pouco mais sobre terapia gênica e como o método pode influenciar no tratamento da Neurofibromatose do tipo 1 (NF1).

 

Tratamentos genéticos e suas possibilidades na NF1

Antes de falarmos sobre tratamentos genéticos (ou terapia gênica), vamos compreender alguns conceitos. O nosso DNA contém genes onde estão armazenadas as instruções para a fabricação de proteínas. É como se os genes fossem o manual de instruções para a montagem de peças ─ as proteínas ─ e essas peças fazem o trabalho necessário para garantir o bom funcionamento do nosso corpo. Quando alguma instrução está defeituosa, temos proteínas que não funcionam corretamente, ou até mesmo que não são nem produzidas, e isso pode acarretar doenças genéticas como, por exemplo, a fibrose cística, anemia falciforme, beta talassemia, e as neurofibromatoses. Os tratamentos genéticos, por sua vez, têm como objetivo corrigir esses erros no DNA (também chamados de mutações), a fim de tratar uma doença (Anguela & High, 2019).

A NF1 é uma doença genética, resultante da mutação no gene que produz a proteína neurofibromina, presente em vários tipos celulares (especialmente em neurônios e nervos periféricos) e tem como função controlar o crescimento das células. Nas pessoas com NF1, essa proteína está ausente ou defeituosa, o que gera uma proliferação e um crescimento celular descontrolado, característico dos tumores (neurofibromas) observados na doença (Brems et al., 2009; Gutmann et al., 2017). Até o momento, não existe cura para a NF1, apenas tratamentos das condições específicas que surgem em cada paciente.

Mas, então, você poderia se perguntar: se o problema está na ausência da neurofibromina, por que não tomamos a neurofibromina artificial para correção da NF1? Existem alguns fatores a se considerar.

Primeiramente, esta é uma proteína grande (com cerca de 327 kDa e 2818 aminoácidos) e com uma conformação complexa (Nordlund et al., 1993; Upadhyaya et al., 2008), o que dificulta a sua síntese em laboratório.

Além disso, essa proteína é importante desde a vida intrauterina para o desenvolvimento do bebê, por isso muitas manifestações clínicas da doença, como as manchas café com leite, por exemplo, já estão presentes ao nascimento. Assim, a administração da neurofibromina após o nascimento não seria capaz de reverter as consequências da ausência dessa proteína em estágios iniciais do desenvolvimento.

Somando-se a isso, cerca de metade dos casos de NF1 são resultantes de mutações novas, quando não há histórico familiar (Mckeever et al., 2008), e, portanto, o diagnóstico da doença não é conhecido durante a gestação, o que inviabilizaria um possível tratamento.

Nesse contexto, terapias genéticas surgem como uma esperança de tratamento, e quem sabe até mesmo cura, para a NF1. Vejamos abaixo alguns dos avanços e pesquisas que estão sendo realizadas nessa área.

 

Terapia gênica direta – Substituição do gene defeituoso

 

A terapia gênica direta para NF1 busca corrigir a mutação ou substituir o gene NF1 defeituoso por uma cópia funcional (Leier et al., 2020), visando restaurar a função da neurofibromina e reduzir o crescimento dos tumores e outras manifestações associadas à doença. Essa parece ser uma excelente alternativa de tratamento, no entanto, alguns desafios ainda precisam ser superados para que a substituição do gene seja uma realidade.

Como já vimos, o NF1 é um gene grande, com cerca de 350 kb, e complexo (Pasmant et al., 2015), o que dificulta consideravelmente sua manipulação em laboratório. Pesquisadores conseguiram menos de 10% de sucesso nas taxas de transfecção, isto é, incorporação do gene funcional dentro das células (Bai et al., 2019). Além disso, o sistema de entrega do gene funcional ainda não está bem estabelecido para a NF1. Opções de entrega como a utilização de vetores virais, nanopartículas, exosomos e polímeros ainda não conseguem acomodar o tamanho do gene da NF1 em seu sistema. Imagine tentar transportar um bolo de casamento de 7 andares em uma bicicleta, é muito difícil conseguir entregar o bolo íntegro no local da festa.

 

CRISPR – Edição do genoma

 

Alternativamente à substituição do gene, a edição de parte do genoma se torna uma opção mais plausível no caso da NF1. Existem três abordagens principais para edição do DNA:

  • utilização de nucleases dedo de zinco (ZFN, do inglês zinc finger nucleases);
  • uso de nucleases efetoras semelhantes a ativadores de transcrição (TALENs, do inglês transcription activator-like effector nucleases);
  • sistema CRISPR-Cas (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats).

As duas primeiras utilizam como domínio de reconhecimento do DNA estruturas proteicas (dedos de zinco e proteínas TAL – transcription activator-like, respectivamente), ao passo que o sistema CRISPR-Cas utiliza o pareamento das bases nitrogenadas (adenina com timina e citosina com guanina), o que confere maior especificidade a essa metodologia.

Desde que foi descrito como ferramenta de edição de genoma em 2012 (Jinek et al., 2012), o sistema CRISPR-Cas vem sendo amplamente utilizado devido à sua simplicidade, eficácia e versatilidade (Wang & Doudna, 2023). Vamos entender um pouco mais sobre ele.

CRISPR acontece naturalmente em bactérias, como um mecanismo de defesa contra infecções por vírus (Figura 1) (Mojica et al., 2005). De maneira geral, quando um vírus infecta uma bactéria, ele injeta seu material genético dentro dela. Parte desse material é então incorporado no DNA da bactéria como um novo espaçador do sistema CRISPR. Vamos imaginar que a bactéria é uma casa que foi invadida pelo vírus. As câmeras de segurança conseguem identificar esse vírus e guardar a sua imagem nos arquivos (espaçadores do sistema CRISPR). Essa imagem é impressa e entregue aos seguranças para que fiquem alertas em caso de nova tentativa de invasão pelo vírus. No caso da bactéria, a sequência do vírus é, então, transcrita (“impressa”, isto é, a informação é passada de DNA para RNA) e processada para gerar os RNAs de CRISPR (crRNAs), como observado na Figura 1. Estes, por sua vez, associam-se a uma proteína Cas, que irá cortar o material genético do vírus invasor utilizando o crRNA como molde para esse silenciamento em infecções futuras (Wang & Doudna, 2023).

Figura 1: Representação esquemática do sistema CRISPR numa célula procariota. Com uma infecção por vírus, a bactéria incorpora parte desse material genético em seu próprio genoma, como um espaçador do sistema CRISPR (estágio 1). Essa informação será transformada (transcrita) em um pré-crRNA (estágio 2) e então processada para que, em caso de uma nova infecção viral, o crRNA maduro possa clivar (destruir) o material genético do vírus (estágio 3), impedindo o sucesso da infecção.

Inspirados nesse sistema, os pesquisadores começaram a trabalhar na possibilidade de utilizar CRISPR como ferramenta para edição de genomas. Após anos de estudo, o grupo liderado por Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier descobriu como realizar esse feito que iria revolucionar o campo das ciências biomédicas. Eles identificaram que para editar o genoma com CRISPR eram necessários basicamente três componentes (Figura 2) (Jinek et al., 2012):

  • RNA guia: é a combinação do crRNA (onde está a sequência complementar ao alvo) com o tracrRNA (contribui para a estabilidade da estrutura e seu reconhecimento pela enzima Cas);
  • Enzima Cas (do inglês CRISPR associated): essa enzima possui a capacidade de cortar o DNA na região específica identificada pelo RNA guia. Existem várias enzimas descritas hoje em dia, mas a primeira delas foi a Cas9;
  • DNA alvo com a sequência PAM: o DNA alvo é a sequência de interesse que será editada. Próximo a ela, está o motivo adjacente ao protoespaçador ou PAM (do inglês, Protospacer Adjacent Motif), que é uma sequência curta (cerca de 2 a 5 nucleotídeos) essencial para a ancoragem do complexo Cas/RNA guia. A sequência PAM funciona como uma bandeira para confirmação que aquela região do DNA alvo é realmente onde deve acontecer a edição.

 

 

Figura 2: Representação esquemática do sistema CRISPR como ferramenta de edição do genoma. Basicamente são necessários apenas três componentes, o RNA guia formado pela combinação do crRNA e o tracrRNA, a enzima Cas9 e o DNA alvo juntamente com a sequência PAM.

