Tenho grande satisfação em publicar mais um dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em dezembro de 2024, com o texto  da psicóloga Alessandra Cerello, profissional experiente e uma das cientistas pioneiras no atendimento psicoterápico de pessoas com NF1. Muito obrigado, em nome de toda a equipe do CRNF.

Dr. Lor

 

Alessandra Craig Cerello

Psicóloga e Mestre

pelo Programa de Pós Graduação

em Saúde do Adulto da FM da UFMG

 

 

Nos capítulos já publicados, foi discutido como a NF1 afeta física e cognitivamente, por acometer diversos sistemas do organismo: nervoso, musculoesquelético, cardiovascular e endócrino. Neste capítulo, veremos como essas alterações podem afetar as pessoas com NF1 e seus familiares no que se refere aos aspectos psicoemocionais.

O funcionamento psicológico do ser humano é multideterminado, sendo influenciado por fatores intrínsecos genéticos (biológicos) e fatores extrínsecos ambientais atrelados ao contexto histórico, que são aprendidos socialmente. Nos últimos 30 anos, diversos autores vêm buscando a interface entre a NF1 e aspectos psíquicos 1,2,3,4 e efeitos na qualidade de vida 5,6.

Desde o nascimento, o ser humano é incluído em grupos sociais: a família, inicialmente, posteriormente escola, comunidade, grupo do trabalho e outros. A partir da interação com o outro, as percepções experimentadas pelos sentidos dos objetos do mundo e de si mesmo são nomeadas e, assim, progressivamente diferenciadas e classificadas.

Essas informações vão se somando, e o indivíduo vai absorvendo e ajustando como as características atribuídas a ele se assemelham ou se diferenciam das outras pessoas, para que a construção daquilo que é conhecido por “eu”, por “mim”, por “mim mesmo” seja formada 7.

Por ser um processo construído nas e pelas relações ao longo da vida, essas informações assimiladas não são nem apenas passivas e nem puramente objetivas, mas contém valores e outros aspectos subjetivos dos outros. Segundo Mead (2018), a formação da identidade é um processo de interiorização do julgamento do outro 8.

Como isso, seus derivados – o autoconceito e a autoestima – também adquirem valorização ou desvalorização, seja geral ou específica para algumas habilidades ou pela falta delas a partir das experiências vividas com essas interações.

A avaliação do autoconceito nos domínios geral e habilidades específicas demonstrou pior escore no domínio de habilidades físicas em crianças com NF1 9,10 e competência social, com aumento das chances de problemas sociais e emocionais 9. Para adolescentes, o autoconceito também foi pior em habilidades físicas, matemática e autoestima geral, tanto para os grupos com NF1 apenas e nos grupos com NF1 associada a dificuldades de aprendizagem e TDAH 10.

Pior autoestima nas pessoas com NF1 em relação a pessoas sem NF1 e irmãos sem a doença 11,12 foi descrita e associada a dificuldade de aprendizagem 10. Apesar disso, autoestima elevada em alguns participantes foi observada 12,13, e esteve associada a ter amigos com NF1, frequentar grupos de apoio para pessoas com NF1 e ter recebido orientação genética 12.

A preocupação com as alterações estéticas pode ser intensificada em algumas situações, como na puberdade, período em que as pessoas jovens estão mais preocupadas com seu corpo e quando os neurofibromas cutâneos costumam aumentar e ficar mais visíveis 1,10. Pode também ser diferente de acordo com algumas culturas, como caso descrito por Rozario (2007) de uma mulher indiana em que os impactos sociais da NF1 tiveram efeitos amplificados em suas vivências incluindo na de escolha de parceiros e casamento na vida adulta 14.

As vivências de estigmatização são uma forma de discriminação na qual a falta de aceitação social do indivíduo por uma comunidade ou cultura implica que o outro enxerga a diferença como uma inferiorização 15. A NF1 pode aumentar a chance de que isso ocorra tanto pela questão estética das alterações físicas, como pela redução da funcionalidade no que diz respeito a alterações cognitivas e de linguagem, impactando na autoestima.

Um artigo de Koerling (2020) traz um relato que ilustra outra situação comum a pessoas com NF1: a dificuldades para se ter amigos 16. Após já ter sido examinado por quatro estudantes de medicina em um hospital-escola, David respondeu a uma estudante que identificou que ele poderia ter NF1:

“Ou como eu chamo, Sem Amigos 1” Koerling (2020) (‘or as I call it, No Friends 1’ – pág 2) 16.

Hummelvoll & Antonsen (2013) avaliaram que em geral os adultos consideraram ter amigos e que muitos deles descreveram que a questão das amizades melhorou na vida adulta em relação à infância, incluindo a presença de amigos com NF1 17.

O retraimento social descrito na NF1 2,14,17 ainda não está completamente explicado na literatura. Não se sabe se resulta exclusivamente das vivências de estigmatização e bullying ou se alguma alteração na expressão genética interfere 3, por exemplo, a partir de problemas cognitivos gerais derivados de dificuldade na velocidade do processamento de informações e déficit do controle cognitivo, resultando em pior performance 4.

A influência em aspectos psicoemocionais, de forma geral, não aparentam estar necessariamente associados com a gravidade física da doença 5,6,9,10,11,17,19,20 exceto em quando a gravidade foi relacionada ao funcionamento neurocognitivo 4,18.

Já quando a avaliação da doença é comparada com a visibilidade dos sintomas, os dados são mais concordantes em apontar associações 1,2,6,17,19. Ainda assim, há discordâncias. Enquanto para Caballo et al. (2023) a maior visibilidade dos sintomas foi associada a ansiedade severa 21, outros resultados não associaram os sintomas emocionais à visibilidade do sintoma, mas a dificuldades de aprendizagem 12,18.

Em estudo qualitativo realizado com perguntas semiestruturadas realizado no Centro de Referência em Neurofibromatose-MG (CRNF-MG) no Brasil, alguns entrevistados descreveram o enfrentamento da doença como sendo “normal, natural”, enquanto outros focaram em sentimentos negativos de medo e consequências negativas da doença por limitações e constrangimentos sociais, reforçando que a experiência com NF1 varia de sujeito para sujeito 22.

Sintomas psicológicos classificados como internalizantes (que são aqueles nos quais a reação é voltada da pessoa para ela mesma)  como ansiedade, depressão e retraimento social 5,9,18,19 foram descritos com mais frequência e concordância entre os autores, que sintomas classificados como externalizantes (aqueles em que a reação é direcionada principalmente a uma ação que repercute no ambiente de um indivíduo), como impulsividade e agressividade 18 que foram menos presentes ou presente apenas em idades mais precoces 4.

A depressão e a ansiedade são condições presentes na população em geral. O aumento dos transtornos ansiosos e depressivos vem sendo associado a questões contemporâneas, como o estilo de vida atual da sociedade, centrada em alta performance, em padrões estéticos e comportamentais, nos quais há valorização da pessoa multitarefas, extrovertida e comunicativa. Na NF1, a presença de doenças psiquiátricas, como depressão, ansiedade e estresse foi associada a reações subjetivas diante das desfigurações decorrentes das alterações estéticas, vivências de estigmatização e alterações no estilo de vida 19.

Enquanto a ansiedade tem se mostrado como um achado concordante entre os autores, os dados relativos à depressão apresentaram menos concordância 4,9,18,23. Possíveis explicações apresentadas são diferentes delineamentos dos estudos, como faixa etária estudada e critérios para a mensuração dos dados. Por exemplo, há diferenças entre as respostas quando as escalas de avaliação são preenchidas pelos profissionais, pelos familiares, pelos professores ou pela própria pessoa com NF1 18,24,25.

