Recebi o convite (ao lado) para o lançamento de uma nova iniciativa de apoio para pessoas com Doenças Raras, a Linha Rara, que segundo os organizadores é a continuação de um trabalho que vem sendo desenvolvido em Portugal.

Penso que todas as iniciativas destinadas a tornarem as doenças raras mais conhecidas pelas pessoas afetadas e pelos profissionais da saúde devem ser apoiadas. Para apoiarmos de forma consciente senti necessidade de conhecer melhor a Linha Rara.

Como sou dedicado às Neurofibromatoses e não estou suficientemente familiarizado com as outras doenças raras, fiz algumas perguntas sobre a Linha Rara para o Rogério Lima Barbosa, fundador da Associação Maria Vitoria de Doenças Raras (AMAVI), que está realizando seu doutorado em sociologia na Universidade de Coimbra justamente sobre este tema.

Rogério gentilmente respondeu e trouxe diversas informações interessantes sobre a Linha Rara, que podem ser úteis ao acolhimento das pessoas com Doenças Raras, incluindo as Neurofibromatoses.



LOR – Você conhece a Linha Rara e o trabalho do grupo de pessoas e apoiadores desta iniciativa? 


Rogério – Primeiramente, quero agradecer por trazer um assunto central nas minhas pesquisas a partir do exemplo deste convite. É preciso destacar que as associações civis atuam de acordo com as ferramentas que encontram e considerando os outros atores interessados no campo das doenças raras, como a indústria farmacêutica, o governo e os cientistas.

As associações de pessoas com doenças raras começam a atuar sem perseguirem qualquer outro objetivo além de se ajudarem uns aos outros, a partir de uma experiência pessoal de compartilhamento de realidades semelhantes. Portanto, parabenizo às pessoas que se aventuram nesse campo.

Sim, conheço o trabalho dessas associações que realizaram o convite da Linha Rara.

A “Raríssimas” é uma instituição com sede em Portugal e possui a filial brasileira ancorada em São Paulo. Se considerarmos a forma de atuação dessa instituição, os veículos de comunicação que utilizam e a própria estrutura das suas páginas na internet percebemos uma forte tendência para o estilo empresarial de trabalho. Este modelo tem como inspiração a Eurordis, a organização europeia mais influente no assunto específico da doença rara. Como esse modelo é muito diferente da grande maioria das associações civis, pesquisadores sociais de Coimbra e de Paris, as denominam como Organizações de Pacientes.



LOR – Como esta iniciativa está funcionando em Portugal?


Rogério – A Linha Rara já existe em Portugal desde 2009, e já ganhou alguns prêmios europeus, como o Mãos Dadas, destinado ao reconhecimento de boas práticas de empreendedorismo social e de liderança na comunidade. Esse prêmio é uma iniciativa da Associação Portuguesa de Criatividade e Inovação.

Como uma forma de verificar o trabalho realizado em Portugal, por esses dias, fiz um contato com a Linha Rara, uma vez que estou em Coimbra. O atendimento não foi diferente do que eu já esperava e pareceu um tanto disperso. A pessoa que me atendeu desconhecia as Neurofibromatoses e, claramente, realizava algumas pesquisas enquanto conversava comigo ao telefone.

A impressão de que o atendente desconhecia o cuidado para a Neurofibromatose foi corroborada pela indicação que as informações sobre a NF seriam encaminhadas para o meu e-mail no prazo de uma semana. Eu desliguei o telefone sem qualquer orientação que me ajudasse no entendimento do diagnóstico ou na busca por tratamento.

Ontem, no dia limite para enviarem as prometidas informações, recebi uma mensagem comunicando que eu devo aguardar mais alguns dias porque o meu pedido “encontra-se em avaliação por parte da nossa Equipa Técnica. ”

Bem, se em Portugal, que é a inspiração brasileira, o serviço deixou a desejar, não consigo pensar que será diferente no Brasil. O nosso país é quase 20 vezes maior que Portugal, ao considerarmos a população, e 92 vezes maior em termos territoriais. Podemos estar à beira de um caso de frustrações bem maiores.

LOR – Qual é o tipo de orientação que eles fornecem?

Rogério – Aqui em Portugal, parece-me que a Linha Rara tem preferência por encaminhar as pessoas à Casa de Marcos, que é o Centro de Referência deles. Veja que é preferência e não uma obrigação. Essa iniciativa possui o apoio do governo português e, além de manter pessoas carentes em suas instalações, busca realizar um atendimento multiprofissional para pacientes e familiares.

Por outro lado, este procedimento tem uma outra face. Também serve como um mecanismo para conhecer, identificar e localizar as que possuem algum diagnóstico de doenças raras. Ao considerarmos a corrida empresarial para a construção dos chamados “biobancos” (informações de pessoas sobre suas condições de saúde e doenças) e o aumento do interesse sobre o campo das mutações genéticas, reunir os dados de pessoas com doenças raras é uma das formas de facilitar a comercialização de medicamentos. 



LOR – Então há uma relação direta entre esta instituição e os laboratórios farmacêuticos?


Rogério – Sim. Em Portugal e outros países da Europa, não há qualquer constrangimento em informar quais são os parceiros comerciais destas associações de pessoas com condições genéticas raras. Na Europa, como na entidade denominada Eurordis, que é a associação mais influente sobre o tema específico das doenças raras, podemos encontrar as informações sobre as parcerias que acontecem tanto com os maiores laboratórios farmacêuticos e grandes empresas privadas quanto com o governo português. O mesmo acontece com a Raríssimas (ver aqui: http://www.rarissimas.pt/pt/conteudo/150/103/parceiros-e-apoios ).

Disponibilizar esta informação é importante porque aumenta a transparência e fomenta o diálogo coletivo.



LOR – E no Brasil, também é assim?


Rogério – Creio que não. Ao visitar o site de muitas associações civis brasileiras de doenças raras não conseguimos ver as parcerias que são firmadas para a angariação de recursos financeiros.

O curioso é que toda pessoa que começa a participar do campo das doenças raras logo descobre que quanto mais próximo da venda de remédios, mais rápida é a busca do diálogo por parte das indústrias Farmacêuticas.

Assim, a relação entre essas organizações de pacientes e o mercado é quase que uma coisa natural. Por isso, ao vermos sites, como o do Instituto, e as ações como a do convite da Linha Rara, a pergunta que surge é: com quais recursos financeiros eles conseguem essa estrutura ou para fazer tantas atividades?