 

De maneira geral, o que acontece na edição do genoma é a entrega do complexo contendo o RNA guia acoplado à enzima Cas, para o tecido que necessita da edição. Um dos métodos mais comuns de entrega é através de vetores virais, que consistem em vírus modificados para não causarem doença, assim como por nanopartículas, exosomos, eletroporação, entre outros métodos de transporte.

Diversas adaptações foram realizadas nesse sistema para permitir uma atuação mais ampla na edição do genoma. Por exemplo, é possível modificar uma base nitrogenada sem necessariamente clivar o DNA utilizando proteínas acopladas à Cas, ou ativar e desativar genes, regular a expressão de genes através de modulação epigenética (afrouxando ou condensando o DNA para deixá-lo mais ou menos disponível para a maquinaria de transcrição da célula), entre outras aplicações [para maiores detalhes, ver revisão de (Chavez et al., 2023)].

Inúmeros estudos utilizam o sistema CRISPR como ferramenta de edição genética na busca pelo tratamento de doenças, mas, até o momento, apenas uma terapia gênica com essa ferramenta foi aprovada para uso em pacientes. No final de 2023, o Reino Unido, seguido dos EUA, aprovaram a terapia com CRISPR para tratamento da anemia falciforme e beta talassemia (Food and Drug Administration (FDA), 2023), após anos de pesquisas e acompanhamento de pacientes. Os resultados são bastante promissores e nos dão esperança para que, em breve, essa metodologia possa ser empregada no tratamento de outras doenças.

No que se refere à NF1, ainda existem poucos estudos com essa metodologia. De maneira geral, a literatura mostra a utilização da ferramenta CRISPR para criar organismos modelos experimentais da doença, a fim de que pesquisas mais aprofundadas possam ser realizadas para melhor entendimento da doença e busca de alvos terapêuticos. Contudo, até então, não existem publicações com o uso de CRISPR no tratamento da NF1.

Afinal, existe cura da NF1 com terapia gênica?

Leier e colaboradores e Staedtke e colaboradores resumem, em seus artigos de revisão, possibilidades de terapias genéticas para a NF1 (Leier et al., 2020; Staedtke et al., 2024). A terapia gênica é sim um grande avanço na medicina, no entanto, existem algumas limitações. É importante destacar que o tamanho e complexidade do gene NF1, a dificuldade com o sistema de entrega (vetores virais e não virais), o aspecto sistêmico da doença que afeta múltiplos órgãos e tecidos, a importância da neurofibromina desde a vida uterina, o diagnóstico tardio e a alta taxa de mutações novas em pessoas sem histórico familiar são alguns dos fatores que dificultam os avanços para o tratamento genético da NF1. Apesar disso, a ciência está caminhando em busca desse tratamento e espera-se que, em breve, novas possibilidades se tornem realidade.

 

Referências

Anderson, W. F. (1990). September 14, 1990: The Beginning. Human Gene Therapy, 1(4), 371–372. https://doi.org/10.1089/hum.1990.1.4-371

Anguela, X. M., & High, K. A. (2019). Entering the Modern Era of Gene Therapy. Annual Review of Medicine, 70(1), 273–288. https://doi.org/10.1146/annurev-med-012017-043332

Bai, R. Y., Esposito, D., Tam, A. J., McCormick, F., Riggins, G. J., Wade Clapp, D., & Staedtke, V. (2019). Feasibility of using NF1-GRD and AAV for gene replacement therapy in NF1-associated tumors. Gene Therapy, 26(6), 277–286. https://doi.org/10.1038/s41434-019-0080-9

Brems, H., Beert, E., de Ravel, T., & Legius, E. (2009). Mechanisms in the pathogenesis of malignant tumours in neurofibromatosis type 1. The Lancet Oncology, 10(5), 508–515. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(09)70033-6

Chavez, M., Chen, X., Finn, P. B., & Qi, L. S. (2023). Advances in CRISPR therapeutics. In Nature Reviews Nephrology (Vol. 19, Issue 1, pp. 9–22). Nature Research. https://doi.org/10.1038/s41581-022-00636-2

Food and Drug Administration (FDA). (2023, December 8). FDA Approves First Gene Therapies to Treat Patients with Sickle Cell Disease. Https://Www.Fda.Gov/News-Events/Press-Announcements/Fda-Approves-First-Gene-Therapies-Treat-Patients-Sickle-Cell-Disease.

Gutmann, D. H., Ferner, R. E., Listernick, R. H., Korf, B. R., Wolters, P. L., & Johnson, K. J. (2017). Neurofibromatosis type 1. Nature Reviews Disease Primers, 3, 17004. https://doi.org/10.1038/nrdp.2017.4

Jinek, M., Chylinski, K., Fonfara, I., Hauer, M., Doudna, J. A., & Charpentier, E. (2012). A Programmable Dual-RNA – Guided DNA Endonuclease in Adaptive Bacterial Immunity. Science (New York, N.Y.), 337(August), 816–822. https://doi.org/10.1126/science.1225829

Leier, A., Bedwell, D. M., Chen, A. T., Dickson, G., Keeling, K. M., Kesterson, R. A., Korf, B. R., Marquez Lago, T. T., Müller, U. F., Popplewell, L., Zhou, J., & Wallis, D. (2020). Mutation-Directed Therapeutics for Neurofibromatosis Type I. In Molecular Therapy Nucleic Acids (Vol. 20, pp. 739–753). Cell Press. https://doi.org/10.1016/j.omtn.2020.04.012

Mckeever, D., Mckeever, K., Shepherd, C. W., Crawford, H., & Morrison, P. J. (2008). An epidemiological, clinical and genetic survey of Neurofibromatosis type 1 in children under sixteen years of age. In Ulster Med J (Vol. 77, Issue 3). www.ums.ac.uk

Mojica, F. J. M., Díez-Villaseñor, C., García-Martínez, J., & Soria, E. (2005). Intervening sequences of regularly spaced prokaryotic repeats derive from foreign genetic elements. Journal of Molecular Evolution, 60(2), 174–182. https://doi.org/10.1007/s00239-004-0046-3

Nordlund, M., Gu, X., Shipley, M. T., & Ratner, N. (1993). Neurofibromin is enriched in the endoplasmic reticulum of CNS neurons. The Journal of Neuroscience : The Official Journal of the Society for Neuroscience, 13(4), 1588–1600. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8463837

Pasmant, E., Parfait, B., Luscan, A., Goussard, P., Briand-Suleau, A., Laurendeau, I., Fouveaut, C., Leroy, C., Montadert, A., Wolkenstein, P., Vidaud, M., & Vidaud, D. (2015). Neurofibromatosis type 1 molecular diagnosis: what can NGS do for you when you have a large gene with loss of function mutations? European Journal of Human Genetics, 23(5), 596–601. https://doi.org/10.1038/ejhg.2014.145

Staedtke, V., Anstett, K., Bedwell, D., Giovannini, M., Keeling, K., Kesterson, R., Kim, Y. R., Korf, B., Leier, A., McManus, M. L., Sarnoff, H., Vitte, J., Walker, J. A., Plotkin, S. R., & Wallis, D. (2024). Gene-targeted therapy for neurofibromatosis and schwannomatosis: The path to clinical trials. Clinical Trials, 21(1), 51–66. https://doi.org/10.1177/17407745231207970

The Nobel Foundation. (2020, October 7). The Nobel Prize. Https://Www.Nobelprize.Org/Prizes/Chemistry/2020/Press-Release/.