Uma alteração mais branda do humor, a distimia, foi avaliada como diagnóstico psiquiátrico mais comum em avaliação longitudinal de 12 anos 13, que também indicou que vivências de estigmatização podem estar envolvidas. Sinais mais graves de depressão com ocorrências de ideações de autoextermínio (IAE) foram descritas em 16% das crianças com NF1 em comparação com 6% dos irmãos sem a doença 9 e em 45% de entrevistados adultos com NF1 contra 10% dos controles sem NF1 26.

Há ainda muito desconhecimento sobre a NF1, o que dificulta a identificação de sinais e sintomas por familiares e o diagnóstico da NF1 por profissionais 22,27. Essa falta de informações e referências sobre a NF1 para a sociedade leva a uma situação de invisibilidade social da doença apesar da visibilidade dos sintomas físicos e comportamentais 22.

Alguns centros de tratamento têm utilizado mídias sociais como instrumento de  divulgação de informações técnicas e mesmo como meio para favorecer o encontro de pessoas com NF1 e familiares, como a Associação Mineira de Apoio às Pessoas com Neurofibromatoses (AMANF). Isso é importante, sobretudo no que se refere à ampliação do acesso a informações e construção de redes de suporte e troca de experiência.

Se por um lado a tecnologia pode aproximar as pessoas e há ganhos válidos com isso (teleconsultas, facilitação do acesso de pessoas com menor mobilidade etc.), algumas pessoas que não se sentem capazes de se utilizar dela podem sentir o efeito contrário, aumentando o sentimento de auto culpabilização e solidão para quem já se sentia à margem. Além disso, a exposição maior pode ser mais um canal para que se experimente bullying, o cyberbullying 21.

Em resumo, apesar das diferenças individuais, em geral o impacto psicológico da NF1 para as pessoas com NF1 é:

  • Avaliado de forma diferente por profissionais, familiares ou a própria pessoa;
  • Menos afetado pela gravidade da doença do que pelas dificuldades de aprendizagem, pela visibilidade dos sintomas os constrangimentos sociais vividos em situações de estigmatização, discriminação e bullyng;
  • Diferente ao longo das etapas da vida (infância, adolescência, vida adulta);
  • Manifestado mais comumente por sintomas psicológicos internalizantes, em destaque para a ansiedade, do que sintomas externalizantes.

Propostas

Diante dos impactos psicossociais da NF1, Johnson et al. (1999) propõe quatro ações 9:

1 – orientar os pais de crianças com NF1 quanto risco aumentado de problemas sociais e afetivos;

2 – avaliar periódica das crianças com NF1 e tratamento dos problemas de linguagem, motores e cognitivos, visando à possível redução de problemas sociais e emocionais;

3 – encaminhar para avaliação psiquiátrica e/ou psicológica padronizada nos casos de problemas sociais e afetivos;

4 – ampliar as possibilidades de intervenção terapêutica pelos centros de tratamento, buscando prevenir e tratar esses problemas.

Tendo em vista que os familiares também estão sob estresse e respondem emocionalmente às questões atreladas à NF1 17,27 faz-se importante um espaço de escuta e acolhimento para eles. Além disso, um suporte familiar adequado favorece que o apoio social para a pessoa com NF1 seja de melhor qualidade, possibilitando efeitos protetores na qualidade de vida das crianças e adolescentes com NF1 5 e mesmo de adultos 23.

A imprevisibilidade do desenvolvimento da doença é um fator que a torna difícil para se compreender e para se enfrentar 1 além de mais ansiogênico 2. Por essa razão, o olhar dos profissionais é fundamental na identificação dos sinais psicoemocionais, para orientação e encaminhamentos adequados. O relato de David 16 relembra de uma ação simples, mas nem sempre bem utilizada. Uma pergunta cotidiana: “como você está se sentindo?” acompanhada por uma abertura sincera pelo profissional a uma escuta atenta da pessoa é indispensável na identificação precoce ou mesmo a tempo de fatores que possam sugerir sofrimento psíquico, incluindo aqueles com maior intensidade. Essas respostas podem incluir as IAE. Nesse caso, o profissional deve estar preparado e conhecer sobre a rede de atendimento psicossocial local para referenciar a pessoa ao cuidado necessário.

Acerca das IAE alguns mitos precisam ser desfeitos, como orienta a Cartilha de Prevenção ao Suicídio do Ministério da Saúde: falar sobre morrer não incentiva um ato de tentativa de autoextermínio, ao contrário, pode auxiliar a apaziguar a pessoa com uma escuta acolhedora e mesmo prevenir o ato 28.

 

Referências

1- Mouridsen SE, Sorensen SA. Psychological aspects of von Recklinghausen neurofibromatosis (NFl). J Med Genet. 1995; 32:921-4.

2- Ablon J. Living with genetic disorder: The impact of Neurofibromatosis 1. Auburn House, Westport, CT.  1999

3- Martin S, Wolters P, Baldwin A, Gillespie A, Dombi E, Walker K, Widemann B. Social-emotional functioning of children and adolescents with neurofibromatosis type 1 and plexiform neurofibromas: Relationships with cognitive, disease, and environmental variables. Journal of Pediatric Psychology.  2012; 37(7), 713–724.

4- Huijbregts SC, Sonneville LM. Does cognitive impairment explain behavioral and social problems of children with neurofibromatosis type 1? Behav Genet. 2011; 41:430–436.

5- Graf A, Landolt MA, Mori AC, Boltshauser E. Quality of life and psychological adjustment in children and adolescents with neurofibromatosis type 1. The Journal of Pediatrics. 2006; 149(3), 348–353.

6- Page PZ, Page GP, Ecosse E, Korf BR, Leplege A, Wolkenstein P. Impact of neurofibromatosis 1 on Quality of Life: A cross-sectional study of 176 American cases. American Journal of Medical Genetics Part A. 2006; 140A(18), 1893–1898.

7- Papalia DE, Olds SW, Feldman RD. Desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed, 2000. 684p.

8- Mead GH. Mente, self e sociedade: edição definitiva. Petrópolis: Vozes, 2021. 424p

9- Johnson NS, Saal HM, Lovell AM, Schorry EK. Social and emotional

problems in children with neurofibromatosis type 1: Evidence and proposed interventions. J Pediatr. 1999; 134:767–772.

10- Barton B, North K. The self-concept of children and adolescents with neurofibromatosis type 1. Child Care Health Dev. 2007; 33:401–408.

11- Wang D, Smith K, Esparza S, Leigh F, Muzikansky A, Park E, et al. Emotional functioning of patients with neurofibromatosis tumor suppressor syndrome. Genetics in Medicine.  2012; 14(12), 977–982.

12- Rosnau K, Hashmi SS, Northrup H, Slopis J, Noblin S, Ashfaq M. Knowledge and Self-Esteem of Individuals with Neurofibromatosis Type 1 (NF1). Journal of Genetic Counseling. 2016; 26(3), 620–627.

13- Zöller ME, Rembeck B. A psychiatric 12-year follow-up of adult patients with

neurofibromatosis type 1. J Psychiatr Res. 1999; 33: 63–68.

14- Rozario S. Growing Up and Living with Neurofibromatosis1 (NF1): A British Bangladeshi Case-study. Journal of Genetic Counseling.  2007; 16(5), 551–559.

15- GOFFMAN E. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Quarta Edição. LTC. Rio de Janeiro, 2008. 158p.

16- Koerling AL. No friends 1. Orphanet Journal of Rare Diseases. 2020; 15(1).

17-  Hummelvoll G, Antonsen KM. Young adults’ experience of living with neurofibromatosis type 1. J. Genet. Couns. 2013; 22, 188–199.

