Amigas e amigos da AMANF,

Estamos encerrando o ano em que nossa AMANF completou 20 anos de existência e nos preparando para um novo ano de atividades.

Neste ano que passou, enfrentamos diversas dificuldades, como a continuidade da pandemia de COVID, a falta de recursos financeiros para a saúde reduzidos no governo Bolsonaro e a agressividade política do ano eleitoral.

Apesar destas barreiras para o nosso trabalho, atendemos a centenas de pessoas presencialmente no ambulatório do Hospital das Clínicas e por meio de videoconferência. Isto foi possível por causa da dedicação da Dra. Juliana Souza e do Dr. Bruno Cota, agora contratados pela Universidade Federal de Minas Gerais e pelo Hospital das Clínicas.

Na retaguarda fundamental dos atendimentos clínicos, contamos com os apoios do Dr. José Renan (nosso querido cirurgião que tem enfrentado tantos casos complexos e desafiadores), Dr. Renato Viana (nosso dedicado ortopedista) e Dr. Renato Penido (nosso advogado indispensável).

Além disso, passamos a ter o trabalho da secretária Josiane Rezende, contratada com os recursos da AMANF, que centralizou de forma eficiente a nossa agenda e facilitou nosso atendimento clínico e a comunicação com a comunidade NF.

Como você sabe, todos os recursos financeiros da AMANF nos chegam por meio de doações, que são feitas por pessoas generosas, que, felizmente aumentaram em número neste ano de 2022.

Graças a estas pessoas solidárias, conseguimos dar continuidade a pelo menos um projeto de pesquisa, a tese de doutorado do Dr. Bruno Cota, que estuda os benefícios possíveis do treinamento musical em adolescentes com Neurofibromatose do Tipo 1. A tese deve ser concluída em 2023.

Com os recursos das doações também foi possível oferecermos sete bolsas de iniciação científica a estudantes de graduação em fonoaudiologia, enfermagem, medicina e psicologia: Bruna Pereira, Gabriela Poluceno, Maila Araújo, Marina Corgosinho, Thais Andreza, Vitória Perlin e Julia Lemes, todas elas ligadas ao projeto científico do Dr. Bruno Cota.

Milhares de reais dos recursos financeiros da AMANF também foram utilizados para realização de exames, transporte para tratamento e medicamentos para pessoas em estado de pobreza e vulnerabilidade social. Esta é uma das funções importantes de nossa Associação, especialmente diante do empobrecimento agravado que aconteceu no país nos últimos anos.

Além disso, tivemos a construção de protocolos médicos no Centro de Referência em Neurofibromatoses, graças às iniciativas e empenho científico da Dra. Luíza de Oliveira Rodrigues, que também participou dos cursos de formação para as famílias, com os apoios da Dra. Ana Carolina Feitosa, da Maria Graziela, da Josiane mãe do Pedro e do Marcos Vieira.

Também neste ano de 2022, graças à generosidade da família de Letícia Lindner (com apoio da artista gráfica Daine Lindner e da professora Ana Rodrigues) produzimos a nova Cartilha sobre Dificuldades Cognitivas que está sendo impressa e passará a ser distribuída gratuitamente a partir de 2023.

Também mantivemos nosso serviço on-line de informação permanente, que completou mais de 700 mil visitas

Finalmente, realizamos as atividades administrativas rotineiras e necessárias da AMANF sob a direção de nossa Presidenta Adriana Venuto e com o apoio da nossa diretoria: Juliana Souza, Fabiana Pantuzza, Marcos Vieira, Maria Helena Vieira, Marcia Campos, Tânia Corgosinho e eu.

Foi tudo isto que comemoramos em nossa Festa de 20 anos, na qual Dr. Nilton Rezende e eu fomos homenageados com o Troféu Mônica Bueno pela nossa contribuição como médicos e associados.

E tudo isso foi possível com seu apoio e sua generosidade.

É tudo isso, e muito mais, que desejamos realizar novamente em 2023.

Contamos com você, com sua participação nos atendimentos e nas pesquisas, com seu apoio e generosidade.

Contamos também com o novo governo eleito, um governo de frente ampla de diversos partidos contra o desgoverno de Jair Bolsonaro, que esperamos que seja capaz de recuperar as estruturas públicas, especialmente as da saúde, e reduzir a pobreza em nosso sofrido país.

É esta a nova chance que desejo a todes.

 

Dr. Lor

Diretor Administrativo da AMANF

 

 

 

Muitas pessoas, que confiam em mim como médico, perguntam o que penso das eleições.

Respeito as escolhas de cada pessoa e então, para justificar minha opinião pessoal, compartilho com as famílias que me procuram dois fatos importantes:

 

Fato 1 – Sem verbas públicas para as pesquisas

Estamos sem verbas do governo federal para as pesquisas científicas que vínhamos fazendo e que poderiam beneficiar as pessoas com NF.

Por causa disso, a tese de doutorado do Dr. Bruno Cota somente continua porque está sendo totalmente financiada pela AMANF, com as doações generosas de pessoas que estão solidárias com nossa causa.

Mas outras pesquisas estão paradas.

Essa falta de recursos financeiros para pesquisas –  inclusive as nossas –  faz parte do desprezo de Bolsonaro pela ciência, que fez com que ele tenha cortado as verbas das universidades e institutos de pesquisa.

 

Fato 2 – O telhado desabado na nossa sala de atendimento

Na próxima semana completa um ano desde que as chuvas fortes de 2021 derrubaram parte do telhado do ambulatório de dermatologia, atingindo nossa sala de atendimento clínico. Por isso, não podemos atender ou entrar na sala, nem mesmo para pegar os prontuários das pessoas que já foram atendidas por nós.

Essa demora para o conserto do telhado acontece pelo mesmo motivo: cortes de verbas decididas pelo governo Bolsonaro para as universidades.

 

Estes dois problemas que citei são pequenos diante dos crimes cometidos pelo governo Bolsonaro no campo da saúde, como o desprezo pela pandemia, atraso e corrupção na compra de vacinas, deboche das pessoas sofrendo e morrendo, compra e distribuição de cloroquina com dinheiro público e desmonte do SUS.

Mas estes dois problemas que trago aqui mostram como as decisões de Bolsonaro afetam também nossa causa em defesa das pessoas com NF.

Por isso, nesse próximo domingo meu voto será pela volta das verbas para a saúde e para as universidades.