Upadhyaya, M., Kluwe, L., Spurlock, G., Monem, B., Majounie, E., Mantripragada, K., Ruggieri, M., Chuzhanova, N., Evans, D., Ferner, R., Thomas, N., Guha, A., & Mautner, V. (2008). Germline and Somatic NF1 Gene Mutation Spectrum in NF1-Associated Malignant Peripheral Nerve Sheath Tumors (MPNSTs). Human Mutation, 29, 74–82. https://doi.org/10.1002/humu

Wang, J. Y., & Doudna, J. A. (2023). CRISPR technology: A decade of genome editing is only the beginning. Science, 379(6629). https://doi.org/10.1126/science.add8643

 

Outras informações sobre este tema em nosso site:

https://amanf.org.br/2016/04/crispr-nf/

https://amanf.org.br/2015/12/selecionar-bebes-sem-nf/

https://amanf.org.br/2016/02/novidade-no-dna-das-pessoas-com-nf1/

https://amanf.org.br/2016/03/pergunta-188-por-que-nao-dar-neurofibromina-para-quem-tem-nf1/

https://amanf.org.br/2016/09/reproducao-assistida/

https://amanf.org.br/2018/08/novas-mutacoes/

https://amanf.org.br/2019/04/quando-sera-cura-neurofibromatoses/

https://amanf.org.br/2019/05/reuniao-174-da-amanf-discutiu-novo-tratamento-genetico-a-festa-junina-e-outros-assuntos/

 

 

 

Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o excelente texto de um grupo de neurocientistas da Universidade Federal de Minas Gerais, que tem participado há muitos anos do desenvolvimento dos nossos conhecimentos sobre as pessoas com NF1.

Muito obrigado por mais esta colaboração, que já nasce como uma referência fundamental para a população brasileira.

Dr. Lor

 

Danielle de Souza Costa (Ph.D.)

Jonas Jardim de Paula (Ph.D.)

Débora Marques de Miranda (M.D., Ph.D)

Neuropsicologia da NF1

A Neurofibromatose Tipo 1 (NF1) é uma condição genética que afeta o sistema nervoso central e periférico frequentemente associada a déficits cognitivos (até 80% dos casos), sendo as dificuldades de aprendizagem uma das adversidades mais comuns no quadro (Hyman et al. 2005). Apesar de déficits cognitivos serem uma característica chave da NF1, o perfil de comprometimentos tem se mostrado bastante heterogêneo (Crow et al., 2022). Variáveis sociodemográficas (p.ex., idade, sexo, escolaridade e nível de educação dos pais) não impactam significativamente o perfil de déficits cognitivos na NF1 e os comprometimentos são difusos e salientes ao longo da vida (Crow et al., 2022).

Pessoas com NF1 enfrentam um risco aumentado de desenvolver comprometimentos cognitivos e disfunções motoras (Gutmann et al., 2012). A inteligência é encontrada na faixa média-inferior (ou seja, QI ≈ 85–90) e a taxa de Deficiência Intelectual (i.e., QI ≤70 e baixa funcionalidade) é maior que na população em geral (6%–7%) (Lehtonen et al., 2013). Outra característica marcante é o comprometimento de funções executivas (Beaussart et al., 2018), além de déficits de desempenho acadêmico, habilidade visuoespacial, atenção e funcionamento psicossocial (Lehtonen et al., 2013). É comum que as dificuldades cognitivas sejam evidentes já na infância, entre os 3 e 5 anos de idade (Williams et al., 2009). Apesar de o comprometimento cognitivo ser perceptível em vários domínios na NF1, não existe um perfil cognitivo claro associado à condição (Crow et al., 2022).

Em metanálise, Crow e colegas (2022) encontraram que as maiores diferenças em magnitude de efeito entre pessoas com NF1 e controles foram nos escores de inteligência (geral, de execução e verbal) e em habilidades visuoespaciais. Diferenças menores e moderadas, foram encontradas tanto para habilidades não verbais (memória de longo prazo não verbal, memória de curto prazo não verbal, velocidade de processamento, fluência não verbal, planejamento e função motora) quanto verbais (memória de trabalho verbal e linguagem receptiva). Diferenças progressivamente menores e pequenas foram observadas em linguagem expressiva, controle de interferência, atenção, mudança de conjunto (flexibilidade), fluência fonêmica, memória de trabalho não verbal, inibição de resposta, memória de longo prazo verbal, emoção, memória de curto prazo verbal, fluência semântica e tomada de decisão. Essa relativa falta de especificidade de comprometimento em dimensões cognitivas (p.ex., não verbais vs. verbais) tem sido atribuída à inteligência moderadamente mais baixa na NF1 (geralmente 1DP abaixo da média), aos déficits visuoespaciais e nas funções executivas, bem como às dificuldades de aprendizagem (Cutting et al., 2004).

Apesar das habilidades visuoespaciais serem as mais frequentemente e fortemente afetadas na NF1, além da inteligência, atenção especial tem sido dada aos déficits nas funções executivas talvez pelo seu impacto funcional mais amplo. As funções executivas (FEs; também chamadas de controle executivo ou controle cognitivo) referem-se a uma família de processos mentais top-down necessários quando você precisa se concentrar e prestar atenção, quando agir automaticamente ou confiar no instinto ou intuição seria imprudente, insuficiente ou impossível (Diamond, 2013). Há um consenso de que existem três funções executivas principais: inibição [controle inibitório, incluindo autocontrole (inibição comportamental) e controle de interferência (atenção seletiva e inibição cognitiva)], memória de trabalho e flexibilidade cognitiva (também chamada de mudança de conjunto, flexibilidade mental ou mudança de conjunto mental e intimamente ligada à criatividade). A partir dessas, são construídas as FEs de ordem superior, como raciocínio, resolução de problemas e planejamento. As FEs são habilidades essenciais para a saúde mental e física; sucesso na escola e na vida; e desenvolvimento cognitivo, social e psicológico (Diamond, 2013).

Em metanálise, Beaussart e colegas (2018) apontam que dificuldades executivas são uma característica central na NF1, pelo menos em crianças e adolescentes. As dificuldades são maiores e moderadas nos domínios memória de trabalho e planejamento/resolução de problemas e menores e pequenas para controle inibitório e a flexibilidade cognitiva. A disfunção executiva parece ser maior com o aumento da idade (diferente da metanálise de Crow et al, 2022), enquanto o tipo de ferramenta de avaliação, desempenho intelectual, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade e a composição do grupo controle não parecem afetar os resultados das funções executivas.

As principais características neuropsicológicas da NF1 foram sintetizadas na Tabela 1. Os resultados são baseados principalmente na metanálise de Crow e colaboradores (2022) – a mais recente e abrangente até o momento – junto a informações específicas de outros estudos citados neste capítulo. Organizamos a tabela com base na classificação mais recente das funções cognitivas propostas pelo Manual Estatístico-Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-5-TR – APA, 2020) que adota a nomenclatura “domínios neurocognitivos”. Complementamos esta organização os tópicos inteligência geral e desempenho escolar.

Transtornos do Neurodesenvolvimento na NF1

Transtornos do neurodesenvolvimento ocorrem com frequência na NF1, como o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) (30–50%), dificuldades de aprendizagem (30%–60%) e Transtorno do Espectro Autista (TEA) (25%–30%) (Ferner, 2007; Garg et al., 2012; Garg et al., 2013; Pride, Payne, & North, 2012).

Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH)

O TDAH é um transtorno da autorregulação caracterizado por um padrão extremo e persistente de desatenção (p.ex., descuido, desatenção, desinteresse, não terminar tarefas, desorganização, procrastinação, perder coisas, esquecimento, distração) e/ou hiperatividade-impulsividade (agitação, não ficar sentado, inquietação, barulhento, estar “a mil”, falar demais, precipitação, dificuldade para esperar, interrompe/intromete) (APA, 2022). Levantamentos populacionais sugerem que o TDAH ocorre na maioria das culturas em cerca de 5% das crianças e 2,5% dos adultos (APA, 2022).

O TDAH é um fenótipo comportamental frequentemente encontrado na NF1. Estudos encontram que 23% a 50% das crianças com NF1 atendem aos critérios para o TDAH (Barton & North, 2004; Huijbregts et al., 2010; Hyman et al., 2006; Isenberg et al., 2013; Mautner, Kluwe, Thakker, & Leark, 2002; Templer et al., 2013). Pacientes com NF1 e TDAH parecem ter um desempenho acadêmico mais baixo e mais transtornos específicos de aprendizagem do que pacientes apenas com NF1 (Hachon, Iannuzzi, & Chaix, 2011; Payne et al., 2012). Crianças com NF1 e TDAH apresentam um perfil de déficit de atenção e funções executivas semelhante ao de crianças com TDAH primário, mas com um tempo de resposta mais lento, aumentando as dificuldades de aprendizagem (Routier et al., 2024).