18- Noll RB, Reiter-Purtill J, Moore BD, Schorry EK, Lovell AM, Vannatta K, Gerhardt CA. Social, emotional, and behavioral functioning of children with NF1. Am J Med Genet Part A. 2007; 143:2261–2273.

19- Wolkenstein P, Zeller J, Revuz J, Ecosse E, Leplege A. Visibility of

neurofibromatosis 1 and psychiatric morbidity. Arch Dermatol.  2003; 139: 103–104.

20- Sebold CD, Lovell A, Hopkin R, Noll R, Schorry E. Perception of disease severity in adolescents diagnosed with neurofibromatosis type 1. J. Adolesc. Health. 2004; 35, 297–302.

21- Cavallo ND, Maggi G, Ferraiuolo F, Sorrentino A, Perrotta S, Carotenuto M, Santangelo G, Santoro C. Neuropsychiatric Manifestations, Reduced Self-Esteem and Poor Quality of Life in Children and Adolescents with Neurofibromatosis Type 1 (NF1): The Impact of Symptom Visibility and Bullying Behavior. Children. 2023; 10, 330.

22- Cerello AC, Gianorlodi-Nascimento IF, Moreira AH, Rocha VS, Ribeiro LM, Rezende NA. Representações sociais de pacientes e familiares sobre neurofibromatose tipo 1. Ciênc. saúde coletiva. 2013; 18 (8) Ago.

23- Buono FD, Sprong ME, Paul E, Martin S, Larkin K, Garakani A. The mediating effects of quality of life, depression, and generalized anxiety on perceived barriers to employment success for people diagnosed with Neurofibromatosis Type 1. Orphanet J. Rare Dis. 2021; 16, 234.

24- Pasini A, Lo-Castro A, Di Carlo L, Pitzianti M, Siracusano M, Rosa C, Galasso C. Detecting anxiety symptoms in children and youths with neurofibromatosis type I. American Journal of Medical Genetics, Part B: Neuropsychiatric Genetics.  2012; 159B(7), 869–873.

25- Cipolletta S, Spina G, Spoto A. Psychosocial functioning, self-image, and quality of life in children and adolescents with neurofibromatosis type 1. Child: Care, Health and Development.  2018; 44(2), 260–268.

26- Berardelli I, Maraone A, Belvisi D, Pasquini M, Giustini S, Miraglia E, Iacovino C, Pompili M, Frascarelli M, Fabbrini G. The importance of suicide risk assessment in patients affected by neurofibromatosis. International Journal of Psychiatry in Clinical Practice. 2021; 25(4), 350–355.

27- Quintais ALS. Neurofibromatose Tipo 1: Principais Preocupações de Doentes e Cuidadores de Doentes. (Dissertação) Mestrado Integrado em Psicologia. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Luísa Barros (orientadora). 2008. 56p.

28- Brasil. Cartilha de Prevenção ao Suicídio. Sem data. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/consulado-miami/assistencia-a-brasileiros/cartilha-de-prevencao-ao-suicidio

 

 

Recebemos duas perguntas de uma leitora de Curitiba:

No caso do câncer de mama relacionado à neurofibromatose, há responsividade a hormônios (como o estrogênio, por exemplo), como no caso de alguns tipos de cânceres de mama?
Para mulheres com neurofibromatose há alguma contraindicação no uso de alguns tipos de anticoncepcionais devido ao risco aumentado de câncer de mama que essas mulheres já apresentam?”

 

Solicitamos a ajuda da Dra. Luiza de Oliveira Rodrigues e Dra. Débora Balabram que responderam abaixo. Para informações gerais sobre câncer de mama nas pessoas com NF1 clique aqui.

 

São ótimas perguntas.

Sobre os subtipos de câncer de mama na NF1:

Um estudo de 2016, do grupo da Dra. Juha Peltonen (ver aqui, em inglês), resume bem o problema e sugere que, assim como em outras condições genéticas que aumentam risco de câncer de mama (BRCA1/2, Li-Fraumeni (TP53), PTEN etc.), os tumores tendem a ser mais agressivos nas mulheres com NF1, com menor percentual de tumores responsivos ao estrogênio, conforme a leitora nos perguntou. Outro estudo, da Dra. Ann Lee e colaboradores (2018, ver aqui em inglês) confirma estas informações.

 

Sobre os anticoncepcionais:

Embora haja evidências sugerindo um risco modestamente aumentado de câncer de mama com o uso atual ou recente de anticoncepcional oral, esse risco diminui ao longo do tempo após a cessação do uso.

O aumento absoluto do risco é relativamente pequeno, e os benefícios dos anticoncepcionais orais, incluindo eficácia contraceptiva e redução potencial no risco de câncer de ovário, devem ser ponderados em relação a esse risco. Em mulheres sem mutações genéticas, o aumento de risco de câncer foi de mais um caso para casa 7690 mulheres que fizeram uso da medicação por um ano (ver referência 3 abaixo).

Mais pesquisas são necessárias para esclarecer o risco associado a formulações de anticoncepcionais orais mais recentes e em populações específicas, como portadoras da mutação BRCA1/2 (ver referência 1 abaixo).

A literatura médica não aborda especificamente o risco de câncer de mama associado ao uso de anticoncepcionais orais em mulheres com neurofibromatose tipo 1 (NF1). Mas, considerando seu aumento de risco de CA de mama semelhante ao do BRCA2, parece-nos prudente seguir as recomendações para esse grupo.

Além disso, a expressão de receptores de progesterona em neurofibromas foi observada, mas a maioria das mulheres com NF1 que usam anticoncepcionais orais não relataram crescimento significativo de neurofibroma.

Contraceptivos orais, incluindo preparações de estrogênio-progestogênio e progestogênio puro, têm sido usados ​​por mulheres com NF1 sem crescimento significativo de neurofibromas associados na maioria dos casos.

No entanto, houve relatos de crescimento tumoral significativo em uma pequena porcentagem de mulheres usando contraceptivos de depósito contendo altas doses de progesterona sintética [ver referência 2 abaixo]. Isso sugere que, embora os contraceptivos orais possam ser uma opção viável, pode ser necessário cuidado com formulações de depósito.

Dado o aumento do risco de câncer de mama, métodos contraceptivos não hormonais, como dispositivos intrauterinos de cobre (DIUs), podem ser considerados, pois não envolvem exposição hormonal.

Além disso, métodos de barreira ou soluções permanentes, como laqueadura, podem ser alternativas, dependendo dos planos reprodutivos e do perfil de risco do indivíduo.

 

Referências

  1. Oral Contraceptives and Risk of Breast Cancer and Ovarian Cancer in Women With a BRCA1 or BRCA2 Mutation: A Meta-Analysis of Observational Studies. Park J, Huang D, Chang YJ, Lim MC, Myung SK. Carcinogenesis. 2022;43(3):231-242. doi:10.1093/carcin/bgab107
  2. Care of Adults With Neurofibromatosis Type 1: A Clinical Practice Resource of the American College of Medical Genetics and Genomics (ACMG). Stewart DR, Korf BR, Nathanson KL, Stevenson DA, Yohay K. Genetics in Medicine: Official Journal of the American College of Medical Genetics. 2018;20(7):671-682. doi:10.1038/gim.2018.28.
  3. Contemporary hormonal contraception and the risk of breast cancer. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29211679/

 

 

 

 

 

 

Dando prosseguimento à nossa divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em dezembro de 2024, apresentamos o texto fundamental da Dra. Luciana Baptista Pereira, professora de Dermatologia na Faculdade de Medicina da UFMG, com informações muito importantes que faltavam em nosso site, o que vem ampliar nosso conhecimento sobre a NF1. Muito obrigado, em nome de toda a equipe do CRNF.