Votarei contra Bolsonaro.

Dr. LOR

(Opinião pessoal)

 

 

Para Júlia Rocha

 

Renata acordou com calor antes do despertador tocar, percebeu a luz do amanhecer penetrando pelas frestas da cortina improvisada e se levantou para preparar o lanche para Samila e arrumar os cadernos da menina para a escola. Renata lembrou que não chovia desde maio, alguma coisa estava acontecendo com o clima, ouviu das moças que faziam campanha para uma candidata no bairro, e acendeu o fogão improvisado com pedaços de madeira que vinha recolhendo na rua, para economizar o gás que estava acabando.

Renata ligou baixinho a pequena TV para não despertar o caçula e o pastor dizia bom dia, repleto de bênçãos do Senhor, na paz de Deus, lembrou que estava atrasada com o dízimo, pudera, tudo aumentando de preço, menos as faxinas, as patroas pagando o mesmo preço de dois anos atrás, ou até menos, algumas dispensando, cortando passagem, dificultou para ela, trocou o arroz com feijão pelo macarrão, carne quase nunca, pouca fruta. Roupa, só aproveitada, uma cervejinha no sábado era luxo de antigamente, dos tempos na casa da mãe, no interior, quinze anos antes, o mundo era melhor, muita gente empregada, carteira e salário na mão, até visitar parentes no norte de Minas foram.

Enquanto coava o café, Renata admirava a moça branca super chique e o homem de gravata que falavam notícias sobre a guerra na Ucrânia, queria ter continuado na escola, gostava de história, mas nasceu Samila, tinha que trabalhar, depois, Alex Sandro foi embora e deixou pro filho só o nome, não aguentava o choro do menino, porque ELE trabalhava de dia, – e quem não?, o menino que não dormia, não ganhava peso, os cabelinhos ficando loiros secos, e ninguém na casa com aquele cabelo. Teve até o médico que duvidou que ela cuidava, que não dava o peito, – o menino é que não chupava direito, cansava, parava, veio outra, a doutora, que mostrou as manchas, disse que era grave, que ele ia viver pouco, mas que não tinha nada para fazer.

Renata tocou o ombro de Samila, precisava levantar e comer alguma coisa, podia levar pra escola uns biscoitos da cesta que ganhou do Afrânio, três quilos de arroz, meio de feijão, uma garrafa de óleo, um pacote de macarrão e outro de biscoito, para ela votar no candidato dele, o mesmo da outra vez, era pra vestir a camisa amarela com o nome, em troca prometeu cuidar do Junior, arranjar fisioterapia para ele, veio de conversa que ela era a mulher mais bonita do bairro, merecia um homem de verdade, cristão e não um maconheiro. Renata refugou, ainda pensava no traste do Sandro, Afrânio sumiu para voltar agora, com a mesma lenga-lenga, mas as coisas pioraram, agora não deu para recusar.

Renata desceu vinte minutos de ruas com Samila até a escola municipal e deixou o menino ainda sonolento e resmungando com a vó Carmem, que fica com crianças enquanto as mães trabalham, uma coisa de Deus que o pessoal do terreiro cuida, mas a turma do Afrânio não reconhece, as mães levam a comida e as fraldas, na volta pegam até de banho tomado, tem dia, e aquelas que podem dão algum dinheiro, outras ajudam com trabalho voluntário na comunidade. Só não dá pra deixar quando o menino está com febre, que é muito sempre, aí fica mais irritado, nervoso, não dorme nada, então ela perde o dia de faxina ou deixa o filho com a vizinha, mas a vizinha bebe, é um aperto no coração o estado em que ela entrega o menino, e ainda cobra 30 reais! Mas no posto de saúde Renata tem que levar, ela mesma, então perde o dinheiro da faxina, as patroas não querem nem saber, nada de direito, de carteira assinada, isso é coisa desses comunistas, elas dizem, aí… corta mais um pouco no jantar.

O cartão do hospital para o Alex Junior levou mais de ano para conseguir, eles falaram em corte do governo no dinheiro da saúde, reduziram pessoal, as filas aumentaram, mandaram procurar ajuda na internet, – mas como na internet, meu Deus!?, se o que ela ganha nem paga direito o telefone que precisa para fazer as faxinas! Ainda bem que a Marielle, que trabalha na assistência social, ajudou muito, leu o laudo da médica do posto, descobriu o nome da doença, um nome complicado, procurou no Google, disse que tem problema de genética, – meu ou do Sandro? – não sei, respondeu Marielle, só que isso atrapalha o crescimento dele, a magreza, a falta de força e de sono, até as manchas na pele.

Marielle conseguiu marcar uma consulta no ambulatório de Neurofibromatoses do Hospital das Clínicas, onde Renata viu a faixa meio rasgada “Fora Genocida!” com um retrato do candidato do Afrânio. Renata lembrou da epidemia de COVID, dos dias que passou na cama depois que foi obrigada a trabalhar numa casa onde o patrão estava com a doença, a vizinha ajudou um pouco a cuidar das crianças até que ficou doente também, tinha muita gente morrendo no bairro com a COVID, o Júnior chorando, a Samila reclamando de fome, sem escola, sem merenda, a chuva derrubando uma parte do barraco, não conseguiu o auxílio do governo, Nossa! – passou um arrepio só de lembrar – e pensou que foi Deus que não deixou ela enlouquecer.

Renata entrou na sala com o Alex Sandro Junior no colo e perguntou: – é verdade que não tem nada para fazer pelo meu menino, doutor?

 

Dr LOR

 

Os nomes são fictícios. Somente os nomes.

O desenho acima foi feito por Luíza, de 10 anos, que tem Neurofibromatose do Tipo 1.

Pedi para ela um desenho de uma mãe triste, com um bebê no colo.

A mãe de Luíza ouviu mais de uma vez médicos dizerem que não havia nada a fazer pela sua criança.

Obrigado, Luíza, por ajudar, com seu ótimo desenho, a mantermos nossa esperança.

 

 

 

 

 

A AMANF é uma associação sem ligações com partidos políticos ou com quaisquer candidatos.

Mas a AMANF é uma associação política como toda reunião de pessoas em torno de objetivos comuns, pois a política é o esforço coletivo para a administração do bem comum.

Então, nosso desejo para a eleição neste próximo domingo é que sejamos capazes de escolher representantes que defendam o bem comum.