Diferente do que acontece na Europa, no Brasil não conseguimos ver as parcerias institucionais das organizações de pacientes com o mercado. Isso é facilmente constatado ao visitarmos os sites de organizações como a do Instituto e acessarmos o link que indica as parcerias. A indicação de parcerias com o mercado é nula ou muito pouca. No entanto, vemos uma série de logomarcas de representantes de associações civis e, algumas vezes, a logomarca de alguma secretaria de saúde.

E essa divulgação não é desprovida de interesses. Por exemplo, o uso das logomarcas de associações pretende demonstrar legitimidade da organização. Fica confuso e as informações não batem, porque ao mesmo tempo que algumas organizações brasileiras buscam apresentar uma suposta riqueza, elas não possuem a mesma preocupação para divulgarem o como conseguem suportar os seus gastos. Para uma associação, que tem a finalidade de representar a sociedade civil, parece-me um problema importante.

Em nosso caso, se voltarmos ao exemplo do Instituto que realiza o convite para o evento da Linha Rara, ao visitarmos o seu site não encontramos qualquer indicação do apoio financeiro que recebem (ver aqui: http://www.vidasraras.org.br/site/vidas ) Esse é um exemplo que pode ser encontrado em diversas outras associações.

A visão do Brasil como um mercado atraente para a indústria farmacêutica, foi muito bem demonstrado na apresentação do representante da Multinational Partnership LLC, realizada no II Congresso Ibero-americano de Doenças Raras, em Brasília, no ano passado, em que ele afirmou: a América Latina é o lugar para as doenças órfãs!

Em uma notícia no site da Febrafar (Federação Brasileira das Redes Associativas e Independentes de Farmácias), vemos que o mercado das drogas para doenças raras é um mercado disputado pelas indústrias. Portanto, o discurso de que a indústria não possui interesse no campo das doenças raras é antigo e não corresponde à realidade.

Outro ponto que observamos é a limitação da pluralidade das organizações como a da Linha Rara. Num universo onde existem mais de cinco mil doenças raras, no link destinado a Síndromes Raras, não há indicação para muitas outras condições genéticas como, por exemplo, as Neurofibromatoses, as quais são as doenças monogenéticas mais comuns entre os seres humanos.

LOR – Então, qual seria o objetivo final da Linha Rara?



Rogério – Dentro deste cenário o qual o Brasil é apenas coadjuvante nas decisões, mas é o “alvo” da comercialização, ou seja, as atenções são para a venda de medicamento. Vivemos os planos realizados no início da década, quando a indústria farmacêutica começou a divulgar o seu interesse no campo das doenças raras, com as projeções de venda para o período entre 2012 e 2018 superiores e em o dobro das projeções previstas para os medicamentos prescritos, excluindo os genéricos.


LOR – Qual é a perspectiva futura?


Rogério – Hoje, observamos que a entrada desta associação internacional em um cenário brasileiro pode desestabilizar o fortalecimento das diversas associações de doenças raras que lutam por uma saúde pública abrangente e eficiente, inviabilizando a criação de uma rede de cuidado e de informação para o paciente.

Como as organizações civis (ao estilo da Eurordis ou da Raríssimas) agem em busca do lucro, são fundamentalmente diferentes da maioria das associações de pacientes. Enquanto estas últimas baseiam-se na promoção de atividades associativas em benefício das pessoas que dizem representar, aquelas focam em atividades que podem apoiar as pessoas que dizem representar, mas que devem gerar lucro para a sua estrutura e as pessoas que a formam. Portanto, para não replicarmos a cisão entre as associações, o que aconteceu na Europa, é preciso fortalecer os laços associativos no Brasil.

Isso quer dizer que precisamos encontrar o fortalecimento entre as associações e a divulgação de ações que já existem como, por exemplo, o 0800 do Instituto Canguru.

Utilizei esse canal quando minha família recebeu o diagnóstico de Neurofibromatose, em 2010, e fui muito bem acolhido. Eles fazem um excelente trabalho e estivemos em várias atividades em conjunto. 



LOR – Mas é possível mudar esta situação desfavorável para a maioria das doenças raras?


Rogério – É claro que sim. O primeiro passo é conhecermos a nós mesmos. Além de todo o cenário internacional que persegue o nosso país para a venda de drogas órfãs, precisamos enxergar que esse interesse somente existe por causa de nossas virtudes. E, a principal delas, é a garantia da saúde como um direito, que é o nosso Sistema Único de Saúde, o SUS.

Hoje, o SUS garante não somente o atendimento de qualidade das pessoas com alguma condição genética, que, não raro, acontece nos hospitais escolas, como também é o SUS que fornece os recursos para uma assistência de saúde suplementar, assim como é por causa do SUS que há o processo judicial para conseguir as medicações.

Portanto, como um sistema, é o SUS que fornece todos os mecanismos para o atendimento da pessoa, de maneira integral.

Assim, defender o SUS e a integralidade do cuidado a que propõe é o mesmo que cuidar das pessoas e enxergar toda a complexidade que envolve o cuidado. Ao contrário, se continuarmos a replicar o discurso europeu e a alinhar as condições genéticas às doenças e aos medicamentos órfãos, mutilamos a nossa principal virtude e nos apequenamos.

É preciso pensarmos no cuidado na perspectiva do SUS para passarmos a cuidar da saúde e da pessoa. Porque realizar o cuidado apenas pelo remédio e o comércio, é uma preocupação do mercado em instrumentalizar a família como representantes desvalorizar o nosso bem mais precioso, a própria vida.


“O senhor escreveu que as pessoas com NF1 toleram menos o calor e depois falou sobre convulsões e febre. Como saber se uma criança com NF1 está com calor ou febre? ” TR, do Rio de Janeiro.

Cara T, obrigado pela sua excelente pergunta, pois ela me permite explicar melhor as diferenças entre os sinais físicos de uma pessoa com calor ou com febre.

Calor

Começo pela pessoa que ficou exposta a um ambiente quente durante certo tempo realizando uma atividade física qualquer, ou um esporte ou um trabalho braçal. À medida que absorvemos o calor do ambiente (por exemplo, dos raios solares), nosso corpo vai aquecendo e sua temperatura aumenta. Quando fazemos atividades físicas, os músculos produzem calor e também aquecem o nosso corpo. Se somarmos as duas fontes de calor, ambiente quente e exercício físico, nosso corpo aumentará ainda mais rapidamente a sua temperatura.