O metilfenidato, uma medicação estimulante comum para o TDAH, tem demonstrado consistentemente eficácia positiva no tratamento de déficits cognitivos e sintomatologia relacionada ao TDAH na NF1 (Lidzba et al., 2014; Loin-François et al., 2014; Mautner et al., 2002), embora déficits atencionais e nas funções executivas existam na NF1 independentemente da comorbidade com o TDAH (Loin-François et al., 2020).

Transtorno do Espectro Autista (TEA)

Outra alteração de neurodesenvolvimento que vem sendo corroborada como mais prevalente e grave em comparação com a população não afetada pela NF1 é o Transtorno do Espectro Autista (TEA) (Chisholm et al., 2018). O TEA é caracterizado por déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos (reciprocidade social, comunicação não verbal e relacionamentos) e por padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, incluindo fala ou outro comportamento repetitivo, insistência na mesmice, interesses restritos e alterações sensoriais (APA, 2022).

Em metanálise, Chisholm e colaboradores (2018) encontraram que as dificuldades no funcionamento social na NF1 variam de moderadas a altas, incluindo habilidades sociais reduzidas e comportamentos pró-sociais diminuídos, bem como dificuldades sociais aumentadas, como isolamento e menor aceitação pelos pares. Déficits na percepção de emoções em crianças e adultos com NF1, especialmente ao identificar emoções negativas como raiva e medo, já foram descritas, além de menor capacidade na atribuição de estados mentais. Os autores também descrevem que a sintomatologia do TEA na NF1 em comparação com amostras controle é significativamente maior (tamanho de efeito grande). Sobre a prevalência do TEA em si na NF1, apenas dois estudos foram identificados, apontando prevalência de 25% (Garg et al. 2013; Plasschaert et al. 2015). Nesses estudos, em comparação com pessoas com TEA idiopático, pessoas com NF1 apresentam menos comportamentos estereotipados e melhor contato visual (Garg et al. 2013; Morris et al. 2016; Plasschaert et al. 2015). Se a natureza dos sintomas de TEA na NF1 é diferente daquela na condição idiopática, é uma questão a ser esclarecida.

Dificuldades de aprendizagem e transtornos específicos de aprendizagem

Aproximadamente 70% dos pacientes com NF1 experimentam baixo desempenho acadêmico devido a dificuldades de aprendizagem ou problemas comportamentais (Hyman et al., 2005).

Os déficits de leitura são prevalentes na NF1 (50% a 67%) (Orraca-Castillo et al., 2014; Watt, Shores, & North, 2008) e as dificuldades em testes de linguagem associadas à leitura são maiores em crianças com NF1 do que em crianças com um transtorno específico de aprendizagem (Cutting, Koth, & Denckla, 2000). Medidas de inteligência, decodificação e precisão de leitura, além de medidas laboratoriais e comportamentais de atenção influenciam o desempenho de crianças com e sem NF1 em compreensão de leitura (Biotteau et al., 2021).

Num estudo envolvendo 32 estudantes com NF1(Orraca-Castillo et al., 2014), encontrou-se que a frequência da dislexia foi de 50%, enquanto a de discalculia de 18,8%. Os mecanismos relacionados à dislexia e à discalculia na NF1 foram déficits em estratégias lexicais e fonológicas e baixa recuperação de fatos numéricos. Além disso, a eficiência em estratégias lexicais/fonológicas e aritmética mental foram preditores significativos das diferenças individuais na conquista da leitura e da matemática, respectivamente. No estudo, não foram encontrados déficits em capacidades numéricas básicas na amostra.

Embora os déficits de leitura e processos subjacentes sejam mais frequentes, em metanálise, o déficit em aritmética e escrita (grande) foi maior do que em leitura (moderado) (Crow et al., 2022).

Conclusão

Em conjunto, esses achados sugerem uma interrupção dos processos de neurodesenvolvimento típicos na NF1, ressaltam a importância da neurofibromina no desenvolvimento normal do cérebro e demonstram que esforços devem ser feitos para avaliar e abordar a morbidade cognitiva em pacientes com NF1 em conjunto com as melhores práticas existentes.

 

Dificuldades cognitivas em pacientes com NF1, repercussões clínicas e transtornos do neurodesenvolvimento associados

 

Domínio cognitivo Habilidades específicas Magnitude do déficit* Características clínicas Transtornos de Neurodesenvolvimento Correlacionados
Inteligência QI Geral Alta Deficiência intelectual, problemas de aprendizagem, dificuldades laborais, dificuldades na resolução de problemas Deficiência intelectual, Atraso Global do Desenvolvimento
QI Verbal Alta
QI Executivo Alta
Perceptomotor Habilidades visuoespaciais Alta Dificuldades de orientação espacial, discriminação esquerda-direita, busca visual de informações, esquema corporal, coordenação motora reduzida. Dificuldades com conteúdo escolar visual (ex.: mapas, geometria, artes e gráficos). Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação, Transtorno Não-Verbal de Aprendizagem
Fluência não-verbal Moderada
Controle motor Moderada
Atenção Complexa Velocidade de processamento Moderada Dificuldades em estabelecer, manter e controlar o foco atencional. Nível de alerta/responsividade reduzido. Redução da velocidade de processamento (mental) e lentificação psicomotora (comportamento. Transtorno do Déficit de Atenção-Hiperatividade, Síndrome do Desengajamento Cognitivo (Sluggish Cognitive-Tempo)
Controle de interferência Moderada
Atenção sustentada Moderada
Linguagem e Comunicação Linguagem receptiva Moderada Dificuldades articular e expressar corretamente a linguagem. Problemas de compreensão na linguagem oral ou escrito. Dificuldades na comunicação social e interação com os pares. Transtorno da Linguagem, Transtorno da Fala, Gagueira, Transtorno da Pragmática (comunicação social).
Linguagem expressiva Moderada
Fluência verbal semântica Sem déficit
Fluência verbal fonêmica Sem déficit
Linguagem e Aprendizagem Memória de longo prazo (verbal) Sem déficit Dificuldades em recordar eventos recentes (episódios), problemas na junção de múltiplas informações na memória (conteúdo, local e tempo), dificuldades em manter informações mentalmente. Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade, Transtorno Específico de Aprendizagem (Dislexia e Discalculia)
Memória de longo prazo (não-verbal) Moderada
Memória de curto prazo (verbal) Sem déficit
Memória de curto prazo (não-verbal) Moderada
Funções Executivas Memória de trabalho (verbal) Moderada Dificuldades na resolução de problemas práticos no dia a dia. Desorganização, falta de planejamento, rigidez cognitiva, distratibilidade e procrastinação. Dificuldades no aprendizado de conteúdos complexos. Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade, Transtorno do Espectro Autista, Deficiência Intelectual e Atraso Global do Desenvolvimento.
Memória de trabalho (visuoespacial) Leve
Planejamento Moderada
Flexibilidade cognitiva Leve
Controle inibitório Leve
Tomada de decisão Sem déficit
Cognição Social Processamento emocional Leve Dificuldades no reconhecimento e interpretação de informações sociais e emocionais, dificuldades nos relacionamentos sociais. Transtorno do Espectro Autista, Transtorno da Pragmática
Percepção social Leve
Cognição social Moderada
Habilidades Escolares Matemática Alta Dificuldades no aprendizado e das habilidades escolares básicas (leitura, escrita e matemática). Redução da fluência de leitura e escrita. Dificuldades de compreensão de texto. Problemas na resolução de cálculos aritméticos e algébricos Transtorno Específico de Aprendizagem (Dislexia, Discalculia e Disgrafia)
Leitura Moderada
Escrita Alta

            Magnitude estimada com base nos resultados da metanálise de Crow e colaboradores (2022) e demais estudos referenciados neste capítulo.

           

Referências

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Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o cardiologista Jorge Sette, que tem nos auxiliado a compreender melhor os problemas cardiovasculares nas pessoas com NF1.

Agradecemos a sua participação com este texto bem fundamentado e atualizado.