O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das conquistas sociais para o bem comum da população brasileira, que nos toca mais diretamente, porque somos uma associação destinada a apoiar pessoas com problemas de saúde, as neurofibromatoses.

Assim, nossa esperança é que as pessoas eleitas sejam comprometidas com a defesa do SUS.

Veja clicando aqui uma cartilha importante sobre o SUS.

Vamos escolher as candidatas e candidatos que defendem nossa saúde, nossa vida, respeitam a democracia e lutam por uma sociedade mais inclusiva, menos racista, menos machista e menos desigual.

Boa eleição!

Adriana Venuto

Maria Helena Rodrigues Vieira

Marcos Vinicius Soares Vieira

Dr. Lor

 

 

 

Post #4 – final

Esta é a quarta e última parte da conversa com uma jovem estudante (MD, de 17 anos), que gostaria de saber como poderia se tornar uma cientista para descobrir a cura para a neurofibromatose do tipo 1 para um dia poder ajudar seu irmão mais novo, que nasceu com a doença. Nossa correspondência foi muito interessante e então, com a autorização de MD, resumi abaixo algumas perguntas e respostas que foram surgindo durante nossa conversa, porque talvez elas sejam úteis a outras pessoas.

A quinta pergunta de MD:

Como conviver com minha família religiosa?

Todas as etapas e condições que já comentamos antes parecem tornar muito difícil para uma garota como você, negra, brasileira e filha de trabalhadores, se tornar uma cientista. Para tornar as coisas ainda um pouco mais complicadas, você também relata um conflito com sua família, que possui princípios religiosos, os quais parecem se contrapor ao campo científico no qual você pretende ingressar.

Você pergunta sobre como conviver com sua família com crenças diferentes e, ao mesmo tempo, viver sua própria vida de acordo com as evidências materialistas que a ciência apresenta.

Você tem razão, não é fácil, especialmente quando as crenças religiosas interferem nas estruturas públicas de ensino e pesquisa. Se desejar, veja uma reflexão mais detalhada sobre isto no texto “Entre deus e o orientador ateu”.

Neste difícil território das opiniões, minha sugestão para você é deixar qualquer arrogância científica de lado e lembrar que o surgimento da ciência é muito recente na história. Nossa gente sobreviveu (e muitos povos originários ainda sobrevivem) por dezenas de milhares de anos sem a ciência, portanto, não podemos desprezar outras formas de ver o mundo simplesmente porque a ciência se mostra mais capaz de fazer previsões corretas sobre a realidade material, o que nos permite confiar mais nos satélites, por exemplo, do que nos búzios para prever o clima de amanhã.

Dependendo do campo do conhecimento, a ciência poderá ter respostas mais úteis, por exemplo no enfrentamento de uma pandemia, na criação de vacinas, no aquecimento do planeta ou no funcionamento das doenças neurológicas e psiquiátricas. Por outro lado, a ciência não oferece evidências objetivas sobre o sentido da vida individual ou sobre seus valores morais. Por isso, em determinados assuntos, muito subjetivos, é perda de tempo contrapor a ciência aos conhecimentos tradicionais ou mesmo contra a religião.

Além disso, compreender bem as informações científicas requer uma educação básica, a qual a maioria da população brasileira não tem acesso. Quantos jovens são forçados a abandonar a escola para trabalhar! Por isso precisamos ter respeito pelas pessoas cuja história de vida as levou à falta de escolaridade e de formação científica.

Com muito cuidado, podemos oferecer os dados científicos a quem não compreende a ciência somente quando algo objetivo precisa ser resolvido e a ciência tenha dados confiáveis sobre aquele assunto. Por exemplo, vamos vacinar nossas crianças? Ou, como evitar a gravidez precoce? Quais as vantagens de se oferecer educação sexual para todas as pessoas? Como podemos combater o racismo? Por que mulheres e homens são iguais em capacidades e direitos? Se o planeta está aquecendo, o que devemos fazer?

Solidão e conhecimento

Outro comentário seu, mas não menos importante, foi que “se sente solitária, porque acredita em um ideal que quase ninguém acredita”. Vamos chamar esta situação que descreveu de “solidão filosófica”, algo que acontece progressivamente à medida que vamos vivendo, pensando, estudando e descobrindo coisas sobre o mundo. Essas novas percepções (científicas, por exemplo) podem reduzir o número de pessoas que nos reconheciam anteriormente como parte de seu grupo (religioso, por exemplo) (se desejar, ver aqui um poema sobre isso ).

No entanto, nós precisamos do reconhecimento dos outros para construirmos nossa identidade porque somos, em parte, aquilo que os outros pensam que somos. Então, vivemos nos equilibrando entre o desejo de possuir uma identidade (que nos distingue do grupo) e o desejo de pertencer ao grupo (que tende a nos assimilar e massificar).

Neste sentido, o conhecimento científico adquirido também gera o desejo de pertencer a uma comunidade mais ampla, internacional e acadêmica, na qual vamos querer (novamente) construir nossa identidade, reproduzindo noutro nível o conflito permanente entre ser único e pertencer ao grupo. Enfim, sempre buscaremos por status em qualquer grupo social ao qual desejarmos pertencer, como todo ser humano neurotípico.

Conclusão

Você já percebeu nesta conversa que mesmo quando os temas são aparentemente simples, todos os assuntos são complexos porque a sociedade é complexa, porque nós, humanes, somos complexes (veja só quanta complexidade está envolvida no uso destas palavras “humanes” e “complexes” que usei para incluir os diferentes gêneros!). Ou seja, não temos respostas simples para questões complexas se quisermos resolvê-las de fato, sem preconceitos religiosos nem arrogância científica.

Então, tanto você, uma jovem estudante, quanto eu, um velho médico e cientista, para abordarmos qualquer assunto, devemos estar preparados para enfrentarmos sua complexidade. Parece um longo caminho e, de fato, o é.

No entanto, apesar de todas as dificuldades que conversamos, nossa vida como cientistas pode ser uma fascinante viagem pelas dúvidas e perguntas e, quem sabe, com bastante sorte, poderemos encontrar algumas respostas valiosas.

Entre elas, a resposta para algum tratamento efetivo para os problemas que afligem as pessoas com NF1.