Dr. Lor

 

Professora Luciana Baptista Pereira

Dermatologista e Professora da

Faculdade de Medicina da UFMG

 

 

MANCHAS CAFÉ COM LEITE

 

As manchas café com leite (MCL) estão presentes no primeiro ano de vida em 99% das crianças que posteriormente serão diagnosticadas com neurofibromatose do tipo 1 (NF1).  São o sinal mais comum e mais precoce, seguidas pelas efélides axilares ou inguinais (Nunley et al. 2009). Apesar disso, as MCL não são patognomônicas da NF1. Uma única MCL está presente em cerca de 2,5% dos neonatos em estudos populacionais (Shah 2010) e, em um estudo brasileiro, percentual semelhante foi encontrado: as MCL foram encontradas em 2,8% dos recém-nascidos examinados nas primeiras 36 horas de vida. (Pereira 1999)

As MCL podem aumentar em número até os 2 a 4 anos de idade, sendo incomum surgirem após os 6 anos a não ser em pacientes com NF1, cujo número pode aumentar até a adolescência e vida adulta. (Boyd 2010; Shah 2010) A possibilidade das MCL estarem presentes de forma isolada, sem associação com outras alterações, é inversamente  proporcional ao seu número. Uma criança com 3 ou mais MCL deve ser avaliada cuidadosamente pela possibilidade de haver associação com síndromes, pois a presença de mais que 3 MCL são detectadas em apenas 0,3% das crianças sem evidência de desordem genética. (Nunley et al. 2009) Quanto maior for o número de MCL, maior a probabilidade do diagnóstico ser NF1. A presença de seis ou mais MCL maiores que 5 mm em indivíduos pré-puberais e 15 mm em adultos é um dos critérios diagnósticos da NF1.

Além do número, as características morfológicas das MCL são importantes para o diagnóstico. As MCL se tornam visíveis ao nascimento ou nas primeiras semanas de vida. A cor geralmente é uniforme, variando do marrom claro ao escuro. A cor pode variar entre as manchas do mesmo indivíduo e entre indivíduos diferentes, tendendo a ser mais escuras nos negros e mais claras nas pessoas brancas. (Shah 2010) (Friedman 2016)

As MCL são maculares, sem nenhuma alteração do relevo. Se houver alguma alteração no relevo, o diagnóstico de neurofibroma plexiforme se torna mais provável. (Friedman 2016) – Figura 1 A – As máculas hipercrômicas com alteração de relevo subjacente no tórax em paciente com NF1 – o diagnóstico é neurofibroma plexiforme e não, mancha café com leite. Manchas café com leite podem ser vistas no abdome

 

 

 

Figura 1 – Lesões hipercrômicas.  A – Neurofibroma plexiforme; B e C: Nevos de Becker mácula hipercrômica com bordas irregulares encimadas por micropápulas: a alteração de relevo afasta o diagnóstico de mancha café com leite; D: Mácula hipercrômica também chamada de mancha café com leite atípica.

O tamanho geralmente varia de 5 a 30 mm de diâmetro, mas podem ser maiores chegando a 20 cm. Crescem de forma proporcional ao crescimento da criança. A distribuição parece ser randomizada, poupando apenas o couro cabeludo, palmas e plantas, e são menos comuns na face. A cor e a distribuição das MCL não apresentam relação com a exposição solar (Boyd et al., 2010).

As MCL típicas da NF1 são ovaladas e apresentam bordas regulares, mesmo quando de tamanho maior.  As manchas hipercrômicas que apresentam bordas irregulares, denteadas, são denominadas de MCL atípicas por não serem características da NF1. (Nunley 2009; Kehrer-Sawatzki 2022) Estas máculas hipercrômicas de bordas irregulares, denteadas, chamadas de MCL atípicas por vários autores, (Figura 1 D) são  também denominadas de lesões hipermelanóticas segmentares e refletem um mosaicismo pigmentar e quando pequenas, são denominadas de nevos hipercrômicos. (Torrelo 2005) Essas lesões hipercrômicas de bordas irregulares correspondem ao inverso do nevo despigmentado.

 

Figura 2 – Outras lesões hipercrômicas: nevos hipercrômicos – também denominados de manchas café com leite atípicas – são máculas hipercrômicas de bordas irregulares, denteadas, segmentares – são o inverso do nevo despigmentado, também  denominadas de lesões hipermelanóticas segmentares.

 

 

 

Figura 3 – Manchas café com leite típicas da NF1: máculas hipercrômicas com bordas regulares, ovaladas, de tamanhos variados, em grande número, com tonalidades diferentes entre pacientes ou mesmo, na mesma pessoa.

 

Do ponto de vista histológico, considera-se que a diferença de cor das MCL estaria na maior concentração de melanina nos melanócitos e nos queratinócitos e na presença de macromelanossomas. (Shah 2010, De Shepper et al, 2006). Questiona-se se há ou não diferenças histológicas entre as MCL da NF1 das demais MCL.

As MCL não apresentam tendência a malignização e os tratamentos tentados têm apenas objetivo cosmético. (Shah 2010) Vários tipos de laser têm sido tentados para clareamento das manchas, com resultados variáveis: pulsed dye laser, Er:YAG (erbium doped yttrium aluminum garnet), QS Nd:Yag (Q-switched neodymium-dopet yttrium aluminum garnet), QSRL (Q-switched ruby laser) e QSAL (Q-switched alexandrite laser). Um resultado satisfatório ocorre em cerca de 75% dos pacientes com uma taxa de clareamento maior que 50%. O laser QS-1064-nm Nd:YAG parece ser o mais eficaz com poucos efeitos colaterais. (Zi-Zhen 2023)

 

OUTRAS SÍNDROMES ASSOCIADAS COM MANCHAS CAFÉ COM LEITE

SÍNDROME DE LEGIUS

Na síndrome de Legius há múltiplas MCL em associação com efélides axilares e/ou inguinais, macrocefalia, pectus excavatum ou carinatum, polidactilia, lipomas, dificuldades de aprendizado, comportamento autista, dismorfismos faciais Noonan símile.  Mas os pacientes não apresentam nódulos de Lisch, alterações ósseas, neurofibromas ou outros tumores de nervos periféricos como na NF1. A síndrome de Legius é indistinguível da NF1 em relação ao número, morfologia e padrão de distribuição das MCL. (Shah 2010)

 

SCHWANNOMATOSE (NF TIPO 2)

Embora os pacientes com Schwannomatose apresentem um número menor de MCL quando comparados com os pacientes com NF1, o número ainda é maior que o da população geral.  As MCL não estão entre os critérios diagnósticos para a Schwannomatose, mas estão presentes em 33 a 43% dos pacientes. Além dos schwannomas vestibulares que são característicos dessa desordem, meningiomas, schwannomas espinhais e cutâneos podem estar presentes.

 

MÚLTIPLAS MANCHAS CAFÉ COM LEITE FAMILIARES

MCL múltiplas familiares são observadas em famílias sem outras características de NF1 ou outras síndromes. A ausência de neurofibromas, nódulos de Lisch e outras alterações fenotípicas nos faz pensar neste diagnóstico. Do ponto de vista genético não há mutações nos genes conhecidos das demais síndromes que cursam com MCL. Anteriormente eram categorizadas como NF6 na classificação de Riccardi.

 

SÍNDROME DE NOONAN

A síndrome de Noonan é uma desordem autossômica recessiva com mutações descritas em vários genes que pertencem a via RAS-MAPK. Caracteriza-se pelas seguintes alterações: baixa estatura, anomalias cardíacas, defeitos no tórax como pectus excavatum ou carinatum, retardo mental, hipertelorismo, ptose palpebral, fendas palpebrais inclinadas para baixo, orelhas com implantação baixa e rodadas posteriormente, fronte proeminente, filtro labial largo com bordas labiais proeminentes, pescoço largo, alterações hemorrágicas, presença de lentigos e manchas café com leite.