Dr. Lor

 

 

Jorge Cavalcante Bezerra Sette

Cardiologista

 

Cerca de  4% das pessoas com NF1 apresentam uma complicação vascular importante que pode ser tratada com eficiência e para identificar esta complicação basta apenas uma ação muito simples, que pode salvar uma vida: medir a pressão arterial regularmente.

Um aumento relativamente recente da pressão arterial em pessoas com NF1, especialmente em crianças, jovens e adultos jovens, deve fazer o médico pensar em duas causas importantes: 1) a estenose da artéria renal e 2) um tumor chamado feocromocitoma.

Vejamos primeiro a estenose da artéria renal.

 

As artérias renais são vasos sanguíneos que levam o sangue aos rins, para que o sangue seja filtrado e algumas substâncias em excesso sejam eliminadas (por exemplo, ácidos e nitrogênio) na urina. Para que o sangue seja filtrado, é preciso que ele chegue aos rins com uma determinada pressão, que é fornecida pelo bombeamento do coração.

Em cerca de 2% das pessoas com NF1 pode ocorrer um defeito (chamado de displasia fibromuscular) na tubulação das artérias renais, que causa um estreitamento, o qual faz com que a pressão do sangue fique menor naquele rim que recebe o sangue da artéria estreitada. Como o sangue chega com menor pressão do que a necessária para a filtração, o próprio rim produz substâncias que forçam o aumento da pressão arterial.

O resultado desse estreitamento, então, é que a pressão arterial, aquela que deve ser medida com os aparelhos de pressão comuns durante os controles regulares anuais, aumenta acima dos limites normais para a idade, a estatura e o sexo da pessoa.

Se a pressão arterial permanecer aumentada durante muito tempo, o coração, os rins, as artérias cerebrais e as artérias dos olhos podem ser danificadas e problemas graves podem acontecer, como infarto no coração, incapacidade de os rins filtrarem o sangue,  derrames cerebrais e perdas na visão. Por isso, a hipertensão arterial deve ser tratada.

Felizmente, na NF1, há a possibilidade de tratarmos o defeito na artéria renal e assim a hipertensão pode ser curada em cerca de 75% das pessoas. O tratamento consiste na realização de uma angiografia, ou seja, num exame de imagem para visualizarmos o calibre e o formato das artérias renais, para comprovação do estreitamento e sua localização. Geralmente, faz-se um cateterismo por meio de anestesia local e passagem da sonda por uma das artérias das pernas.

Em seguida, durante o próprio procedimento do exame de imagem, na maioria dos casos, insufla-se um balão que consegue reestabelecer o fluxo de sangue ao rim. Caso haja alguma complicação, coloca-se um anel metálico especial de dilatação (stent) na região estreitada, recuperando-se parcialmente o calibre da artéria renal.

Este tratamento, a angioplastia trans luminal, deve ser o primeiro a ser tentado, pois apresenta  88% de bons resultados.

Quando o anel de dilatação não é possível ou não funciona, ou o estreitamento retorna, pode ser necessário o autotransplante do rim, ou seja, uma cirurgia que desconecta o rim da sua artéria obstruída e o reconecta a outra artéria sadia. Infelizmente, em alguns poucos casos, pode ser necessária a remoção de um dos rins para tratar a hipertensão.

Portanto, segundo o grupo da Dra. Rosalie Ferner, de Manchester (2011), o tratamento da hipertensão arterial secundária à estenose da artéria renal na NF1 é uma combinação de medicação anti-hipertensiva, angioplastia com balão da artéria renal e cirurgia.

Por isso tudo, a medida da pressão arterial é obrigatória, indispensável, fundamental e pode salvar uma vida em 2% dos pacientes com NF1 durante os controles anuais.

 

Outra causa de hipertensão: o feocromocitoma

 

A outra metade dos casos de hipertensão recente nas pessoas com NF1 acontece por causa do aparecimento de um tipo de tumor chamado feocromocitoma.

Este nome complicado, feocromocitoma, indica que é um tumor (oma) formado por células (cito) que são coradas (cromo) numa cor escura (feo). Estas células fazem parte do sistema nervoso, e ficam agrupadas na parte central de duas glândulas localizadas sobre os rins: as suprarrenais. Elas produzem alguns hormônios, incluindo a adrenalina, uma substância que todos conhecem ligada às emoções e aos exercícios, que ativa algumas funções no organismo, como o estado de alerta mental, os batimentos cardíacos e a produção de suor.

Nas pessoas com NF1, a deficiência de neurofibromina aumenta a chance de células do sistema nervoso e da pele crescerem desordenadamente formando tumores, por isso estas células produtoras de adrenalina também podem crescer mais do que o necessário, formando tumores em 2% das pessoas com NF1, em geral a partir dos 15 anos de idade, mas com maior frequência em torno dos 35 anos.

Quando ocorrem, os feocromocitomas geralmente são benignos (90%) e podem se apresentar com sintomas que significam o excesso de adrenalina no sangue. As pessoas com feocromocitomas podem apresentar sintomas em 50% das vezes e, quando apresentam, quase sempre são transitórios:

Os três principais sintomas são:

1)     Crises de aumento da pressão arterial em repouso ou hipertensão sustentada por vários dias;

2)     Palpitações (sensação de coração acelerado);

3)     Dor de cabeça – que pode ser leve ou intensa;

4)     Suor abundante sem relação com a temperatura do ambiente; pode estar acompanhada de tremor, fraqueza e falta de ar.

É importante lembrar que as crises de ansiedade, que afetam qualquer pessoa, inclusive aquelas com NF1, podem se manifestar exatamente com os mesmos sinais e sintomas, o que às vezes faz passar desapercebido um feocromocitoma.

Suspeitando da presença deste tumor, devemos medir a produção dos derivados da adrenalina na urina colhida durante 24 horas, chamadas de catecolaminas urinárias (ácido vanilmandélico, adrenalina, noradrenalina, metanefrina). Este exame é mais confiável quando a urina é colhida durante os sintomas acima.

Quando o exame urinário vem positivo, o próximo passo é realizar exames de imagem para localizar o tumor para guiar o tratamento cirúrgico. Em casos em que a suspeita clínica seja alta, mas o exame de urina esteja normal, outros exames são necessários. Os mais sensíveis são a ressonância magnética e a tomografia computadorizada com a emissão de pósitrons (PET CT), capazes de descobrir mesmo os menores tumores de até 1 cm. Este último exame pode auxiliar na descoberta de feocromocitomas também localizados fora do local mais comum que são as suprarrenais, como, por exemplo, no intestino, onde são chamados de tumores carcinoides.

A maioria dos feocromocitomas ocorre nas glândulas suprarrenais, mas 10% deles podem ocorrer nos intestinos, na artéria aorta (no arco aórtico ou no órgão de Zuckerkandl) e no mediastino.

Confirmada a presença do feocromocitoma (ou dos carcinoides), estamos diante de uma urgência de tratamento, que deve ser realizado por profissionais experientes neste problema.  O tratamento é cirúrgico e envolve uma preparação de cerca de 7 dias para conter os efeitos da adrenalina em excesso (com bloqueadores alfa e beta) antes da retirada dos tumores, que podem estar presentes em ambos os rins.

É preciso lembrar que os feocromocitomas ignorados podem ameaçar a vida, especialmente durante cirurgias e durante a gravidez.

Os casos mais graves, quando os feocromocitomas são malignos (10%), devem ser tratados com cirurgia e quimioterapia associada.

Mais uma vez, lembramos que é importante medir a pressão arterial de todas as pessoas com NF1 regularmente e, também, não esquecer de questionar os pacientes sobre os principais sintomas que possam dar pista ao diagnóstico (dor de cabeça, palpitação e suor aumentado).

 

E quando a pressão está aumentada sem uma causa definida na NF1?

 

Como vimos acima, as pessoas com NF1 correm maior risco de apresentarem dois problemas que causam aumento da pressão arterial: displasia da artéria renal (com estenose ou obstrução do fluxo de sangue para um ou os dois rins) e feocromocitoma (um tumor capaz de produzir adrenalina).

No entanto, um estudo procurou saber se as crianças com NF1 apresentam pressão arterial maior do que a população infantil sem a doença (ver aqui artigo em inglês: AQUI ).