Dr Lor

Junho 2022

 

 

Comentários sobre este texto, que foi lido por estudantes de graduação que estão realizando sua Iniciação Científica sob a orientação do Dr. Bruno Cézar Lage Cota durante seu projeto de doutorado, no qual ele está pesquisando os efeitos do treinamento musical sobre a capacidade cognitiva de adolescentes com NF1.

Gabriela Poluceno (medicina)

Como se tornar uma cientista? A minha resposta como uma jovem que acabou de entrar na universidade, de 22 anos, nova nesse mundo da pesquisa é: ainda não sei!

É um processo que acredito ser longo, trabalhoso, repleto de marcas importantes (será? um doutorado dá a alguém um título de cientista?) e que começa com algo tão simples quanto uma boa pergunta.

Claro que equipamentos de qualidade, uma boa estrutura e financiamento fazem uma diferença enorme nesse contexto (inclusive, infelizmente, define através do lucro a importância de certos estudos), porém acredito que o passo inicial para ser um cientista consista em ter curiosidade e criatividade para realizar boas perguntas.

 Conseguir extrair bons questionamentos de lugares não-usuais e elaborar soluções interessantes e pouco convencionais estão entre as habilidades que acredito que bons cientistas possuem e que basearam as grandes revoluções científicas.

A nossa pesquisa atual é um ótimo exemplo disso, ao utilizar a música e um diferente olhar sobre o processamento auditivo como pontapé inicial para um possível tratamento para a NF1. Ter o interesse e a motivação de afetar positivamente a vida de alguém, melhorar sua qualidade de vida ou até mesmo curar uma doença são atitudes essenciais durante o trajeto de um verdadeiro cientista, de modo que tenha-se sempre em mente que estamos lidando com pessoas e não apenas números, exames ou sintomas.

As questões éticas que isso envolve são inúmeras, e deve-se deixar claro que o sofrimento humano nunca compensa qualquer tipo de conhecimento científico adquirido, e que, ciência sem ética não é ciência.

Agora, de um ponto de vista mais prático, eu diria para que quando entrasse numa universidade, buscasse professores orientadores e uma iniciação científica, mas como exatamente fazer isso? Afeto! Tenha boas relações com seus professores, faça amigos, conheça pessoas dos mais diversos contextos e se assuste para onde a vida te levará! Ciência não se faz sozinho e não se vira cientista sozinho. A beleza da ciência está na diversidade e no coletivo.

Veja meu caso, ter tido aula com a professora Juliana, que em uma de nossas conversas de feedback citou a AMANF, o que me gerou muito interessante e me fez correr atrás do professor Bruno. Ao chegar no Bruno, que me acolheu imensamente e sou muito grata, pude acompanhar diversas consultas e ter um contato próximo com as pessoas participantes da pesquisa, que me trouxe a esse grupo enorme de estudantes, professores e colaboradores!

Por fim, essa é a minha pequena visão até agora de como se tornar um cientista, caminho longo que acredito que tenho muito a percorrer e que ainda sei pouquíssimo sobre.

E por fim, uma reflexão: reconhecer a ignorância não faz parte de ser um verdadeiro cientista?

 

Maíla Araújo Pinto (medicina)

Desde o ensino médio, eu sonhava em me tornar cientista e, com isso, almejava entrar para a iniciação científica no contexto universitário. Dessa forma, assim que entrei na faculdade de medicina fui em busca de como realizar esse sonho. Entretanto, por mais que esse desejo fosse antigo, só consegui de fato entrar para iniciação científica ao terceiro ano da faculdade.

 

A faculdade que ingressei é particular e não obtive resposta acerca do processo da iniciação científica. Por outro lado, sempre que tive a possibilidade conversei com professores demonstrando meu interesse.

 

Em vista disso, minha oportunidade surgiu quando conheci o professor Bruno Cota que em sua apresentação contou sobre seu projeto de doutorado pela universidade federal. O caminho não é fácil, nem antes de entrar, nem durante o processo, mas sem dúvida tem sido uma experiência enriquecedora. Sendo assim, caso se tornar cientista seja de fato um sonho, vale a pena buscar formas de alcançar.

 

Marina Silva Corgosinho (enfermagem)

Acredito que todos que desejam e possuem o gosto pela busca de conhecimento já é um dos caminhos para ser um cientista, além disso é necessário estar matriculado em um curso de ensino superior, e a melhor parte é que pode ser qualquer curso, basta buscar um projeto e um profissional que esteja disposto a caminhar juntamente com você durante todo o processo de construção do projeto, que será em forma de uma iniciação científica.

Ser um cientista vai além de boas notas ou ser um destaque, é ser responsável e ter a certeza de que seus estudos irão beneficiar as pessoas e às vezes podem vir a descoberta da cura de alguma doença ou uma inovação que fará bem a todos. 

 

Thaís Andreza Oliveira Barbosa (fonoaudiologia)

Como o Lor já ressaltou, o ambiente da universidade pública nos proporciona muitas oportunidades de ingressar no meio acadêmico e científico. Eu ainda estou no começo dessa caminhada, mas posso dizer que algo essencial é o apoio dos nossos professores e orientadores nesse processo.

 

Nem sempre decidir pesquisar algo é fácil (arrisco dizer que provavelmente nunca é) e surgem muitas dúvidas e inseguranças ao longo do caminho, então o apoio desses profissionais mais experientes é essencial, bem como a confiança deles de que somos capazes de embarcar nessa oportunidade.

 

Vitória Perlin Santiago (medicina)

Como se tornar um cientista e minha experiência ao longo da iniciação científica.

Como relatado pelo professor Lor, para se tornar um cientista é necessário passar por diversas formações acadêmicas, que demandam tempo, dedicação e recursos, podendo estes serem financeiros ou governamentais.

Como ainda sou estudante no curso de medicina, estou nos primeiros passos de minha carreira científica, ou seja, participando de uma iniciação científica. O projeto de doutorado sobre a relação da música com a Neurofibromatose tipo 1, do professor Bruno, foi introduzido a mim em meu segundo ano de curso, na nossa primeira aula juntos. Naquele momento, despertou em mim características que acho fundamentais para quem quer seguir na área da ciência, a curiosidade acerca do projeto, o entusiasmo de querer fazer parte e a identificação com o tema da pesquisa.