 

SÍNDROME DO CROMOSSOMO EM ANEL

MCL múltiplas tem sido relatadas em pacientes com síndromes do cromossomo em anel envolvendo os cromossomos 7, 11, 12, 15 e 17. Essas crianças tendem a apresentar uma variedade de outras anomalias congênitas, incluindo dismorfismo facial, microcefalia, clinodactilia, baixa estatura e déficits neurocognitivos. A possibilidade de didimose (“Twin spotting”) é sugerido pelo relato de crianças com MCL múltiplas associadas com máculas hipopigmentadas.

 

Figura 4: A: Manchas gêmeas (“twin spotting”) – manchas hipocrômicas (nevo despigmentado ou hipopigmentado) associadas com hipercrômicas; B: Mancha café com leite segmentar e terminando na linha média; C, D e E:  Piebaldismo.

 

SÍNDROME MCCUNE-ALBRIGHT

As características principais incluem displasia fibrosa poliostótica, puberdade precoce, outras endocrinopatias como hipertireoidismo, hiperparatireoidismo, síndrome de Cushing, acromegalia, MCL grandes, segmentares e com bordas irregulares. As MCL têm uma predileção para áreas com proeminência óssea (fronte, nuca, tórax, nádegas e região sacral) e  geralmente são unilaterais, não ultrapassando a linha média (padrão de mosaicismo em tabuleiro de xadrez).

 

SÍNDROME DE DEFICIÊNCIA CONSTITUCIONAL DO REPARO DO DNA

A síndrome da deficiência constitucional do reparo do DNA é causada por mutações em genes que fazem o reparo no DNA e caracteriza-se por uma alta prevalência de cânceres sincrônicos e metacrônicos na infância. Várias neoplasias podem ser detectadas antes dos 18 anos de idade: neoplasias hematológicas; carcinomas colorretais, do endométrio, intestino delgado, ureter, pelve renal, trato biliar, estômago, bexiga; tumores embriológicos, entre outros. Esses pacientes podem apresentar MCL, neurofibromas e efélides axilares de forma semelhante aos pacientes com NF1.

 

PIEBALDISMO

O piebaldismo é uma desordem autossômica dominante que se caracteriza pelas seguintes características fenotípicas: mecha branca frontal nos cabelos, mácula acrômica triangular na fronte, máculas acrômicas bilaterais no tronco e membros e manchas hipercrômicas (MCL) dentro das manchas acrômicas e na pele normal.

 

 

Figura 5 – A e B: Síndrome de Bloom; C e D: Anemia de Fanconi; E, F e G: Síndrome de Leopard.

 

SÍNDROME DE BLOOM

A síndrome de Bloom é uma doença autossômica recessiva causada por mutação no gene BLM 15q26.1. Caracteriza-se pela tríade: eritema telangiectásico na face, fotossensibilidade e retardo de crescimento. Os pacientes apresentam uma face estreita, pequena, triangular com nariz proeminente (face de passarinho). Podem apresentar também hipogonadismo, imunodeficiências e predisposição para desenvolvimento de malignidades. As MCL podem estar presentes em 50% dos casos e geralmente junto com manchas hipocrômicas, especialmente no tronco.

ANEMIA DE FANCONI

Caracteriza-se por baixa estatura, distúrbios pigmentares na pele (hipermelanose difusa, manchas café com leite, manchas hipocrômicas) presentes em 40% dos casos, malformações ósseas (defeitos no polegar e antebraços), renais, cardíacas, TGI, SNC, hipogonadismo, endocrinopatias. A falência da medula óssea ocorre em 90% dos casos e malignidades não hematológicas podem ocorrer em 20 a 30% dos casos.

SÍNDROME LEOPARD (LENTIGOS MÚLTIPLOS)

LEOPARD é um acrônimo que significa: Lentigos simples; alterações no Eletrocardiograma; hipertelorismo Ocular; cardiomiopatita Obstrutiva; estenose Pulmonar; Anomalias genitais e reprodutivas; Retardo de crescimento; surdez (Deafness).

Trata-se de uma doença autossômica dominante, alélica a síndrome de Noonan, caracterizada pela presença de lentigos que surgem após 4-5 anos de idade, aumentam em número até a puberdade e não acometem as mucosas. As MCL surgem antes dos lentigos e estão presentes em 70 a 80% dos pacientes. Nesta síndrome há também manchas mais escuras e maiores que os lentigos denominadas manchas café noir.

 

OUTRAS MANIFESTAÇÕES DERMATOLÓGICAS PRESENTES NA NF1 ALÉM DAS MCL

 

EFÉLIDES NAS DOBRAS CUTÂNEAS (SINAL DE CROWE)

As efélides são a segunda característica mais comum na NF1. Geralmente surgem entre 2 a 3 anos de idade, nas axilas e/ou virilhas, surgindo portanto, mais tardiamente, quando comparadas com as MCL. Cerca de 90% dos adultos com NF1 tem efélides nas axilas e virilhas. Podem ocorrer também no pescoço, mamas, região perioral, proximal dos membros e mesmo tronco, mas nestes locais não são consideradas critério diagnóstico para NF1. Variam de 1 a 3 mm, distinguindo assim, das MCL. (Boyd et al., 2009)(Friedman 2016)

O termo efélides é utilizado para descrever manchas pequenas, hiperpigmentadas encontradas apenas em áreas expostas ao sol, principalmente em indivíduos de pele clara. Contrariando esta descrição, na NF, a mesma denominação é utilizada para manchas de aspecto similar, mas presentes principalmente em áreas de dobras e não expostas ao sol.

Os achados histológicos são idênticos aos das MCL e alguns autores as consideram como MCL pequenas e agrupadas. Quando apenas as MCL e efélides axilares /inguinais estão presentes, o diagnóstico de síndrome de Legius deve ser considerado.

 

 

Figura 6 – A e B: Manchas café com leite e efélides axilares e cervicais; C: disseminadas.

 

HIPERPIGMENTAÇÃO DIFUSA GENERALIZADA

Uma hiperpigmentação generalizada é encontrada nos pacientes com NF1 quando comparados com pais e irmãos não acometidos. Uma hipótese para explicar esta alteração é que essa hipercromia seria pela mutação nas células germinativas e as MCL seriam secundárias a pelo menos uma segunda mutação (mutações nas células germinativas e  somáticas). Nos pacientes com neurofibromatose segmentar pode haver uma  hiperpigmentação de base no seguimento anatômico acometido. (Boyd 2009)

 

NEUROFIBROMAS

Os neurofibromas são outro sinal marcante da NF1. Podem ocorrer em qualquer lugar do corpo e apresentam grande variação na forma e tamanho. (Boyd 2009) Os neurofibromas dérmicos geralmente surgem na adolescência e raramente são detectados na infância.

Há 3 tipos histológicos de neurofibromas: endoneurais, perineurais e epineurais e sua distinção é importante pois sua evolução natural é bastante diferente. Os axônios com sua bainha de mielina se agrupam formando feixes interligados por uma membrana de tecido conjuntivo chamada endoneuro. Em volta destes feixes, há o perineuro. E vários feixes são cobertos por uma membrana mais externa, denominada epineuro.

 

Figura 7 – Diagrama dos diferentes tipos de neurofibromas e fotos correspondentes.