O grupo orientado por Shay Ben-Shachar mediu a pressão arterial 3 vezes em 224 crianças com NF1, metade meninas, com idade em torno de 9 anos. Os resultados da pressão arterial foram classificados de acordo com a idade, o sexo e o percentil da altura de cada uma delas, em normais (menor do que o percentil 85%), pré-hipertensos (entre os percentis 85 a 95%) e hipertensos (maior que o percentil 95%).

Os resultados mostraram que em torno de 13% das crianças com NF1 eram pré-hipertensas e outras 13% eram hipertensas, o que significa que a hipertensão arterial é dez vezes mais frequente em crianças com NF1 do que na população em geral.

Outro achado importante do estudo foi que a hipertensão era maior na primeira medida (20%) do que na terceira, por isso devemos repetir a medida quando encontramos valores altos da primeira vez.

As condições do estudo não permitiram aos autores confirmar ou excluir as alterações vasculares nas crianças com hipertensão, assim, ainda não sabemos a definição exata da causa da hipertensão arterial nas crianças com NF1, mas levantaram a hipótese de que a pressão arterial aumentada faça parte das características da NF1. Esta hipótese merece ser mais estudada no futuro.

De qualquer forma, este estudo confirma e aumenta a necessidade de vigilância sobre a pressão arterial de pessoas com NF1, pois se não for tratada a hipertensão arterial pode causas complicações, inclusive fatais.

Portanto, não se esqueça de medir a pressão arterial pelo menos uma vez por ano.

 

 

A psicóloga Mirela Zeoula Brito trouxe sua pergunta sobre se deve ou não submeter sua filha com NF1 ao tratamento chamado ABA, habitualmente recomendado (ver aqui) para pessoas com Transtorno no Espectro do Autismo (TEA).

Considero difícil definir numa criança com NF1 se determinados comportamentos neuro-atípicos – e semelhantes aos comportamentos encontrados em crianças com TEA – seriam decorrentes das displasias do sistema nervoso causadas pela NF1 ou seriam causados por um TEA independente e associado à NF1.

Por causa desta semelhança e da falta de tratamento específico para a NF1, alguns profissionais da saúde recomendam a terapia ABA (Análise Aplicada ao Comportamento) para as crianças com NF1.

Fiz hoje uma nova consulta à literatura científica para saber se surgiu algum estudo sobre o uso da terapia ABA nas crianças com NF1 e não encontrei.

Portanto, não posso recomendar com base científica o método ABA para crianças com NF1.

Diante disso, a pergunta que geralmente me fazem é se, pelas semelhanças dos comportamentos da NF1 com o TEA, o método ABA poderia funcionar nas crianças com NF1.

Então, precisamos saber se o método ABA funciona realmente para as crianças com TEA.

Dois estudos prospectivos, que resumo abaixo, trazem algumas informações importantes sobre isso.

Um artigo compara dois métodos ABA e PRT (clique aqui para o artigo completo em inglês)

Embora os procedimentos estruturados de ABA sejam eficazes na produção de mudanças comportamentais em uma ampla variedade de áreas, os estudos mostram três grandes dificuldades encontradas com a intervenção:

  • os ganhos são extremamente lentos (muitas vezes exigindo muitos milhares de tentativas para ensinar uma única palavra);
  • quando ocorrem ganhos, eles geralmente não generalizam;
  • as crianças geralmente não estão motivadas para se envolver nas sessões de ensino, frequentemente exibindo comportamentos disruptivos e fuga.

Consequentemente, as abordagens ABA para intervenção geralmente exigem muitas tentativas apresentadas repetidamente para que as crianças mostrem algum benefício. Isso pode ser extremamente demorado para todos os envolvidos.

Um outro tratamento, denominado de Tratamento de Resposta Central (Pivotal Response Treatment) baseia-se em princípios de ensino operante e tem sido usado para atingir uma ampla gama de déficits, incluindo habilidades sociais e comunicação.

O PRT é uma abordagem de intervenção baseada nos princípios comportamentais da ABA, mas que inclui métodos para melhorar a capacidade de resposta, a taxa de resposta e o afeto positivo das crianças.

Esses métodos incluem:

  • a escolha da criança
  • a variação de tarefas
  • a intercalação de testes de manutenção e aquisição
  • tentativas de reforço
  • o uso de consequências naturais diretas

Num estudo prospectivo com dois grupos de crianças com TEA, essas técnicas foram mais eficazes do que o método ABA, e os resultados mostraram melhor resposta das crianças com a técnica de PRT.

 

Vejamos outro estudo (clique aqui) que também comparou PRT e ABA.

Crianças com autismo geralmente demonstram comportamentos perturbadores durante tarefas de ensino exigentes. A intervenção linguística pode ser particularmente difícil, pois envolve áreas sociais e comunicativas, que são desafiadoras para essa população.

O objetivo deste estudo foi comparar duas condições de intervenção: uma abordagem naturalista, o Tratamento de Resposta Central (PRT) com uma abordagem ABA sobre comportamento disruptivo durante intervenção de linguagem nas escolas públicas.

Utilizou-se um desenho de ensaio clínico randomizado com dois grupos de crianças, pareados de acordo com idade, sexo e duração média da intervenção.

Os dados mostraram que as crianças apresentaram níveis significativamente mais baixos de comportamento disruptivo durante a condição de PRT, sugerindo que este método possa ser mais útil na redução do comportamento disruptivo.

Portanto, ficam aqui estas reflexões sobre métodos de tratamento dos comportamentos do TEA (ou semelhantes ao TEA) nas crianças com NF1.

Espero que novos estudos sobre terapias para crianças com NF1 e comportamentos semelhantes ao TEA sejam realizados com urgência, pois elas são muitas e precisamos cuidar delas.

Dr Lor

 

Nos posts anteriores falamos sobre o possível excesso de diagnósticos de transtornos do comportamento, sobre o papel da família e da sociedade nestes transtornos e sobre a incerteza que existe nos manuais de diagnóstico de transtornos mentais.

Hoje concluímos nossa apresentação sugerindo algumas abordagens para as crianças com o TDDH.  Ainda não há um tratamento específico para esse transtorno, mas as sugestões dos Manuais  são:

  • A avaliação psicológica e psicoterapia deve ser a primeira abordagem da criança com suspeita de TDDH;
  • Os pais e mães (e quem mais for responsável por criar a criança) também devem participar de psicoterapia (para aprender a manejar seus próprios impulsos e raiva) e receber treinamento adequado para serem instrutores de suas crianças, e ajudarem no desenvolvimento do autocontrole e de manejos dos gatilhos que desencadeiam as crises;
  • A abordagem da hiperatividade com medicamentos pode ser útil, mas não é sempre eficaz (e nas crianças com NF1 a eficácia desses tratamentos é ainda menos estabelecida cientificamente: ver um estudo aqui e outro aqui).
  • Não há ainda estudos científicos que justifiquem o uso de estimulantes do sistema nervoso (por exemplo, metilfenidato) associados a antipsicóticos (risperidona, por exemplo).

Por fim, mas não por último, todas estas medidas serão pouco eficientes se não transformarmos a estrutura familiar, a escola e a sociedade num mundo com menos competição, menos foco em obediência e mais guiado pela felicidade humana e não pelo lucro e produtividade.

Crianças e adolescentes precisam de liberdade sem medo, de corpos e mentes livres, pelo menos um pouco longe das telas e das redes sociais, com atividades físicas lúdicas e prazerosas. Precisam também de alegria de viver e de esperança num futuro melhor, em um mundo menos desigual, mais justo e inclusivo.

Há muitos movimentos, de grupos da sociedade que estão preocupados com o futuro, que podem nos ajudar a mudar nossas ações hoje, apontando novos caminhos, como o Movimento Desconecta (https://www.movimentodesconecta.com.br/), o Movimento Infância Livre de Consumismo (https://milc.net.br/) e a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável (https://alimentacaosaudavel.org.br/).

E nós, pais e mães dos tempos atuais, precisamos encontrar mais leveza e mais alegria na nossa convivência em família e na educação de nossos filhos e filhas, pois eles crescem rápido demais, especialmente se estivermos muito ocupados trabalhando, alheios ao presente, muito distraídos pelos nossos celulares e muito preocupados com o futuro adulto que um dia eles serão (veja um livro interessante sobre gestão do tempo aqui https://a.co/d/8DvIxR6).