Sabemos que nosso cérebro só funciona bem dentro de uma faixa normal de temperatura. Quem desejar saber mais sobre este assunto pode ver meu livro para crianças chamado “Cabeça fria é que faz gol” (AQUI).

Para manter a temperatura do cérebro dentro da faixa saudável, o corpo distribui uma parte do sangue sob a pele e começa a suar. Por isso a nossa pele fica avermelhada pelo sangue (chamada de rubor) e umedecida pelo suor. Se você colocar um termômetro na axila desta pessoa suando e com a pele quente, especialmente nas extremidades (mãos e pés, que continuam secos), poderá encontrar a temperatura um pouco aumentada, como se fosse febre, mas não é. É aumento da temperatura do corpo por causa do ambiente e/ou do exercício.

Se o suor evaporar, a evaporação retira calor da pele, que resfria o sangue, que então resfria o cérebro. Se o suor não puder evaporar, como nos ambientes úmidos (da floresta amazônica, por exemplo), o calor vai acumulando e aquecendo o cérebro e prejudicando as suas funções a partir de uma certa temperatura, geralmente acima de 40 graus centígrados.

O nível de tolerância de uma pessoa ao aumento da sua temperatura cerebral depende de quanto está acostumada com o ambiente quente e com o exercício (condicionamento) e de seu estado de saúde. Diversas doenças, incluindo a NF1, reduzem a tolerância das pessoas ao aumento do calor corporal.

Febre

No aumento do calor corporal por causa do ambiente e do exercício nosso corpo QUER jogar calor para fora e baixar a temperatura, mas NÃO CONSEGUE. Ao contrário, na febre, o corpo QUER conservar calor para aumentar a temperatura e assim combater a infecção que o está atingindo, possivelmente atrapalhando o crescimento de algumas bactérias.

Então, na febre, o organismo vai fazer ao contrário do que no ambiente quente: vai retirar o sangue da pele, para evitar a perda de calor para o ambiente, e por isso ficamos pálidos. Além disso, enquanto a febre estiver subindo, o corpo não vai suar. Se estas duas tentativas não forem suficientes para aumentar a temperatura em 1 ou 2 graus, o indivíduo começa a tremer para produzir calor por meio de contrações musculares involuntárias.

Esta é a primeira fase, na qual a febre está subindo (ver figura acima). Nesta fase as pessoas sentem frio, calafrios e outras manifestações de desconforto, fadiga e desânimo. Esta fase pode durar alguns minutos ou mesmo horas, dependendo da doença que está causando a febre.

Assim que o acúmulo de calor atinge a temperatura corporal que a evolução selecionou como sendo a mais adequada para aquela infecção, a palidez melhora, o tremor desaparece e a pessoa se sente mais confortável, apesar de estar com a temperatura interna acima de 38 graus centígrados. Esta é a fase estável de febre (ver figura acima), e pode durar várias horas.

No momento em que o organismo entende que a causa da febre diminuiu (a produção de certas proteínas pelas bactérias ou pelas células que combatem a infecção), começa então a última fase da febre, na qual o corpo tenta eliminar o excesso de calor que acumulou nas fases anteriores. Neste momento começa a vermelhidão da pele, a produção de suor e a sensação de calor que faz com que as pessoas retirem as cobertas e as roupas quentes (ver figura acima).

Tratamentos?

Dependendo do aumento da temperatura corporal causado por ambiente quente e exercício, ele precisa ser combatido com medidas urgentes como interromper a atividade física e retirar a pessoa do calor, dar banhos de água fria e acomodá-la em ambiente com ar condicionado. Algumas vezes estas medidas podem ser de emergência, pois a insolação (ou hipertermia) pode ser fatal ou deixar graves sequelas.

Outras formas raras de aumento da temperatura corporal, chamadas hipertermias malignas, que ocorrem por sensibilidade a determinados medicamentos, especialmente anestésicos, devem ser tratadas intensivamente pois podem ser fatais.

Por outro lado, estou convencido cientificamente de que não há necessidade de tratarmos a febre comum, causada por infecções bacterianas e virais, porque ela segue seu curso natural das três fases descritas acima, mesmo nas crianças que apresentaram algum episódio de convulsão febril (ver aqui). A febre em si não causa qualquer dano, pois ela geralmente é autolimitada a menos de 40 graus, ou seja, abaixo dos limites para causar problema cerebral.

Uma exceção que justifica o tratamento da febre alta seria para aquelas pessoas com insuficiência cardíaca grave, pois o aumento do metabolismo causado pelos tremores musculares poderia ser o bastante para descompensar a função cardíaca que já está muito limitada.

Além disso, a primeira fase da febre costuma durar menos tempo do que o tempo necessário para um antitérmico por via oral fazer seu efeito (a não ser os injetáveis). Também não faz sentido tratar a febre na sua fase dois, em que ela está estável, já atingiu seu limite natural e a pessoa já está mais confortável. Menos necessário ainda seria o tratamento na terceira fase da febre, na qual ela está espontaneamente desaparecendo.

Parece-me que muitas vezes damos os medicamentos antitérmicos apenas para aliviar os sintomas de desconforto e fadiga causados pela febre. No entanto, estes sintomas são restritos apenas à fase inicial da febre e fazem parte das defesas do organismo para ficarmos mais quietos e protegidos num momento em que nosso corpo está empenhado no combate à infecção.

 

“Meu filho tem NF e apresentou uma crise convulsiva quando tinha 1 ano de idade durante uma febre e depois nunca mais. Ele pode ter epilepsia no futuro? “ EPCR, de Campanha, MG.

Cara E, obrigado pela sua pergunta, bastante útil a muitas outras famílias.

Inicialmente devemos lembrar que cerca de 7% das pessoas com NF1 apresentam convulsões ao longo de sua vida, o que representa uma chance dez vezes maior do que a população em geral. Nas pessoas com NF1, geralmente as convulsões estão associadas a alguma anormalidade no desenvolvimento cerebral e não a tumores cerebrais. Por outro lado, convulsões também podem ocorrer em 8% das pessoas com NF2, mas neste caso podem estar associadas a tumores intracranianos, como os meningiomas.