Após diversas reuniões com o professor Bruno em que ele, pacientemente, explicava seus estudos, hipóteses e métodos, ficava cada vez mais clara e consciente a vontade de participar do projeto, principalmente por ser diferente de qualquer outra experiência oferecida ao longo do curso. Quando finalmente começamos a realizar as práticas da pesquisa, ficou ainda mais nítido o quanto o professor Bruno estava empolgado com seu projeto, sempre buscando as melhores soluções, dedicando cada dia mais de seu tempo à pesquisa, se solidarizando com os participantes estudados e nunca estando satisfeito com pequenos resultados, indo cada vez mais profundo em seus estudos. Toda essa dedicação do professor incentivou ainda mais a minha participação, e tenho certeza que das outras voluntárias também, pois vemos nele algo que também é muito essencial para ser um cientista, o propósito de mudar a vida de muitas pessoas com os resultados encontrados.

Estou na pesquisa há quase um ano e meio e posso garantir que está sendo uma experiência única, não só pelos diversos conhecimentos científicos que adquiri, mas pelas pessoas que conheci, histórias que me emocionei e interesses que despertei.

Com isso, pela minha experiência, entendo que para se tornar um cientista, além das formações acadêmicas, é necessário ter muita dedicação e foco em seus objetivos; sempre ter curiosidade e buscar saber cada vez mais, não estando satisfeito com apenas alguns resultados; se identificar com o tema da sua pesquisa, pois isso faz com que você tenha incentivo e interesse em segui-la; encontrar pessoas que estejam dispostas a contribuir em seus estudos e estejam em sintonia com você, pois elas serão essenciais para orientá-lo e ser um apoio e, por fim, sempre lembrar do propósito da pesquisa, para que a essência dela não se perca e você tenha satisfação em seus resultados.

 

Como disse ontem, já está bem comprovado que pesquisa científica geralmente acontece nas universidades públicas.

Para trabalhar numa universidade (que realiza pesquisa de qualidade) você precisará ter sido aprovada num concurso para se tornar professora daquela instituição, a qual, de preferência, deve estar localizada num país (no qual você teve a sorte ou azar de nascer) que valoriza a ciência e o conhecimento tecnológico e científico.

Portanto, é importante lembrar que certos fatores e oportunidades da carreira científica dependem em parte do acaso, o qual, para nossa angústia, não podemos controlar completamente. Por exemplo, você precisa ter a sorte de seu país estar sendo (ou não) governado por pessoas que os eleitores do seu país tiveram a responsabilidade de eleger e que querem construir o futuro da nação por meio de investimentos prioritários na educação e na cultura.

Os investimentos em ciência e educação variam muito de acordo com os governos. Nestes 50 anos em que trabalho na UFMG, uma universidade pública considerada entre as melhores do Brasil, apenas durante os governos do Partido dos Trabalhadores foi que as universidades públicas receberam financiamentos e estímulos para a pesquisa.

Esta maior oferta de recursos públicos federais dos governos petistas entre 2005 e 2016 também contemplou nosso Centro de Referência, o que nos permitiu publicar até 7 artigos científicos num ano. Infelizmente, desde os governos Temer e Bolsonaro estamos novamente sem recursos e nossa publicação científica parou completamente nos últimos dois anos.

Então, respondendo à sua pergunta, é mais provável que novos tratamentos para as NF sejam descobertos em outros países que investem recursos financeiros em ciência e educação, como, por exemplo, os Estados Unidos, onde, portanto, haverá maior probabilidade de ser descoberto um tratamento eficiente.

Sua quarta pergunta:

O fato de eu ser mulher atrapalha meu desejo de ser cientista?

Espero, do fundo do meu coração, que um dia eu possa responder a esta pergunta dizendo: o fato de você ser mulher não afetará sua carreira científica. Mas, por enquanto, infelizmente, sabemos que as mulheres enfrentam uma cota extra de dificuldades profissionais causadas pelo nosso machismo estrutural.

Para entender melhor a situação das mulheres no mundo, veja o aprendizado que tive com a feminista Ângela Davis e uma história impressionante sobre o apagamento dos trabalhos de uma grande cientista, a Mary Hesse.

No entanto, apesar de ainda vivermos numa sociedade machista, você poderá encontrar esperança para seguir seu projeto pessoal nas palavras de mulheres pensadoras e feministas, como a cientista Natália Pasternak, por exemplo.

Amanhã responderei sua quinta pergunta sobre o conflito entre querer ser cientista numa família religiosa.

 

 

 

Post #2

Esta é a segunda parte da conversa com uma jovem estudante (MD, de 17 anos), que gostaria de saber como poderia se tornar uma cientista para descobrir a cura para a neurofibromatose do tipo 1 para um dia poder ajudar seu irmão mais novo, que nasceu com a doença. Nossa correspondência foi muito interessante e então, com a autorização de MD, resumi abaixo algumas perguntas e respostas que foram surgindo durante nossa conversa, porque talvez elas sejam úteis a outras pessoas.

A segunda pergunta de MD:

Como posso me tornar cientista?

O caminho para se tornar uma cientista, capaz de descobertas importantes em algum momento de sua história, geralmente começa com a participação num programa de iniciação científica, envolvendo-se durante o curso de graduação numa pesquisa sob a orientação de alguém mais experiente cientificamente, o que acontece na maioria das vezes numa instituição pública de ensino universitário.

Para chegar na iniciação científica, a pessoa deve entrar para uma universidade, e para isso geralmente consegue ter boas notas no ensino médio e no fundamental, o que habitualmente exige condições financeiras suficientes por parte da família (na qual você teve a sorte ou o azar de nascer) e boa saúde em geral e capacidade cognitiva (que muitas vezes pode estar prejudicada, como no caso de seu irmão).

Superadas essas etapas, que não são triviais, você poderá concluir sua graduação e em seguida ingressar num mestrado por uns dois anos, depois num doutorado por mais uns 2 ou 3 anos, ao final do qual estará pronta para fazer suas próprias perguntas científicas, entre elas, por exemplo, como curar uma determinada complicação da NF1.

É claro que, para obter respostas para suas questões científicas, com seu diploma de doutora, você precisará de condições de trabalho adequadas, com liberdade de pensamento e estrutura para pesquisa, que só podem ser oferecidas por universidades públicas, e contar com recursos financeiros (também geralmente públicos) para custear as despesas com a sua pesquisa.

Então, respondendo à sua pergunta, para se tornar uma cientista, você deve seguir algumas etapas no aprendizado dos diversos conhecimentos necessários para fazer uma pergunta relevante sobre as NF e tentar respondê-la com os métodos científicos.