 

Neurofibromas cutâneos

Neurofibromas endoneurais (cutâneos ou dérmicos ) derivam do endoneuro dos nervos sensitivos terminais cutâneos e são constituídos de células de Schwann, fibroblastos, células endoteliais, perícitos e mastócitos. Podem ser sésseis, achatados ou pedunculados; macios ou com a consistência de borracha; cor da pele a ligeiramente hipercrômicos; tamanhos variados (alguns mm a vários cm). Podem ser dolorosos e/ou pruriginosos. Geralmente surgem na puberdade e podem aumentar de tamanho e número na vida adulta. Além da puberdade, a gravidez é outro período que propicia aumento no número e tamanho dos neurofibromas. (Friedmann 2016)

Os neurofibromas cutâneos provocam grandes problemas para os pacientes com NF1, dependendo da visibilidade, do número e tamanho desses tumores. (Boyd 2009) A excisão cirúrgica com fechamento primário pode ser realizada. A eletrodissecção é uma técnica que permite retirar um número maior de lesões. (Lutterodt 2016)

Neurofibromas subcutâneos

Neurofibromas subcutâneos são revestidos pelo perineuro. Podem formar cordões com vários neurofibromas ao longo do trajeto de um nervo, como contas de um rosário. Apresentam consistência mais endurecida que os neurofibromas cutâneos. Geralmente surgem nos primeiros 5 anos de vida portanto, mais precocemente quando comparados com os neurofibromas cutâneos. Podem crescer ao longo da vida, causar desconforto como dor e/ou prurido e sofrer transformação maligna.

Neurofibromas plexiformes

Os neurofibromas plexiformes (epineurais) ocorrem em cerca de 30-50% dos pacientes com NF1. (Hirbe 2014) São congênitos, o que ajuda diferenciá-los dos neurofibromas cutâneos e subcutâneos. Apresentam pele sobrejacente hipercrômica, com ou sem hipertricose, podendo ser confundido com uma MCL ou nevo melanocítico congênito. (Hernández-Martin 2016). Crescem principalmente nas primeiras 3 décadas de vida no trajeto de um nervo. Podem ser muito grandes e pesados, desfigurantes e interferirem com a função da área acometida. A malignização dos tumores neurais da NF1 usualmente ocorrem em neurofibromas plexiformes, em cerca de 8 a 15% dos pacientes. Dor e crescimento rápido destes tumores é um sinal de alerta importante. A malignização geralmente ocorre na adolescência ou vida adulta. Os neurofibromas plexiformes podem ser internos. (Boyd 2009, Riccardi 2016, Friedman 2016)

 

NEUROFIBROMAS NA CAVIDADE ORAL

Neurofibromas na cavidade oral ocorrem em 4-7% dos pacientes com NF1 e se apresentam como tumores de tamanhos variados, não dolorosos, localizados principalmente na língua, palato, mucosa bucal e alveolar e assoalho da boca. Quando traumatizados, podem causar sintomas. Exérese cirúrgica, eletrocauterização ou  laser diodo ou erbium podem ser realizados. (Angiero 2016)

 

MÁCULAS PSEUDOATRÓFICAS E AZUL AVERMELHADAS

São variantes incomuns dos neurofibromas. A mácula azul avermelhada foi descrita como uma lesão de limites mal definidos, consistência macia, localizada no tronco. Surgem um pouco antes ou durante a adolescência e ficam levemente elevadas com o tempo. Histologicamente, caracterizam-se pela presença de vasos com parede espessada e lúmen largo e células neurais na derme papilar e reticular. (Boyd 2009)

As máculas pseudoatróficas são lesões ovais, levemente deprimidas, medindo 5 a 10 cm. A cor e textura são semelhantes às da pele normal, mas quando comprimidas, demonstram uma perda do tecido subcutâneo subjacente. O exame histológico demonstrou redução do colágeno na derme reticular e substituição por tecido neuroide composto por células de Schwann, fibroblastos e vasos (hipoplasia dérmica neurofibromatosa). (Boyd 2009)

 

XANTOGRANULOMA JUVENIL

A tripla associação, NF1, xantogranuloma juvenil e leucemia mielomonocítica, é questão de debate. Há relatos na literatura demonstrando uma prevalência de xantogranuloma juvenil em 9 a 30% dos pacientes com NF1. Esta prevalência muda com a idade, porque os xantogranulomas podem já ter regredido na época em que o diagnóstico de NF1 é definido. A maioria dos xantogranulomas regride antes dos 5 anos de idade. (Jans 2015; Fenot 2014). O risco de desenvolver leucemia mieloide mielomonocítica juvenil é 200 a 500 vezes maior em crianças com NF1. A leucemia mieloide mielomonocítica juvenil surge habitualmente antes dos 6 anos de idade, portanto deve ser pensada em crianças que tenham sinais sugestivos ou diagnósticos de NF1 e lesões de xantogranuloma juvenil. (Jans 2015) (Boyd 2009)

 

Figura 8. Outras lesões cutâneas que podem ser encontradas nas pessoas com NF1. A: nódulos amarelo-hipercrômicos, um xantogranuloma juvenil; B: nevo anêmico.

 

OUTROS TUMORES

Postula-se uma maior chance dos pacientes com NF1 em ter tumor glômico. O reconhecimento  é importante por ser um tumor doloroso e a exérese cirúrgica é curativa. (Boyd 2009) Rabdomiossarcoma, feocromocitoma, tumores no trato gastrintestinal, câncer de mama em mulheres abaixo de 50 anos são mais frequentes em pacientes com NF1. (Friedman 2016) Em relação ao melanoma, a relação é controversa. A presença de melanomas mais espessos em pacientes com NF1 pode ser pela grande quantidade de lesões pigmentadas nestes pacientes, o que pode ocasionar demora no diagnóstico. (Boyd 2009) Lipomas também ocorrem mais frequentemente em pacientes com NF1.

 

NEVO ANÊMICO

Embora a primeira descrição da associação entre nevo anêmico e NF1 ter sido feita por Naegeli em 1915 e novamente relatada por outros autores em 1969 e 1970, essa associação recebeu pouca atenção até há poucos anos. (Hernández-Martín 2015) A partir de 2013, séries com grande número de pacientes com NF1 e nevo anêmico foram publicadas, demonstrando uma prevalência dessa associação em cerca de 50% dos pacientes. O nevo anêmico encontra-se especialmente no tronco, principalmente na região anterior da parede torácica e esternal, mas pode estar presente em qualquer local do corpo. O tamanho é variável, sendo frequentemente múltiplo. Anormalidades vasculares tem sido descritas em pacientes com NF1, principalmente nas artérias renais e cerebrais. (Hernández-Martín et al., 2015) A presença do nevo anêmico pode ser útil para diferenciar NF1 de outras genodermatoses que apresentam MCL e efélides.

 

PRURIDO

O prurido é uma manifestação relativamente comum na NF1, estimado ser uma queixa em cerca de 20% dos pacientes. (Brenaut 2016). Quando generalizado, parece estar associado a um maior número de mastócitos nos neurofibromas. Pode ser localizado, considerado como uma causa de prurido neuropático, por tumores no sistema nervoso central (medular ou encefálico). Geralmente está associado a outros sintomas como dor, alodinia, parestesias, hiperestesias ou sensações de choque. (Boyd 2009; Brenaut 2016)

 

 

Referências:

Antônio JR, Goloni-Bertollo EM, Trídico LA. Neurofibromatosis: chronological history and current issues. An Bras Dematol. 2013; 88(3):329-43.

Friedman JM. Initial posting: October 2, 1998; last update May 17, 2018. Pagon RA, Adam MP, Arlinger HH, et al., editors. GeneReviews [internet]. Seatle (WA): University of Washington, Seatle; 1993-2018. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK/1109/

Nunley KS, Gao F, Alber AC, Bayliss SJ, Gutmann DH. Predictive value of café au lait macules at initial consultation in the diagnosis of neurofibromatosis type 1. Arch Dermatol. 2009; 145(8):883-7.