O início das convulsões nas pessoas com NF1 pode acontecer desde o começo da infância até a vida adulta. A maioria delas é do tipo focal, ou seja, convulsões restritas a uma parte do corpo, e respondem bem ao tratamento medicamentoso, que é semelhante ao tratamento usado nas pessoas sem NF1. Raramente ocorrem as formas mais graves de convulsões nas pessoas com NF1.

Na NF2 as convulsões podem ocorrer a partir da adolescência e vida adulta e a sua gravidade pode ser um dos critérios para a intervenção cirúrgica nos meningiomas ou outros tumores intracranianos.

As chamadas “convulsões febris” são aquelas que surgem associadas à febre em situações em que NÃO há infecções do sistema nervoso central (meningite, por exemplo). Geralmente estão associadas a uma sensibilidade especial do sistema nervoso ao aumento da temperatura causada por fatores genéticos, por alterações no desenvolvimento cerebral ou por alterações metabólicas.

Na população em geral, as convulsões febris geralmente ocorrem entre 2 meses e 5 anos de idade (80% ocorrem em torno de 1 ano e meio de idade) e geralmente apresentam uma evolução benigna. Algumas infecções viróticas parecem causar mais convulsões febris, como o vírus Influenza A.

Segundo a definição internacional, a febre deve ser com temperatura maior ou igual a 38 graus centígrados medida na temperatura timpânica ou na temperatura retal, mas no Brasil geralmente utilizamos a medida da temperatura axilar. Num estudo realizado em 2004 (por Letícia C. Marques sob minha orientação no Laboratório de Fisiologia do Exercício da Universidade Federal de Minas Gerais) observamos que a temperatura axilar foi cerca de meio grau mais baixa do que a retal. Então a temperatura axilar de 37,5 corresponde à temperatura retal de 38 graus centígrados. No entanto, a temperatura axilar é mais sujeita às variações das condições do ambiente e pode não refletir a verdadeira temperatura interna do corpo.

A febre é um sinal de infecção (ou inflamação), uma resposta do organismo que provavelmente surgiu como mecanismo de defesa para dificultar a sobrevivência de alguns tipos de bactérias ao aumentar a temperatura do corpo produzindo mais calor (tremor muscular) e conservando este calor internamente (constrição dos vasos da pele – palidez).

Portanto, a febre não é a causa do problema de saúde, mas apenas um sinal de que o organismo está reagindo a uma infecção (ou inflamação) e não precisa ser tratada por si, embora os sintomas associados (mal-estar, tremor e calafrios) possam ser desconfortáveis e mereçam ser aliviados com medicamentos apropriados.

As convulsões relacionadas à febre são o tipo de convulsões mais comum na espécie humana e ocorrem em cerca de 2 a 6% da população em geral e em 2% das pessoas com NF1. Após uma convulsão febril há uma chance de outro episódio em cerca de 40% das crianças, especialmente nas mais novas abaixo de 1 ano e maio de idade.

É importante registrar que, apesar do pavor que as convulsões febris causam nos pais, não há um único relato na literatura médica de morte causada por convulsões febris (ver revisão recente sobre isto aqui AQUI) .

É preciso identificar a diferença entre uma convulsão febril e um desmaio (síncope por calor ou reflexos intestinais) e outra doença chamada mioclonia febril (contrações involuntárias ocasionais, tiques, geralmente apenas nos membros superiores, sem perda da consciência).

As convulsões febris que afetam todo o corpo, duram menos de 10 minutos e ocorrem apenas uma vez durante uma infecção (uma virose, por exemplo) são chamadas de “simples”. Aquelas que afetam apenas partes do corpo (focais), duram entre 15 e 20 minutos e se repetem durante uma infecção, são chamadas de “complexas”. As crianças com convulsões febris “simples” apresentam uma chance de 3% de apresentarem epilepsia posteriormente. As convulsões febris “complexas” apresentam uma chance maior de até 15% de epilepsia posterior.

O tratamento durante a convulsão febril deve ser direcionado para interromper a convulsão (benzodiazepínicos intravenosos, bucais ou retais). Ao contrário do que nos diz a nossa intuição, os antitérmicos não parecem ajudar, pois demoram mais tempo para fazerem seu efeito do que a própria convulsão (as simples, pelo menos) e não reduzem a chance de novas convulsões. Da mesma forma, molhar o corpo com panos umedecidos com água fria não diminui a temperatura interna, portanto, não atinge o objetivo de reduzir a febre. Álcool jamais deve ser usado nestas compressas.

Após uma convulsão febril, além de afastar a meningite em determinados casos, nenhuma investigação clínica parece necessária ou útil, incluindo eletroencefalograma, tomografia ou ressonância magnética, além daquelas necessárias ou relacionadas com a doença que causou a febre (infecção viral, bacteriana, etc.). Recomenda-se um retorno à clínica médica dentro de uma semana especialmente para que os pais possam se assegurar de que tudo está bem.

A recomendação atual científica é que nenhum tratamento medicamentoso deve ser recomendado para prevenir novas convulsões febris ou mesmo prevenir a epilepsia depois de uma convulsão febril. Caso novas convulsões ocorram sem a presença de febre, então o diagnóstico de epilepsia (chance de 3 a 15%, como vimos acima) deve ser considerado e a medicação apropriada deve ser usada.

Finalmente, a presença de convulsões febris em mais de um parente de primeiro grau sugere a possibilidade de haver na família uma mutação genética dominante que produz uma forma rara de epilepsia (em inglês denominada GEFS+, que significa “Genetic Epilepsy with Febrile Seizure plus”). Nestes casos, a investigação genética pode ser necessária.

Cara E, espero ter respondido sua pergunta. Em breve falarei sobre a diferença entre febre e aumento da temperatura do corpo causada pelo calor e exercício.

“Minha filha com NF1 está se preparando para casar talvez ainda este ano, vou levá-la à ginecologista para realizar exames pré-nupciais. Queria saber se tem algum exame especifico, pois vou falar com a médica sobre a NF1. Caso a médica queira saber mais sobre a NF1, poderia passar o e-mail da AMANF para ela? ” M, de Minas Gerais.

Cara M, sem dúvida sua pergunta é muito importante para toda a comunidade envolvida com as neurofibromatoses.