Amanhã responderei sua terceira pergunta: É possível pesquisar a cura da NF no Brasil?

 

 

Introdução

Conversei por e-mail algumas vezes com uma jovem estudante (MD, de 17 anos), que gostaria de saber como poderia se tornar uma cientista para descobrir a cura para a neurofibromatose do tipo 1 para que um dia ela possa ajudar seu irmão mais novo, que nasceu com a doença.

Nossa correspondência foi muito interessante e então, com a autorização de MD, resumi abaixo algumas perguntas e respostas que foram surgindo durante nossa conversa, pois talvez elas sejam úteis a outras pessoas.

Antes de tudo, MD, quero reafirmar que admiro o seu amor fraterno e seu desejo de contribuir para a saúde de seu irmão e compartilho do seu sonho de que sejam descobertos, o mais breve possível, tratamentos capazes de corrigir as dificuldades de aprendizado e outros problemas que ele apresenta. Como você sabe, uma de minhas filhas nasceu com NF1 e é por isso que espero e trabalho para que este sonho aconteça.

Tentarei mostrar os diversos passos que imagino que sejam necessários para um dia descobrirmos tratamentos eficazes para as NF. É um caminho longo e complexo, mas ele pode ser percorrido com a alegria e o entusiasmo que sentimos quando estamos fazendo algo em benefício das outras pessoas.

Para concluir esta introdução, pode ser que, daqui a alguns anos, você se encontre realizando outras pesquisas ou mesmo envolvida em atividades profissionais sem qualquer relação aparente com a NF1, mas não se decepcione, pois o acaso é fundamental em nossas vidas e pode mudar completamente os nossos projetos. Eu mesmo estou aqui trabalhando com as neurofibromatoses por causa de um acaso, uma variante patogênica que ocorreu aleatoriamente no espermatozoide (ou no óvulo) que deu origem à minha filha. No entanto, a esperança de que podemos controlar o futuro nos ajuda a procurar os melhores caminhos, a pensarmos nos nossos semelhantes e no nosso planeta e a agirmos eticamente.

 

Atenção

Publicarei a partir de amanhã esta nossa conversa em mais 3 episódios, para não ficar cansativa a leitura. Vou falar mais sobre a NF do tipo 1, por ser a mais comum (1 em cada 3 mil pessoas na NF1) do que sobre a NF do tipo 2 (1 em cada 20 mil pessoas) e a Schwannomatose (1 em cada 40 mil pessoas). No entanto, a maioria das respostas para a NF1 nesta conversa se aplica às demais neurofibromatoses.

Ao final, apresento os comentários sobre este texto, que foi lido por algumas estudantes que estão realizando sua Iniciação Científica sob a orientação do Dr. Bruno Cézar Lage Cota, que está pesquisando os efeitos do treinamento musical sobre a capacidade cognitiva de adolescentes com NF1. Agradeço as leituras de Gabriela Poluceno (medicina), Maíla Araújo Pinto (medicina), Marina Silva Corgosinho (enfermagem), Thaís Andreza Oliveira Barbosa (fonoaudiologia) e Vitória Perlin Santiago (medicina).

Agradeço as leituras atentas de Bruno Cézar Lage Cota e Daniel Maier dos Santos.

 

Post #1

Sua primeira pergunta:

Por que ainda não existem medicamentos para tratar a NF1?

É uma pergunta muito importante e que é feita por muitas pessoas e inclusive já comentei este assunto em nosso blog.

Você tem razão em querer saber o porquê, depois de tantos anos estudando a NF1, nós ainda não conhecemos nenhum medicamento cientificamente comprovado para sua cura. Realmente, a doença é conhecida há mais de dois séculos e ainda não sabemos como evitar ou corrigir o seu aparecimento. O primeiro centro de atendimento especializado em NF foi criado em Austin, no Texas, em 1978 pelo nosso amigo e orientador Dr. Vincent M. Riccardi.

Então, vamos pensar em quais seriam os motivos para esta falta de opções terapêuticas até o momento.

NF1 é uma doença rara

A primeira dificuldade para encontrarmos medicamentos eficazes para a NF1 é o fato de ser uma doença que, apesar de atingir cerca de 80 mil brasileiros, é considerada rara e faz parte das mais de 5 mil doenças raras já identificadas que afetam os seres humanos.

É compreensível que a maioria dos médicos não tenha interesse em estudar as doenças raras, pois imaginam que jamais encontrarão em sua vida profissional uma daquelas doenças. Então, por que gastar o precioso tempo de estudo na faculdade com uma doença rara e não com uma doença comum?

Este desinteresse aconteceu inclusive comigo, quando era estudante de medicina (ver aqui meu relato sobre este episódio) e explica, em parte, porque a maioria dos profissionais de saúde desconhece as doenças raras, incluindo a NF1, apesar de ser mais comum do que o diabetes do tipo 1.

A raridade das doenças também reduz o interesse dos cientistas e laboratórios farmacêuticos em desenvolver novas técnicas e medicamentos, porque seriam consumidos por número potencialmente pequeno de pessoas que comprariam aqueles produtos. No sistema capitalista, todas as atividades são orientadas para a produção de lucro e, se o medicamento for comprado por pouca gente, os ganhos financeiros da indústria de saúde serão pequenos. Para conhecer melhor este assunto, no futuro vale a pena ler “Medicamentos mortais e crime organizado – como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica”, um livro de Peter Gotzsche (2014), premiado pela Associação Médica da Inglaterra.

Se não há interesse financeiro na NF1, a indústria da saúde não promove congressos sobre o assunto, não faz propaganda, não patrocina eventos e publicações científicas e assim a doença continua sem uma representação social, ou seja, desconhecida.

NF1 é uma doença complexa

Além de ser rara, a NF1 é uma doença genética, hereditária, congênita, limitante, progressiva e potencialmente fatal. E se torna mais complexa porque diversos órgãos e sistemas podem ser envolvidos. Por exemplo, a pele, o sistema nervoso central, os nervos, os músculos e os ossos podem apresentar alterações ou problemas no seu desenvolvimento. Pode haver dificuldades de aprendizado e de comportamento. Podem surgir tumores e ocasionalmente haver transformação maligna.