Abdolrahimzadeh B, Piraino DC, Albanese G, Cruciani F, Rahimi S. Neurofibromatosis: an update of ophthalmic characteristics and applications of optical coherence tomography. Clin Ophthalmol. 2016;10:851-60.

DeBella K, Szudek J, Friedman JM. Use of the national institutes of health criteria for diagnosis of neurofibromatosis 1 in children. Pediatrics. 2000; 105:608-14.

Pereira LB. Prevalência de dermatoses no recém-nascido: estudo comparativo entre dois hospitais de Belo Horizonte, Brasil. Tese. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1997.

Korf BR. Diagnostic outcome in children with multiple café au lait spots. Pediatrics 1992; 90(6):924-7.

Hirbe AC, Gutmann DH. Neurofibromatosis type 1: a multidisciplinary approach to care. Lancet Neurol. 2014; 13:834-43.

Boyd KP, Korf BR, Theos A. Neurofibromatosis type 1. J Am Acad Dermatol. 2009; 61:1-14.

Boyd KP, Gao L, Feng R, Beasley M, Messiaen L, Korf BR et al.. Phenotypic variability among café-au-lait macules in neurofibromatosis type 1. J Am Acad Dermatol. 2010; 63:440-7.

Riccardi VM. NF1 Clinical elements and the NF1 neurofibroma burden. JJ Neur Neurrosci. 2016; 3(1):025.

Rodriguez-Jimenez P, Chicharro P, Munõz E, Dauden E. Long-term treatment of neurofibromatosis 1 with ketotifen. A report of three cases. Am J Med Genet A. 2016; 170A(4):1092-4.

Duman N, Elmas M. Dermoscopy of cutaneous neurofibromas associated with neurofibromatosis type 1. J Am Acad Dermatol. 2015; 73(3):529-31.

Lutterodt CG, Mohan A, Kirkpatrick N. The use of electrodessication in the treatment of cutaneous neurofibromatosis: a retrospective patient satisfaction outcome assessment. J Plast Reconstr Aesthet Surg. 2016; 69(6):765-9.

Angiero F, Ferrante F, Ottonello A, Maltagliati A, Crippa R. Neurofibromas of the oral cavity: clinical aspects, treatment, and outcome. Photomed Laser Surg. 2016; 34(2):56-60.

Hernández-Martín A, Duat-Rodríguez A. An update on neurofibromatosis type 1: not just café-au-lait spots, freckling, and neurofibromas. An update. Part I. Dermatological clinical criteria diagnostic of the disease. Actas Dermosifiliogr. 2016; 107(6):454-64.

Jans SRR, Schomerus E, Bygum A. Neurofibromatosis type 1 diagnosed in a child based on multiple juvenile xanthogranulomas and juvenile myelomonocytic leukemia. Pediatr Dermatol. 2015; 32(1): e29-32.

Fenot M, Stalder JF, Barbarot S. Juvenile xanthogranulomas are highly prevalent but transient in young children with neurofibromatosis type 1. J Am Acad Dermatol. 2014; 71(2):389-90.

De Schepper S, Boucneau J, Haeghen YV, Messiaen L, Naeyaert J, Lambert J. Café-au-lait spots in neurofibromatosis type 1 and in healthy control individuals: hyperpigmentation of a different kind? Arch Dermatol Res. 2006; 297:439-49.

Hernández-Martín A, García-Martínez FJ, Duat A, López-Martín I, Noguera-Morel L, Torrelo A. Nevus anemicus: a distinctive cutaneous finding in neurofibromatosis type 1. Pediatr Dermatol. 2015; 32(3):342-7.

Brems H, Legius E. Legius syndrome, an update. Molecular pathology of mutations in SPRED1. Keio J Med. 2013; 62(4):107-12.

Benelli E, Bruno I, Belcaro C, Ventura A, Berti I. Legius syndrome: case report and review of literature. Ital J Pediatr. 2015; 41:8.

Polder KD, Landau JM, Vergilis-Kalner IJ, Goldberg LH, Friedman PM, Bruce S. Laser eradication of pigmented lesions: a review. Dermatol Surg. 2011; 37 (5):572-95.

Brenaut E, Nizery-Guermeur C, Audebert-Bellanger S, Ferkal S, Wolkenstein P, Misery L et al. Clinical characteristics of pruritus in neurofibromatosis 1. Acta Derm Venereol. 2016;96:398-9.

Shah KN. The diagnostic and clinical significance of café-au-lait macules. Pediatr Clin N Am. 2010; 57:1131-53.

Pereira LB, Gontijo B. Dermatoses neonatais de importância clínica: notificação no prontuário do recém-nascido. J Pediatr. 1999; 75(5):357-60.

Kehrer-Sawatzki H, Cooper DN.  Challenges in the diagnosis of neurofibromatosis type 1 (NF1) in young children facilitated by means of revised diagnostic criteria including genetic testing for pathogenic NF1 gene variants. Hum Genet. 2022; 141:177–91.

Torrelo A, Baselga E, Nagore E, Zambrano A, Happle R. Delineation of the various shapes and patterns of nevi . Eur J Dermatol 2005; 15 (6): 439-50.

Zi-Zhen G, Zhi-Cho W, Dun W, Lin-Ling G, Yue-Hua L, Yi-Hui G, Wei W et al. Laser treatment for café-au-lait macules: a systematic review and meta-analysis.  Eur J Med Res.2023; 28:185.

 

 

Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o esclarecedor texto da Professora Dra. Eugênia Ribeiro Valadares, geneticista que tem nos socorrido frequentemente no CRNF sobre temas relacionados à NF1 e às Schwannomatoses. Agradecemos mais esta colaboração fundamental para a ampliação dos nossos conhecimentos.

Dr. Lor

 

 

Eugênia Ribeiro Valadares

Médica pediatra e geneticista, MD, PhD

Professora titular do Departamento de Propedêutica Complementar da Faculdade de Medicina da UFMG (aposentada)

Introdução

Na revisão cronológica das neurofibromatoses feita por Antonio, Goloni-Bertollo e Trídico em 2013, vemos que as manifestações clínicas da neurofibromatose  tipo 1 (NF1) foram descritas em 1785, por Mark Akensidi, com relato de um homem com nódulos cutâneos, manchas de pele e cabeça grande. Quase um século depois, em 1882, Friederich Daniel Von Recklinghausen reconheceu a NF como uma entidade nosológica ao descrever dois casos e a doença ganhou seu nome. Já se sabia que a doença tinha o padrão de herança autossômico dominante, mas apenas no final da década de 1980 e início dos anos 90, o gene NF1, responsável pela NF1, foi mapeado no braço longo do cromossomo 17, em 17q11.2.1

Quem desejar conhecer um pouco mais de genética para compreender melhor o texto da Dra. Eugênia Ribeiro Valadares, veja este vídeo O que é o DNA? (youtube.com)

A NF1 é herdada de forma autossômica dominante, embora aproximadamente metade dos indivíduos afetados sejam casos esporádicos causados por uma mutação nova (ou “de novo”) do gene NF1 da linha germinativa, doravante chamada de variante patogênica. Pensava-se que a penetrância de NF1 fosse completa após a infância, mas testes moleculares documentaram penetrância incompleta de variantes patogênicas do NF1 em um pequeno número de indivíduos. Isto significa que a grande maioria das pessoas com uma alteração patogênica em um dos alelos do gene NF1 apresentarão algumas características da NF1. Já a expressividade do fenótipo é extremamente variável, mesmo em pessoas de uma mesma família.