Inicialmente, a principal informação que vocês já devem saber e lembrar à médica que atender sua filha é que a NF1 é uma doença genética, causada por mutações novas ou herdadas. Ou seja, ela pode surgir pela primeira vez na família, como aconteceu com sua filha. Ou podem ser passadas adiante a partir de uma pessoa com NF1, que também pode ser o caso de sua filha.

As chances de sua filha passar adiante a mutação que ela apresenta no gene NF1 é de 50% em cada gestação, ou seja, é a mesma chance de lançar uma moeda para cima e dar cara ou coroa: por exemplo, cara com NF1, coroa sem NF1. É uma chance alta de nascer um bebê com NF1, porque a doença é chamada dominante, ou seja, basta apenas um dos pais ter a NF1 para a doença se manifestar em metade dos filhos. Assim, a sua família deve estar consciente deste risco.

Além disso, em cada gestação de sua filha o bebê poderá nascer sem a doença (metade das vezes) ou com a NF1 (metade das vezes). Se nascer com NF1, ele poderá apresentar níveis de gravidade diferentes da mãe (ou do pai, em outro exemplo) com a doença. Por exemplo, mesmo que a mãe possua poucas complicações da NF1 o bebê que herdar sua mutação pode apresentar uma forma grave (25% de chance), ou moderada (25% de chance), ou leve (25% de chance) ou mínima (25% de chance). Ver neste blog a definição destes níveis de gravidade AQUI.

Outra informação importante é que a gravidez nas mulheres com NF1 apresenta mais complicações (abortos espontâneos e eclampsia, por exemplo) e os neurofibromas aumentam em número e tamanho em cerca de 80% das gestações de pessoas com NF1.

Portanto, o planejamento familiar deve ser discutido com cuidado e tranquilidade entre o casal, lembrando que as pessoas com NF1 e NF2 podem usar anticoncepcionais, inclusive orais (hormonais), para organizarem melhor sua vida.

Por enquanto, a possibilidade de fertilização in vitro com a seleção de embriões sem NF1 ainda não é oferecida pelos serviços públicos de saúde no Brasil.

No mais, os exames pré-nupciais são os mesmos para as demais pessoas sem NF1.

Aproveito para desejar muitas felicidades para o casal, e que a NF não seja um empecilho para que possam desfrutar das grandes alegrias que a vida conjugal nos oferece.

“Outro dia o senhor falou em fraqueza dos ossos nas pessoas com NF1. Nós temos mais risco de sofrermos osteoporose? ” MCRS, de Olinda, PE.

Cara M, obrigado pela pergunta, que me oferece a oportunidade de aumentar nosso conhecimento sobre a osteopenia (fraqueza nos ossos) nas pessoas com NF1.

Para responder a você, reproduzo abaixo as recomendações das doutoras Rosalie E. Ferner (Londres), Susan M. Huson e do doutor David Gareth R. Evans (Manchester) para as pessoas com NF1, que devem procurar ajuda de especialistas em prevenção de osteoporose de acordo com orientações abaixo.

Quanto maior o número de condições que você preencher na relação abaixo, mais motivos você terá para procurar ajuda especializada (as marcadas em vermelho são mais comuns nas pessoas com NF1 do que na população em geral).

1. Sexo feminino;

2. História familiar de osteoporose;

3. Dieta pobre em cálcio e em alimentos precursores da Vitamina D;

4. Hábito de fumar;

5. Alcoolismo;

6. Baixa massa corporal (relação peso/altura); 

7. Tratamento com anticonvulsivantes;

8. Menarca atrasada (primeira menstruação tardia, depois dos 14 anos); 

9. Cirurgia para escoliose com implantação de hastes de suporte;

10. Menopausa precoce (antes dos 45 anos);

11. Anticoncepcionais injetáveis (contendo progesterona);

12. Tratamento prolongado com corticoides;

13. Doenças crônicas que retiram cálcio do organismo ou dificultam a sua absorção intestinal (doenças renais, doenças hepáticas, doença inflamatória intestinal, doença celíaca, hipertireoidismo, hiperparatireoidismo, artrite reumatoide, anorexia nervosa);

14. Doenças que restringem a mobilidade (por exemplo, esclerose múltipla, derrames cerebrais);

15. Fraturas causadas por pequenos traumas;

16. Qualquer fratura vertebral

Espero que estas orientações sejam úteis. Espero também que você tenha poucos dos fatores acima, e então mantenha sua atividade física regular, sua dieta adequada e seus banhos de sol.

A partir de março de 2017, darei continuidade ao atendimento clínico das pessoas com neurofibromatoses (NF1, NF2 e Schwannomatose) também num consultório localizado na Avenida Pasteur 40, sala 102, Bairro Santa Efigênia, Belo Horizonte.

O consultório fica a dois quarteirões da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e do Hospital das Clínicas, onde fica o nosso tradicional Centro de Referência em Neurofibromatoses, no qual Dr. Nilton Alves de Rezende e eu continuaremos a atender normalmente.

Este novo local de atendimento pretende se tornar mais uma fonte de recursos para a Associação Mineira de Pessoas com Neurofibromatoses, a AMANF, além de aumentar a flexibilidade nos meus horários de atendimento. O recurso arrecadado com os pagamentos será usado para manter as despesas do consultório e aplicado em projetos da AMANF.

Para permitir o acesso a todas as pessoas, depois da consulta cada um deve escolher o valor a ser pago entre 50 e 300 reais, de acordo com sua renda familiar. O pagamento será feito à secretária Arli Alvim, que emitirá o recibo correspondente. Você pode solicitar a dispensa de qualquer pagamento se suas condições financeiras o obrigarem a isto naquele momento.

Os agendamentos podem ser feitos por WhatsApp (31) 999710622 (no horário comercial) ou pelo e-mail: rodrigues.loc@gmail.com

Lembro que minha consulta dura cerca de uma hora e você deve trazer todos os exames que já realizou até o momento da consulta. Geralmente não há necessidade de permanecer em Belo Horizonte para novos exames ou procedimentos.

Caso haja alguma dúvida ou não possa comparecer à consulta, por favor, ligue para a Arli Alvim (31) 3224 1213 ou mande uma mensagem para mim.

Um abraço,

Dr Lor

Tento compreender as atitudes recentes de alguns médicos e uma médica durante o adoecimento e falecimento da senhora Marisa Letícia Lula da Silva, que me causaram perplexidade e tristeza [1].