Para complicar, a NF1 apresenta uma grande variabilidade na sua manifestação clínica, ou seja, cada pessoa com a doença tem uma doença muito diferente das outras, mesmo numa mesma família que compartilha a mesma variante patogênica. Até irmãos gêmeos univitelinos (com a mesma variante patogênica NF1 e o mesmo conjunto de genes) evoluem com manifestações diferentes da NF1.

Além disso, a evolução da doença ao longo do tempo é praticamente individual, ou seja, as manifestações e complicações ocorrem de forma imprevisível.

Somando-se a raridade, a complexidade, a variabilidade de expressão e a evolução imprevisível, tudo isso torna muito difícil formarmos grupos homogêneos de voluntários para estudarmos cientificamente algum medicamento ou tratamento nas pessoas com NF1.

Assim, por mais forte que seja o nosso desejo de ajudar, descobrir a cura para uma doença RARA E COMPLEXA é um daqueles problemas complicados para os quais não temos respostas simples ou fáceis. Então, com esta cautela em mente, tentarei responder as outras questões que você trouxe, lembrando algumas coisas que aprendi no último meio século trabalhando como médico e cientista.

Receio que algumas das minhas informações a seguir possam parecer obstáculos muito difíceis, mas espero que meu depoimento seja uma referência realista que permita a você construir seu próprio plano de navegação por mares ainda desconhecidos. Sem esquecer do acaso, lembra?

Amanhã falaremos sobre sua segunda pergunta: Como posso me tornar cientista?

O professor e amigo de tantos de nós, o querido médico Enio Cardillo Vieira, faleceu ontem subitamente, como ele esperava que assim fosse, sem agonias nem sofrimentos finais.

Também de acordo com seu desejo formalmente documentado, seu corpo foi doado à Faculdade de Medicina para que estudantes possam aprender com ele, numa derradeira aula, uma lição de paixão pelo ensino e pela universidade pública.

Espero que as pessoas jovens e aprendizes que terão este privilégio sejam capazes de imaginar o imenso conhecimento científico acumulado no seu cérebro, que permaneceu lúcido para além dos oitenta anos, com senso de humor e visão crítica do mundo.

Se houvesse algum instrumento de neurofisiologia sensível o bastante para reproduzir algumas das memórias prediletas do Enio, as pessoas perceberiam ecoando pela sala de anatomia alguns fragmentos das músicas que ele tanto amava e estudava (e apoiava nas pesquisas – ver abaixo).

Também é possível que jovens estudantes, diante do seu corpo magro, mas forte e esbelto pelas caminhadas diárias e nutrição exemplar, reconheçam nele as moléculas bioquímicas do mapa metabólico sobre o qual Enio construiu a sua visão materialista e pragmática da vida.

Mas, certamente, ao abrirem o peito que inspirou ética e expirou justiça em todas as suas ações, estudantes e professores perceberão a grandeza e a generosidade contida no coração do Enio.

Encontrarão uma cardiomegalia (*) amorosa, congênita e incurável.

Obrigado, professor Enio, pelo seu carinho para com todas as pessoas.

Dr. Lor

Enio e Elza, benfeitores da AMANF

Na festa de aniversário conjunta que o professor Enio e sua esposa Elza realizaram em 2013, eles pediram a todas as pessoas que quisessem oferecer presentes ao casal que o fizessem na forma de uma doação financeira para a AMANF.

Este recurso permitiu a AMANF funcionar durante cerca de 2 anos, ajudando famílias carentes e financiando o projeto de pesquisa do Dr. Bruno Cezar Lage Cota sobre dificuldades musicais nas pessoas com NF1 (ver aqui o resultado da pesquisa: VER AQUI )

Por isso, a nossa comunidade de famílias e portadores de neurofibromatoses será sempre grata ao casal Enio e Elza.

 

(*) Observação: cardiomegalia é um termo técnico em medicina para dizer coração grande.

 

 

Recebemos algumas perguntas de uma família de Curitiba, que deseja esclarecer os problemas de voz em sua filha, que nasceu com NF1.

Para responder a estas dúvidas, convidamos a estudante Thaís Andreza, que está cursando Fonoaudiologia na Faculdade de Medicina da UFMG e é Bolsista de Iniciação Científica sob a orientação do Doutorando Bruno Cezar Cota Lage em sua pesquisa sobre terapia musical para as dificuldades cognitivas de adolescentes com NF1.

Inicialmente, apresento as dúvidas da família e, em seguida as respostas da Thaís, a quem agradecemos pela brilhante colaboração.

Perguntas da família

A questão que gostaríamos de compartilhar e para a qual solicitamos seu esclarecimento está relacionada com a fala da nossa filha de 5 anos, portadora de NF1.
Nossa filha possui a voz anasalada desde muito cedo e mais recentemente, dê uns 6 meses para cá, iniciou sessões de fonoaudiologia com exercícios diários. Ela tem evoluído, mas de forma muito lenta, a ponto da fonoaudióloga sinalizar um término de sessões devido insuficiência/incompetência velofaríngea (foi a primeira vez que nos deparamos com esse termo).

Pesquisando na internet sobre insuficiência/incompetência velofaríngea, encontramos associação com neurofibromatose: VER AQUI
O assunto nos trouxe várias dúvidas:

Existe mesmo correlação da voz anasalada com a NF1?

Esse problema persiste durante a vida adulta ou é mais restrito à infância?

Parece existir uma diferença entre insuficiência e incompetência velofaríngea.

“Insuficiência” talvez esteja mais associado com a anatomia das estruturas que impedem o fechamento velofaríngeo, enquanto que “incompetência” mais relacionado com questões de ordem neurológica.

Seria isso? De qualquer forma, no caso de existir correlação com a NF1, o mecanismo seria neurológico?

O tratamento com fonoaudiologia tem se mostrado efetivo para tratar a voz anasalada em crianças com NF1?

Há algum estudo/histórico de crianças com NF1 que precisaram se submeter a algum tipo de intervenção cirúrgica?

O otorrino que nos atendeu sugeriu fazer um exame de nasofibroscopia, porém, com a criança acordada e falando. Por se tratar de um exame invasivo e desconfortável para uma criança de 5 anos ficamos na dúvida se o momento seria adequado ou se aguardamos mais um tempo.  

Praticamos exercícios diários de exercícios vocais: A-ÃHN, KÃ-GÃ, sopro de língua de sogra, respiron invertido (ela assopra em vez de inspirar) e tubo laxvox. Adicionalmente, não percebemos qualquer desvio no aspecto da audição.