Talvez, nesse novo mundo, que podemos construir com as ações de hoje e de cada dia, serão mais raras as crianças e adolescentes (e talvez os adultos) com TDDH, depressão, TDAH, TOD etc… ?

Dra. Luiza De Oliveira Rodrigues

Dr. Luiz Oswaldo C. Rodrigues

Agradecemos as leituras atentas e sugestões de Fabiana Amélia Reis Pantuzza, Felipe Pantuzza Santana , Maria Helena Rodrigues Vieira, Marcos Vinícius Soares Vieira e Rafael Cosenza.

 

Nos posts anteriores falamos sobre o possível excesso de diagnósticos de transtornos do comportamento, sobre o papel da família e da sociedade nestes transtornos e sobre a incerteza que existe nos manuais de diagnóstico de transtornos mentais.

Com estas perguntas em mente, vamos tentar compreender melhor o Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor (TDDH) (ver artigo aqui em inglês), a partir da leitura de uma revisão sobre esse transtorno.

Lembramos que esta é uma revisão do tipo”narrativa” e não “sistemática” (quem desejar saber a diferença, veja aqui  o que isso quer dizer).

É importante ressaltar que, o Manual Americano de Desordens Mentais (DSM) agrupou o (TDDH) junto com os transtornos do humor (dentro do grupo de Transtornos Depressivos) e não com os transtornos do Neurodesenvolvimento (como o TDAH ou TEA) ou os Transtornos de conduta, disruptivos e de controle de impulsos (como o TOD).

O diagnóstico do TDDH pode ser feito a partir dos critérios apresentados na tabela abaixo.

 

Tabela  – Sinais e sintomas para o diagnóstico de Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor (American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5 edição, Washington, DC, 2013).

  • Surtos frequentes e graves de raiva (verbais ou comportamentais) desproporcionais à provocação.
  • Os surtos são inadequados para a idade da criança.
  • Ocorrem 3 ou mais vezes por semana.
  • O comportamento habitual entre os surtos é continuamente irritado ou raivoso a maior parte do dia, quase todos os dias e são percebidos por outras pessoas.
  • Este problema tem duração maior que 12 meses, sem intervalo..
  • Estes comportamentos estão presentes em dois ou mais destes ambientes: em casa, na escola e com crianças da mesma idade) e são graves, pelo menos em um destes ambientes.
  • O início dos problemas está presente desde antes dos dez anos de idade.
  • O diagnóstico não é feito antes dos 6 e nem depois dos 18 anos.
  • Sintomas de comportamento bipolar típico (mania ou depressão) não duram mais do que um dia.

Observação: para se fazer o diagnóstico de TDDH, a criança não pode apresentar outros diagnósticos já definidos, como depressão grave, distimia, transtorno no espectro do autismo, desordem de estresse pós-traumático, desordem de ansiedade de separação, transtorno bipolar, desordem explosiva intermitente ou transtorno desafiador opositor e os sintomas não são decorrentes de efeitos de uso de drogas ou problemas neurológicos.

 

Lembrar que os sintomas de TDDH podem estar presente em outros problemas, por exemplo: com o diagnóstico de transtorno depressivo maior (TDM), transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno de conduta (TC) e transtorno por uso de substância (TUS). Aliás, o manual informa que é raro o diagnóstico isolado dessa condição.

Quantas crianças têm TDDH?

Como o transtorno só foi descrito recentemente, as informações não são muito precisas. Por exemplo, há relatos de que poderia estar presente em 1 a cada 100 crianças na população em geral, mas poderia acontecer em até 1 em cada 4 crianças atendidas por problemas de comportamento.

O que causa o TDDH nas crianças?

Ainda não sabemos exatamente. Os estudos genéticos ainda não encontraram hereditariedade definida, embora a presença de outras doenças mentais na família poderiam contribuir para o aparecimento do TDDH.

Ainda não foram realizados muitos estudos específicos (incluindo ressonância magnética funcional) em crianças classificadas com o TDDH. Dados preliminares sugerem que há uma resposta excessiva aos estímulos emocionais numa parte do cérebro chamada “amígdala”. Por exemplo, uma expressão facial neutra pode ser interpretada como sendo agressiva pela criança com transtorno de humor importante (ver estudo sobre isso aqui).

 

Amanhã, concluiremos nossa apresentação apresentando sugestões para o tratamento das crianças com o possível TDDH.

 

Dra. Luiza De Oliveira Rodrigues

Dr. Luiz Oswaldo C. Rodrigues

Agradecemos as leituras atentas e sugestões de Fabiana Amélia Reis Pantuzza, Felipe Pantuzza Santana , Maria Helena Rodrigues Vieira, Marcos Vinícius Soares Vieira e Rafael Cosenza.

 

 

 

Nos posts anteriores falamos sobre a possibilidade de excesso de diagnósticos e sobre o papel das famílias e da sociedade nos transtornos mentais das crianças.

Hoje, vamos falar sobre os manuais internacionais de doenças mentais (DSM), que apresentam muitos rótulos para doenças que se confundem nos limites, porque os sintomas são parecidos.

Por exemplo, o Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor (TDDH) apresenta sintomas semelhantes ao Transtorno no Espectro do Autismo (TEA), ao Transtorno Bipolar (TBP) e ao Transtorno Opositor Desafiador (TOD).

Assim, são muitos rótulos e muitas “patologias” com sintomas em comum, com critérios diagnósticos que se confundem e com tratamentos medicamentosos semelhantes: estimulantes do sistema nervoso, antipsicóticos e estabilizadores do humor.

Qual é a verdadeira utilidade de separar os comportamentos das crianças em tantas caixas diferentes porém tão parecidas?

Se elas tivessem causas diferentes e bem conhecidas, as quais pudessem ser tratadas diretamente, poderia fazer sentido separá-las. Mas, a medicina ainda não sabe completamente a causa da maior parte dessas “doenças” e estamos, em geral, tratando somente os sintomas, com os mesmos “remédios”.

Algumas “novas” doenças mentais são mais divulgadas que outras, e parecem ser justamente aquelas tratadas com um medicamento caro (ver aqui nossas dúvidas sobre a indústria farmacêutica).

Inclusive, um dos principais autores do artigo de revisão do TDDH, que comentaremos a seguir, é justamente um psiquiatra que tem ligações profissionais com indústrias que produzem o medicamento metilfenidato, utilizado para ajudar a tratar os sintomas de hiperatividade e desatenção. Portanto, poderia haver interesse pessoal dele em promover o tratamento medicamentoso das crianças com este medicamento?

Amanhã continuaremos nossa discussão sobre problemas de comportamento em nossas crianças, abordando o novo diagnóstico denominado TDDH.

 

Dra. Luiza De Oliveira Rodrigues

Dr. Luiz Oswaldo C. Rodrigues

Agradecemos as leituras atentas e sugestões de Fabiana Amélia Reis Pantuzza, Felipe Pantuzza Santana , Maria Helena Rodrigues Vieira, Marcos Vinícius Soares Vieira e Rafael Cosenza.

 

Ontem iniciamos nosso debate sobre transtornos de comportamentos nas crianças e discutimos se estamos vivendo um excesso de diagnósticos de problemas de comportamento.

Hoje, continuamos este assunto perguntando: é possível avaliar a saúde mental das crianças sem envolver sua família e sem levar em conta sua história de vida e a sociedade na qual elas vivem?

Como se diz, é preciso uma vila inteira para criar uma criança.

Sabemos que as doenças mentais são resultado de situações genéticas, sociais, econômicas e históricas. Assim, talvez essas “novas doenças” das crianças sejam um dos resultados das formas de viver que temos adotado, com mais competição, individualismo e todas as pessoas sequestradas pelas telas e redes sociais.

Talvez as crianças estejam percebendo e reagindo subconscientemente à insegurança de um mundo a caminho da crise climática (elas vêem as enchentes trágicas!), com aumento das desigualdades sociais, com menor oportunidade de emprego e ameaçado por guerras nucleares. Será que o caminho para entendermos os problemas de comportamento das crianças pode ser outro, que as ajude a compreender melhor a realidade difícil que estamos vivendo?