Tenho o dobro da idade dos médicos que se comportaram de forma extremamente agressiva numa situação em que acredito que deveria prevalecer a proteção profissional a uma pessoa doente e sua família. Desejo que estes jovens colegas vivam tanto quanto eu para aprenderem, e acredito que todos podemos nos transformar com a experiência, como eu venho aprendendo com o tempo “que a delicadeza é a mãe de todas as virtudes” [2]. E certas virtudes são necessárias para sermos bons médicos.

Não imagino que as pessoas que se formam em medicina sejam seres especiais invulneráveis aos impulsos humanos como os demais. Não penso assim. Mas somos, médicos e médicas, pessoas privilegiadas por diversas razões e os privilégios que recebemos, a meu ver, resultam em compromissos morais para com a sociedade que nos permitiu usufruir de alguns direitos que, infelizmente, ainda não estão garantidos para todas as pessoas.

O primeiro direito que usufruímos (e é ainda um privilégio) foi, para a maioria dos formados em medicina, termos nascido em famílias em condições econômicas boas o bastante para recebermos alimentação suficiente, cuidados pediátricos, escolas adequadas, recreação e lazer, ambiente familiar pacífico e habitação em zonas residenciais com menores índices de violência. Isto tudo nos garantiu a sobrevivência física e a capacidade intelectual para alcançarmos a idade de entrarmos para uma universidade.

O segundo direito ao qual tivemos acesso (também ainda um privilégio) foi, para a maioria dos formados em medicina, o fato de termos à nossa disposição uma universidade pública e (novamente) condições econômicas familiares para não precisarmos trabalhar durante a faculdade e, além disso, podermos prolongar a nossa capacitação depois de formados, realizando residências médicas e cursos de especialização.

No entanto, o grande privilégio que recebemos da sociedade é a confiança das pessoas que nos procuram em situação de sofrimento, de vulnerabilidade ou fragilidade. Talvez este seja o aspecto que torna a medicina e a enfermagem profissões especiais. Outras atividades profissionais também se deparam ocasionalmente com seres humanos em situações críticas, como psicólogos, bombeiros e assistentes sociais, mas a medicina e a enfermagem trabalham continuamente com pessoas debilitadas, fragilizadas, com dor, traumatizadas ou morrendo.

Portanto, para mim este é o aspecto moral que nunca poderia ser violado: jamais trair a confiança depositada em nós pelas pessoas doentes que nos procuram.

Trair sua confiança é não respeitarmos o seu sofrimento, é desumanizarmos o atendimento ou realizarmos procedimentos inadequados com finalidade monetária.

Também é fingirmos possuir conhecimento científico sobre uma doença que desconhecemos, é não nos atualizarmos sobre técnicas e procedimentos médicos, enfim, é colocarmos nossos interesses acima do interesse da pessoa doente.

Sim, estou defendendo que deveria haver um espírito de sacerdócio na prática da medicina.

Colocarmos a dignidade humana das pessoas doentes acima dos nossos próprios interesses é não permitir que nossas preferências pessoais em política, religião ou cultura interfiram no acolhimento e no tratamento das pessoas que nos procuram com problemas de saúde.

Como pessoa física posso apoiar as ideias de um determinado partido, mas isso não pode afetar minha relação enquanto médico com qualquer pessoa que pense de forma diferente. Não deveríamos agir profissionalmente de formas diferentes apenas porque alguém é de esquerda ou de direita, por causa de sua cor da pele, ou de sua classe social.

Penso que todas as pessoas, inclusive aquelas que se formam em medicina, não só podem como devem ter opiniões políticas e agir politicamente. No entanto, a partir do momento em que visto o jaleco, ou coloco o crachá ou assumo a função do profissional médico, os meus limites de opinião serão redefinidos por esta nova condição. Dentro dos limites do médico só serão adequados os comportamentos que respeitem o princípio fundamental dos interesses das pessoas doentes.

Existe uma organização que eu admiro profundamente que se chama “Médicos Sem Fronteiras” (ver AQUI), cujos relatos de imparcialidade de conduta em condições extremas, como guerras, genocídios e epidemias, servem de reflexão para todos nós.

Temos que recuperar nossa dignidade profissional antes que nos seja cassado o privilégio que desfrutamos da confiança da sociedade nos médicos e médicas que atendem a população brasileira.

[1] Agradeço as sugestões a este texto feitas por minha filha Ana de Oliveira Rodrigues e nossa conversa proveitosa, que me permitiram compreender melhor meus sentimentos e como me expressar de forma construtiva sobre um tema tão delicado.

[2] Se não estou enganado, este é um pensamento do filósofo André Comte-Sponville.

“Minha filha com NF1 está na Ginástica Acrobática. Ela gosta muito, está super bem e feliz. Na sua voz: Lá eu consigo fazer tudo o que os outros conseguem! Temos que ter alguma preocupação com esta atividade? Ela não apresenta qualquer problema, mas como não possui exames para avaliar os neurofibromas internos e a história do garoto que veio a ter problemas da coluna “após uma queda de cavalo” me alertam. Como pai, acho que não é preciso preocuparmos, mas, considerando as tantas variáveis da NF, fico a pensar se devemos tomar algum cuidado. ” RBL, de local não identificado.

Caro R, obrigado pela sua mensagem, que nos ajudará a entender melhor o significado dos problemas de coluna nas pessoas com NF1.

Parece-me que você entendeu que eu afirmei que a queda do cavalo teria provocado a cifoescoliose naquele menino, cuja história contei no post chamado “Um tio querido” (ver AQUI). Na verdade, a família relatou que a queda do cavalo teria causado o problema na coluna do menino, mas, na minha impressão, a causa da deformidade na coluna do garoto provavelmente já estava presente antes da queda, mas ainda não havia sido percebida.

A deformidade da coluna vertebral descoberta naquele menino é um dos problemas ortopédicos que acontecem em cerca de 10% das pessoas com NF1. Podemos encontrar tanto a escoliose (inclinação para um dos lados), quanto a cifose (inclinação para a frente), ou a lordose (retificação da coluna torácica ou aumento da curvatura da coluna lombar e cervical) ou combinações destas alterações chamadas cifoescolioses (inclinação e curvatura com rotação das vértebras) – ver figura acima.