Enfim, neste momento, temos buscado informações que possam contribuir para um direcionamento adequado seja com especialistas, exames etc.

Muito obrigado.

Respostas da Thaís Andreza

Prezades MR e SS,

Começo respondendo à pergunta principal de vocês: sim, existem correlações entre a ressonância predominantemente nasal em indivíduos com NF1.

Um estudo preliminar de Souza et al (2009), realizado no Centro de Referência em Neurofibromatose de Minas Gerais (CRNF-MG), demonstrou que 36% dos pacientes avaliados tinham hipernasalidade leve, além de mobilidade de palato diminuída, de forma regular (86%) entre outras alterações fonoaudiológicas associadas. A conclusão deste estudo foi de que as alterações fonoaudiológicas apresentadas pelos indivíduos com NF1 eram relacionadas às alterações neurológicas, que levam à hipotonia muscular orofacial e laríngea.

Outro estudo, realizado com indivíduos adultos com NF1 na Bélgica, relatou que, em relação ao grupo controle, os indivíduos com NF1 apresentaram maiores scores de nasalidade (COSYNS, et al. 2011).

Alguns anos depois, em 2013, a fonoaudióloga Dra. Carla Menezes da Silva estudou as alterações fonoarticulatórias em indivíduos com NF1, também no CRNF-MG, e, novamente, encontrou uso nasal excessivo, em concordância com a literatura (SILVA, 2013).

Além disso, encontrei outro estudo, mais antigo, aparentemente pioneiro na pesquisa da hipernasalidade na neurofibromatose, realizado em 1981, que analisou 7 pacientes e todos apresentaram hipernasalidade, em diferentes níveis, causada por “insuficiência velofaríngea”. Entretanto, em nenhum dos pacientes havia evidências de anormalidade estrutural do palato duro, palato mole, faringe ou coluna cervical. Apenas um dos casos apresentava alterações orofaciais, mas não na faringe e no palato. Ao mesmo tempo, o estudo notou que era improvável que essa disfunção fosse por conta de alguma neoplasia no sistema nervoso, pois não havia indícios disso. Assim, ele finaliza sugerindo que indivíduos com neurofibromatose parecem ter um risco aumentado de fala hipernasal, mesmo na ausência de anormalidades estruturais ou achados neurológicos, e que a patogênese da insuficiência velofaríngea na neurofibromatose pode não ser evidente. (POLACK e SHPRINTZEN, 1981).

A disfunção velofaríngea (DVF) é um distúrbio em que não há o fechamento velofaríngeo adequado durante a fala e/ou deglutição. A incompetência velofaríngea acontece quando a estrutura está adequada, porém a função (mobilidade) não está.

Já a insuficiência velofaríngea acontece quando a anatomia está inadequada, não há estrutura o suficiente para que o fechamento ocorra da maneira adequada. Em casos de crianças com fissuras labiopalatinas pode acontecer, ainda, da cirurgia de palato acontecer após o desenvolvimento da fala e, então, a criança continuar com o padrão de fala que aprendeu antes da cirurgia. Na NF1, um estudo realizado em 2012 verificou se havia uma associação entre insuficiência velofaríngea e pacientes com NF1 e encontrou que, dos 21 pacientes analisados, 11 apresentaram algum grau de insuficiência. (ZHANG et al., 2012).

Para avaliar se o indivíduo tem uma incompetência ou uma insuficiência, precisamos de um exame objetivo que nos mostre o funcionamento velofaríngeo. Para isso, a nasofibroscopia e a videofluoroscopia podem ser utilizadas, complementando a avaliação feita pelo fonoaudiólogo. Saber de qual alteração se trata é importante para pensarmos em como a terapia será feita. No caso da NF1, não podemos descartar a possibilidade de neurofibromas na região oral (apesar de raros). Caso algum neurofibroma acometesse a região de fechamento velofaríngeo, seria necessária uma avaliação médica para analisar a necessidade de sua retirada.

Um estudo de 2017 relatou um caso raro de insuficiência velofaríngea progressiva como sintoma na Neurofibromatose do tipo 1. Esse caso específico apresentou, também, alterações de ressonância magnética que evoluíram para uma neurocirurgia, mas, é bom dizer novamente, foi um caso raro. (Johnson AB, Phillips JD, Bright KL, Ocal E, Hartzell LD, 2017).

Por outro lado, procurando no portal periódicos CAPES e no Google Acadêmico, não encontrei artigos a respeito da efetividade do tratamento de disfunção velofaríngea em NF1. Assim, por enquanto, a melhor estratégia terapêutica pode ser decidida por um(a) fonoaudiólogo(a) especialista em disfunção velofaríngea, que avaliará melhor cada caso e poderá pensar em estratégias que podem ser utilizadas.

Espero que minhas respostas tenham sido úteis e me coloco à disposição para outros esclarecimentos.

 

Referências

COSYNS, M. et al. Voice characteristics in adults with neurofibromatosis type 1. Journal of Voice, v. 25, n. 6, p. 759-764, 2011c.

Johnson AB, Phillips JD, Bright KL, Ocal E, Hartzell LD (2017) Progressive Velopharyngeal Insufficiency: A Rare presenting Symptom of Neurofibromatosis Type 1. J Otol Rhinol 6:6. doi: 10.4172/2324-8785.1000328

Pollack, Michael A.; Shprintzen, Robert J. Velopharyngeal insufficiency in neurofibromatosis, International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology. Volume 3, Issue 3, 1981, Pages 257-262, ISSN 0165-5876. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0165587681900094

Silva, Carla Menezes da. Alterações fonoarticulatórias em indivíduos com neurofibromatose tipo 1. Belo Horizonte, 2013. Dissertação de doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Aplicadas à Saúde do Adulto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

Souza, Juliana Ferreira de et al. Neurofibromatose tipo 1: mais comum e grave do que se imagina. Revista da Associação Médica Brasileira [online]. 2009, v. 55, n. 4 [Acessado 17 Abril 2022] , pp. 394-399. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-42302009000400012>. Epub 03 Set 2009. ISSN 1806-9282. https://doi.org/10.1590/S0104-42302009000400012.

ZHANG, I. et al. Neurofibromatosis and velopharyngeal insufficiency: is there an association? Journal of Otolaryngology – head & neck surgery, v. 41, p. 58-64, 2012.