É possível esperarmos dos consultórios de neuropediatria e neuropsicologia uma abordagem mais fenomenológica, considerando o comportamento da criança dentro do seu contexto afetivo, familiar e social?

Quem sabe esta abordagem será mais útil, tanto para compreender quanto para tratar os sintomas da desorganização emocional e os transtornos do desenvolvimento das crianças?

Abordagens que incluam olhares mais amplos, para outras formas de lidar com as dificuldades das crianças, assumindo para nós mesmos, enquanto sociedade (família, amigos e amigas, médicos e médicas, escola), a responsabilidade de transformar o entorno da criança em um lugar mais generoso, aberto e divertido, ao invés de somente tentarmos encaixá-la no comportamento que se espera dela.

Amanhã continuaremos a falar de transtornos do comportamento infantil e abordaremos os “rótulos” que têm sido dados às nossas crianças pela medicina e pela psicologia.

 

Dra. Luiza De Oliveira Rodrigues

Dr. Luiz Oswaldo C. Rodrigues

Agradecemos as leituras atentas e sugestões de Fabiana Amélia Reis Pantuzza, Felipe Pantuzza Santana , Maria Helena Rodrigues Vieira, Marcos Vinícius Soares Vieira e Rafael Cosenza.

 

 

 

 

 

Muitas crianças com NF1 apresentam dificuldades de aprendizado e de comportamento, o que tem merecido nossa atenção, e por isso disponibilizamos uma cartilha sobre este assunto (ver aqui).

Entre os problemas de comportamento, algumas crianças apresentam uma mistura de “mal humor (irritabilidade crônica), desatenção, hiperatividade, surtos de agressividade (verbal ou física) e comportamento desafiador e opositivo, com desobediência e teimosia frequentes”.

Uma destas famílias perguntou-nos se este conjunto de comportamentos seria o Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor (TDDH), um diagnóstico incluído nos manuais psiquiátricos internacionais desde 2013.

Se uma criança está apresentando esses sintomas de forma frequente e intensa, prejudicando o seu bem estar e a integração social, é importante uma avaliação clínica e psicológica para orientar a criança, sua família, a escola e demais pessoas envolvidas.

No entanto, antes de avançarmos na descrição deste novo diagnóstico, queremos levantar 3 perguntas importantes, que discutiremos hoje e nos próximos dias.

 

 

A primeira delas é: será que há um excesso de “diagnósticos” de problemas de comportamento em crianças?

Será que estamos diagnosticando em excesso o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o Transtorno no Espectro do Autismo (TEA), o Transtorno Desafiador Opositor (TOD), entre outros? (ver aqui um texto sobre isso: está em inglês, mas o tradutor automático do seu navegador de internet pode ser usado).

Há crianças, adolescentes e adultos que, de fato, têm comportamentos que prejudicam sua vida em sociedade (na família, com amigos e amigas, na escola, no trabalho etc.), algumas delas com graves problemas psiquiátricos e neurológicos. Estas pessoas precisam ser compreendidas e tratadas adequadamente, inclusive aquelas com NF1.

Mas, pode estar havendo também um excesso desses diagnósticos, que “explicam” as coisas, que acham uma “causa” (ou um responsável) e oferecem a possibilidade de um “tratamento” (especialmente medicamentoso).

É sobre esses excessos que nós nos interrogamos.

Há profissionais da educação que consideram que o sistema educacional onde estão nossas crianças é organizado para preparar pessoas dóceis e obedientes, para serem os futuros trabalhadores, a serviço da manutenção do funcionamento da nossa sociedade como nós a conhecemos, ou seja, para dar continuidade ao modo de produção no sistema capitalista (ver aqui).

Nesse tipo de escola, prefere-se a obediência, a instrução tecnológica e a restrição dos corpos do que a liberdade e a criatividade cultural. Assim, neste sistema de educação, as crianças mais ativas, independentes, autônomas, que precisam aprender também com a inteligência do corpo (como os atletas), podem ser percebidas como desobedientes, desafiadoras e hiperativas (ver aqui).

Se a obediência for o objetivo da educação (e achamos que ela não deveria ser), a desobediência então se torna um problema. Pense bem: quando você diz a uma criança, por exemplo, para ela calçar seus sapatos (para vocês saírem de casa), e ela se recusa, o objetivo real não é que ela te obedeça, e sim que ela calce os sapatos. Mas nós brigamos com a criança porque ela não nos obedece e deixamos de tentar outras maneiras diferentes de se conseguir esse mesmo objetivo.

Será que um pouco do excesso de diagnósticos médicos e psicológicos vem daí? Pois “tratar” algum “transtorno” nestas crianças seria mais “fácil” do que mudarmos o sistema de ensino das nossas sociedades ou a maneira como criamos nossos filhos e filhas?

Amanhã continuaremos este assunto, lembrando o papel da família nos transtornos de comportamento das crianças.

 Dra. Luiza De Oliveira Rodrigues

Dr. Luiz Oswaldo C. Rodrigues

Agradecemos as leituras atentas e sugestões de Fabiana Amélia Reis Pantuzza, Felipe Pantuzza Santana , Maria Helena Rodrigues Vieira, Marcos Vinícius Soares Vieira e Rafael Cosenza.

 

 

Nossa equipe médica no CRNF é frequentemente procurada por famílias com suspeita de neurofibromatose.

Na maioria das vezes, são pessoas que apresentam apenas manchas café com leite (com ou sem sardas) e SÃO GERALMENTE CRIANÇAS. Assim, nossa primeira impressão nessa faixa etária é de neurofibromatose do tipo 1 (NF1) ou Síndrome de Legius (gene SPRED1).

Para esclarecer a possível herança genética de manchas café com leite ainda sem outro critério diagnóstico, a resposta clinicamente mais segura para as famílias é investigarmos as duas maiores probabilidades de genes capazes de produzir manchas café com leite em crianças: NF1 e SPRED1.

Nestas circunstâncias, faz pouco sentido pedir a análise do gene NF2 (cujas variantes patogênicas produzem a doença antes chamada de Neurofibromatose do tipo 2 – atualmente denominada de Schwannomatose relacionada ao gene NF2). Porém, o painel genético habitual oferecido nos diversos laboratórios tem sido analisar um painel com os genes NF1, SPRED1 e NF2.

Sabemos que manchas café com leite também podem ocorrer, mais raramente e em menor quantidade, em pessoas com Schwannomatoses relacionadas aos genes NF2, LZTR1 ou SMARCB1 (ver nova nomenclatura para estas doenças aqui).

No entanto, as demais manifestações das Schwannomatoses (tumores etc.) ocorrem geralmente a partir da segunda década de vida, ou seja, em ADULTOS JOVENS e nem todas as pessoas portadoras de variantes patogênicas terão que expressar a doença, ao contrário do que acontece na NF1 e na Síndrome de Legius (SPRED1).

Assim, diante de pessoas jovens e adultas com suspeita de “neurofibromatose”, geralmente a nossa hipótese diagnóstica é de Schwannomatose e, nesse caso, a análise genética mais adequada será um painel com os genes NF2, SMARCB1 e LZTR1.

Portanto, não há benefícios evidentes uma criança ou sua família saber que ela possui alguma variantes patogênicas para Schwannomatoses (apenas por causa da presença isolada de manchas café com leite), uma vez que as outras manifestações da doença, SE vierem a surgir, ocorreriam décadas depois, quando, inclusive, poderemos ter tratamentos mais eficientes para essas doenças, o que ainda não dispomos.

Em conclusão, para esclarecimento diagnóstico, nossa sugestão é que sejam solicitados PAINÉIS diferentes, com os seguintes genes:

Para crianças com suspeita de NF1 ou Légius, solicitar PAINEL NF1-LEGIUS (genes NF1 e SPRED1)

Para pessoas jovens e adultas, sem suspeita de NF1 ou Legius, solicitar PAINEL SCHWANNOMATOSES (genes NF2, LZTR1 e SMARCB1).

Em certas situações MAIS RARAS, especialmente quando os resultados destes testes vierem negativos, precisamos considerar outras possibilidades diagnósticas que seriam as chamadas RASOPATIAS. Falarei sobre estas doenças em breve.

Qualquer dúvida, entrem em contato conosco.

Dr Lor