Sabemos que a maioria das deformidades na coluna das pessoas com NF1 é benigna, chamada de forma “idiopática” (palavra que significa: sem causa conhecida), que apresenta apenas inclinações mais suaves da coluna, sem alterações nos ossos e sem complicações importantes. Geralmente são escolioses isoladas, cifoses isoladas ou lordoses isoladas e não precisam de tratamentos na maioria das vezes.

Por outro lado, algumas pessoas com NF1 apresentam as formas mais graves de deformidades na coluna vertebral, que chamamos de forma “distrófica” (palavra que significa: crescimento anormal do tecido, no caso, os ossos). Geralmente são diagnosticadas na infância (entre 6 e 10 anos), envolvendo 4 a 6 segmentos da coluna (corpos vertebrais) e localizadas na parte inferior do pescoço ou na parte superior do tórax. Raramente são diagnosticadas depois dos 10 anos de idade.

A escoliose e a cifoescoliose distróficas são causadas pela fragilidade acentuada de alguns dos ossos da coluna, os quais não suportam o peso do corpo acima de um certo ponto e desabam parcialmente, ficando deformados e causando desequilíbrio e tortuosidade da coluna. Estas são complicações funcionais importantes, por isso precisam ser corrigidas com coletes ortopédicos e cirurgias.

Esta fragilidade nos ossos geralmente é congênita, ou seja, está presente desde a vida intrauterina e está relacionada com a falta (ou insuficiência) da proteína neurofibromina em decorrência da mutação genética que causa a NF1 (ver AQUI). Algumas vezes a cifoescoliose distrófica está associada à presença de um neurofibroma plexiforme na raiz dos nervos que saem da coluna, e os plexiformes também são congênitos, ou seja, são formados durante a gestação.

Assim, a maior probabilidade é de que o menino com NF1 que caiu do cavalo naquela história que relatei já possuísse a fragilidade óssea antes da queda, mas o trauma pode, talvez, ter funcionado como o agente capaz de acelerar o problema, tornando-o evidente.

Além disso, sabemos que as pessoas com NF1 também apresentam osteopenia (palavra que quer dizer fraqueza nos ossos), por causa da redução na estrutura mineral (menos cálcio) dos ossos. Há uma possibilidade de que esta fraqueza óssea facilite a osteoporose e as fraturas, por isso recomendamos que as pessoas com NF1 tomem banhos de sol, realizem uma dieta rica em precursores de Vitamina D e controlem anualmente os níveis de Vitamina D em seu sangue, realizando a reposição medicamentosa se necessário.

Por outro lado, também sabemos que as pessoas com NF1 sofrem quedas mais frequentemente do que a população em geral, provavelmente causadas por menor coordenação motora, menos força muscular e menor capacidade de atenção. Uma recomendação que vem sendo estudada cientificamente (ver AQUI) é de que exercícios regulares podem melhorar estas pequenas deficiências motoras das pessoas com NF1.

Portanto, viva a alegria de sua filha com a ginástica, que são exercícios regulares.

 “Tenho NF1 e há muitos anos eu me sinto cansada demais na época de calor, e passo mal em ambientes quentes. Já desmaiei algumas vezes por causa da pressão baixa no calor. Já fui internada por insolação uma vez depois de caminhar muito na praia no sol forte. Tem a ver com a NF1? ” MRV, de Porto Seguro, BA.



Cara M, obrigado pela sua pergunta, pois ela pode ser útil a todas as pessoas com NF1.

De fato, hoje sabemos que as pessoas com NF1 apresentam menor tolerância ao calor e maior risco de passarem mal em ambientes quentes, como seu cansaço, desmaios e queda na pressão arterial. Este conhecimento devemos ao estudo da Dra. Luciana Gonçalves Madeira que realizou seu doutorado no nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Ela publicou seus resultados num artigo científico (em inglês, ver AQUI ) e vou resumir suas conclusões a seguir.

Nós, seres humanos, precisamos manter a temperatura interna do nosso corpo dentro de uma certa faixa próxima dos 37 graus centígrados, para que nossos órgãos funcionem bem. Abaixo e acima desta faixa nosso organismo começa a ter dificuldades para funcionar, especialmente nosso cérebro. Então, para conservar esta temperatura no ponto certo, nosso corpo possui sistemas de aquecimento e de resfriamento.

Quando a temperatura interna começa a baixar, por exemplo dentro de uma piscina com água fria, a diminuição da temperatura do cérebro nos indica que devemos ir para um local com temperatura mais agradável. Se não obedecermos esta instrução (ou não pudermos obedecer, como num naufrágio, por exemplo), o cérebro envia instruções de fechamento para os vasos sanguíneos da pele (artérias e veias). Assim, menos sangue irá circular na pele e com isso menos calor passará do interior do corpo para a água fria. Por essa razão ficamos pálidos depois de algum tempo na piscina fria.

Se esta diminuição da circulação na pele não for suficiente para diminuir a perda de calor do interior do corpo para a água da piscina, nosso organismo lança a mão de outra alternativa: começa a tremer! O tremor são contrações involuntárias dos músculos e com isso eles produzem calor que aquece um pouco os outros órgãos, principalmente o cérebro, dando a chance de continuarmos vivos por mais um pouco.

Se a palidez e o tremor não forem suficientes para manter a temperatura ideal do cérebro, então as funções neurológicas vão diminuindo até a pessoa desmaiar e entrar em coma, o que pode levar à sua morte pelo frio. Um exemplo deste tipo de acontecimento é a morte do personagem do Leonardo di Caprio no filme “Titanic”.

Ao contrário, se entramos numa sauna quente, por exemplo, assim que a temperatura do cérebro começar a aumentar, receberemos a instrução de mudar de ambiente e sair dali o mais rápido possível. Se não obedecermos esta instrução (ou não pudermos obedecer), o cérebro envia instruções para a abertura dos vasos sanguíneos da pele e para a produção de suor.

Se o suor puder ser evaporado (o que só acontece em ambientes secos, com pouca umidade relativa do ar), esta evaporação retira calor do sangue que está fluindo pela pele e assim remove calor do corpo, o que mantém o cérebro em temperatura adequada. Por isso, ficamos com a pele avermelhada e suamos no calor.

No entanto, se a retirada de calor do corpo pela evaporação do suor não for suficiente para resfriar o cérebro (numa floresta úmida, por exemplo), o aumento da temperatura cerebral começa a prejudicar as funções neurológicas, podendo causar fadiga, confusão mental, convulsões e morte. Esta situação recebe vários nomes: insolação, hipertermia, choque pelo calor, intermação.

Assim, qualquer coisa que atrapalhe a capacidade do organismo de controlar sua temperatura interna pode causar danos à saúde das pessoas.

E como é a regulação da temperatura do corpo nas pessoas com NF1?

Como já comentamos anteriormente (ver AQUI), descobrimos em nosso Centro de Referência que as pessoas com NF1 apresentam menor capacidade aeróbica, ou seja, menor tolerância aos exercícios. Sabendo que precisamos dissipar o calor produzido pelos músculos durante os exercícios, nos perguntamos se a dificuldade das pessoas com NF1 para aguentarem esforços físicos poderia ser causada por alguma dificuldade para dilatar os vasos sanguíneos ou para suar.

Assim, surgiu o estudo da Dra. Luciana Gonçalves Madeira, que mediu a capacidade de suar, de dilatar os vasos sanguíneos da pele e de retirar calor do corpo de um grupo de 25 pessoas voluntárias com NF1 e comparou com os resultados de outras 23 pessoas voluntárias sem NF1, reunidas em pares da mesma idade e sexo.

Luciana e seus colaboradores concluímos que as pessoas com NF1 apresentam menor capacidade de manter a temperatura interna adequada quando expostas a ambientes quentes. Isto parece acontecer por causa de uma menor função dos nervos chamados “autonômicos simpáticos”, ou seja, as pessoas com NF1 apresentam uma doença dos nervos conhecida como “neuropatia autonômica”.

Por enquanto, este estudo nos alerta para protegermos mais as pessoas com NF1 de situações de risco para o calor (por exemplo, exercícios em ambientes quentes e úmidos, exposições prolongadas ao sol, trabalho em ambientes quentes). Diante de sinais de aumento da temperatura corporal por causa de calor (que é diferente da febre – falarei sobre isto em breve neste blog), devemos tomar as diversas providências para resfriarmos prontamente o corpo das pessoas com NF1.

Ainda não sabemos se esta neuropatia autonômica da NF1 precisa de tratamento ou se haverá algum tratamento para ela no futuro. Um primeiro passo neste sentido pode ser testarmos a capacidade das pessoas com NF1 de se aclimatarem ao calor para servir de proteção contra os possíveis danos ao cérebro causados pelo aumento excessivo da temperatura corporal.

Espero que novos estudantes de pós-graduação se animem com esta pergunta e sigam os passos da brilhante Dra. Luciana Gonçalves Madeira.

“Meu filho de 9 anos tem NF1 e não gosta de esportes e brincadeiras de meninos. Tenho medo que ele escolheu ser gay. Isso tem a ver com a NF1? ” JCR, do Rio de Janeiro.

Cara J, obrigado pela sua participação com um tema que pode ser útil a outras famílias.

Inicialmente, devo lembrar que as pessoas com NF1 apresentam menos força muscular, menor capacidade aeróbica (para realizar atividades físicas prolongadas), menor tolerância ao calor e mais dificuldades de aprendizado nas atividades esportivas e para dançar e cantar.

Assim, é provável que as crianças com NF1 tenham menos interesse por esportes e se saiam pior nas atividades esportivas e brincadeiras que envolvam força muscular, resistência física, coordenação e habilidades motoras. 

Com o tempo, o menor desempenho nestas brincadeiras acaba discriminando as crianças com NF1 e elas perdem a vontade de participar em esportes e outras ocupações que envolvam vigor físico. Quanto menos participam, menos se saem bem; quanto menos se saem bem, menos são chamadas a participar, fechando o círculo.

Por outro lado, creio que sua pergunta traduz uma preocupação de que o desinteresse de seu filho por certas atividades poderia ser decorrente da possibilidade de ele ser homossexual.

Sabemos que a NF1 pode afetar os aspectos emocionais, inclusive a sexualidade em termos gerais ( ver trabalho do grupo do Dr. Mautner AQUI) e aumentar a preocupação das mulheres com NF1 e NF2 com o próprio corpo (ver estudo do grupo do Dr. Plotkin AQUI). A psicóloga Alessandra Cerello realizou um estudo com voluntários com NF1 no Centro de Referência em Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ver AQUI) que mostrou o impacto da NF1 na vida emocional das pessoas com a doença.

No entanto, estes estudos não avaliaram a frequência da homossexualidade nas pessoas com NF1. Também não conheço ainda nenhuma outra pesquisa científica que tenha analisado de forma cuidadosa a questão da homossexualidade nas pessoas com NF1 ou NF2. Portanto, não posso responder com segurança se haveria maior ou menor número de pessoas homossexuais entre aquelas com a NF1.

Por outro lado, minha impressão, obtida da observação clínica em nosso ambulatório, é de que especialmente os meninos com NF1 seriam menos agressivos, mais dóceis e mais delicados do que outros meninos de mesma idade sem a doença, mas tudo isso pode ser decorrente da redução de sua capacidade física e cognitiva que comentei acima.

Estas características de comportamento de algumas pessoas com NF1, como retraimento social e timidez, fazem com que muitas delas sejam consideradas autistas (ver comentário neste blog AQUI ou artigo publicado (em inglês) sobre este assunto AQUI.

Além disso, parece-me que as pessoas com NF1 estabelecem menor número de relacionamentos amorosos duradouros ao longo da vida e se casam menos e têm menos filhos do que a população em geral.

De qualquer forma, não creio que a nossa sexualidade seja uma escolha. Ao contrário, concordo plenamente com o Dr. Drauzio Varella quando ele diz que “A homossexualidade é um fenômeno de natureza tão biológica quanto a heterossexualidade. Esperar que uma pessoa homossexual não sinta atração por outra do mesmo sexo é pretensão tão descabida quanto convencer heterossexuais a não desejar o sexo oposto” (ver AQUI).

Por outro lado, posso compreender a preocupação dos pais diante da possibilidade de um filho ou filha serem homossexuais, por causa dos riscos para sua segurança e bem-estar num país que trata com desprezo e ódio as pessoas que, por razões biológicas e alheias à sua vontade, nascem com o desejo sexual orientado para pessoas do mesmo sexo.

Todos nós temos responsabilidade na luta permanente contra quaisquer formas de discriminação social que trazem tanta infelicidade à humanidade, com ou sem NF.