O gene NF1 codifica uma proteína chamada neurofibromina, que funciona na regulação da via de sinalização RAS, que controla a proliferação celular. Na análise genética dos tumores associados com NF1, as células têm variantes patogênicas em ambos os alelos NF1: a variante patogênica da linha germinativa e uma outra variante patogênica adquirida somaticamente do outro alelo. NF1, portanto, funciona como um gene supressor de tumor.

A figura abaixo mostra as variantes patogênicas do gene NF1 (ou seja, “mutações” que podem causar doenças) podem ocorrer em várias partes do gene.

 

Essas variantes podem estar tanto nas regiões que codificam proteínas quanto em regiões que não codificam. Elas podem incluir diferentes alterações genéticas (ver parte delas na Figura 1):

  1. DNA sem variantes, proteína funcional, assim a pessoa não apresenta NF1.
  2. Variantes sinônimas – o códon está alterado, mas especifica o mesmo aminoácido, assim a proteína não sofre alterações.
  3. Variantes de sentido trocado
    • Conservativas – o códon alterado especifica aminoácido que produz proteína quimicamente com a mesma capacidade funcional.
    • Não conservativa – o códon alterado especifica aminoácido que produz proteína quimicamente diferente, portanto não funcional – a NF1 se manifesta.
  4. Variantes sem sentido – o códon alterado indica a parada da síntese da proteína, que assim se torna disfuncional e a NF1 se manifesta.
  5. Inserções – acréscimos de bases modificam a matriz de leitura impedindo a síntese de proteína funcional – a NF1 se manifesta.
  6. Deleções – são perdas de partes do gene NF1 e de outros genes próximos.
  7. Variações no número de cópiasde partes do gene, que podem ser menores e afetar partes internas do gene.
  8. Alterações nos locais de emenda(locais onde o RNA é cortado e colado), que podem prejudicar a forma como a célula lê o gene.
  9. Mutações que afetam o início da tradução, ou seja, o ponto onde a célula começa a produzir a proteína a partir do gene.
  10. Inserções ou deleções complexas, que são mudanças mais complicadas no gene.
  11. Translocações, que são trocas de pedaços entre diferentes partes do DNA.
  12. Inserções de elementos móveis, como Aluou LINE, que são pedaços de DNA que podem se mover e se inserir em diferentes partes do genoma.

Em 1988, o National Institute of Health (NIH) estabeleceu critérios clínicos de diagnóstico para a NF1, que precisaram ser modificados em 2000 pelo fato de que 46% das crianças com NF1 não atingiam os critérios diagnósticos com 1 ano de idade, mas 97% delas atingiam esse critério aos 8 anos de idade e 100% delas aos 20 anos. O recurso do diagnóstico molecular para detecção de variante patogênica no gene NF1 pode estabelecer o diagnóstico precoce de crianças suspeitas.

Mais de 100 condições genéticas e síndromes de anomalias congênitas múltiplas que incluem máculas café com leite ou outras características individuais da NF1 foram descritas, mas poucas dessas doenças são confundidas com NF1. A síndrome de Legius, entretanto, pode ser indistinguível da NF1 em uma criança pequena porque os neurofibromas e os nódulos de Lisch geralmente não surgem até mais tarde na infância ou adolescência em pessoas com NF1. O exame dos pais para sinais da síndrome de Legius ou NF1 pode distinguir as duas condições, mas em casos simplex (“de novo”), a reavaliação do indivíduo após a adolescência ou testes moleculares podem ser necessários para estabelecer o diagnóstico.

O mosaicismo na NF1 pode se apresentar como uma doença generalizada ou de forma localizada (segmentar). A NF1 generalizada em mosaico pode ter apresentações semelhantes à NF1 generalizada ou ter um fenótipo mais brando e, portanto, pode ser sub-reconhecida na prática clínica.

 

Quando solicitar testes genéticos

 O teste genético NF1 pode ser realizado para fins de diagnóstico ou para auxiliar no aconselhamento genético e planejamento familiar. No caso de risco de filhos com NF1, o conhecimento da variante patogênica é imprescindível para a fertilização “in vitro” com seleção de embriões.

Se uma criança preenche os critérios de diagnóstico para NF1, a confirmação genética molecular geralmente não é necessária para estabelecer o diagnóstico. Para uma criança pequena que apresenta apenas máculas café com leite, o teste genético NF1 pode confirmar um diagnóstico suspeito antes que um diagnóstico clínico seja possível, ou se for feita a pesquisa em painel, pode detectar variante patogênica no gene SPRED1, da Síndrome de Legius, um dos principais diagnósticos diferenciais com NF1.

Algumas famílias podem desejar estabelecer um diagnóstico definitivo o mais rápido possível e não esperar por novas manifestações clínicas, e o teste genético geralmente pode resolver o problema. Com uma taxa de sensibilidade de 95%, o teste genético é considerado altamente confiável, embora um teste negativo não descarte completamente a condição.

 Testes genéticos

Durante muitos anos a doença era diagnosticada apenas por critérios clínicos, pelo fato do sequenciamento do gene NF1 pelo método de Sanger ser dificultado pelo grande tamanho do gene (350 kb, 60 exons), pela alta taxa de novas mutações, pela falta de agrupamento mutacional e pela presença de numerosos loci homólogos. Felizmente o avanço dos recursos genéticos na última década, em especial do sequenciamento de nova geração (next generation sequencing, NGS), facilitou o diagnóstico molecular.

O diagnóstico molecular da NF1 pode ser realizado em qualquer fonte de DNA, geralmente em amostra de sangue, de saliva ou de células da bochecha. Milhares de variantes patogênicas distintas foram identificadas em diferentes pacientes; a maioria leva à perda da função do produto do gene, como esperado para um gene supressor de tumor.

O sequenciamento do gene NF1 pode ser realizado isoladamente, em painéis de exames moleculares que o incluam ou pelo sequenciamento completo do exoma ou do genoma. Geralmente o custo do exame genético do gene NF1 é menor quando realizado em painel de genes. Alguns casos de deleção gênica ou intragênica podem necessitar exame específico para pesquisar deleção, como MLPA ou microarray.

Várias correlações alelo-fenótipo foram observadas em NF1 nos últimos anos:

  1. A deleção de 1,4 Mb (tipo 1) de todo o gene NF1 está associada a números maiores e aparecimento mais precoce de neurofibromas cutâneos e plexiformes, maior risco de desenvolver tumor maligno da bainha do nervo periférico, anormalidades cognitivas mais frequentes e graves, crescimento excessivo somático e mãos e pés grandes. Um padrão recorrente de características dismórficas que inclui aparência facial grosseira, testa plana, hipertelorismo ocular, ponta nasal larga, orelhas baixas e pescoço largo é frequentemente observado entre adolescentes e adultos.
  2. Um fenótipo anormalmente grave com neurofibromas plexiformes ou espinhais frequentes, gliomas da via óptica, neoplasias malignas e anormalidades esqueléticas foi observado em adultos com variantes sem sentido de um dos cinco códons entre 844 e 848 [ NM_000267.3 ] que codificam o domínio rico em cisteína-serina da neurofibromina.
  3. p.Met992del está associado a características pigmentares típicas de NF1, mas não a neurofibromas plexiformes cutâneos, subcutâneos ou de superfície. Um quarto dos indivíduos com essa variante não possui as características clínicas necessárias para atender aos critérios de diagnóstico de NF1, mas tumores cerebrais fora das vias ópticas, deficiências cognitivas ou de aprendizagem e características da síndrome de Noonan ocorrem em frequências semelhantes às observadas em outros indivíduos com NF1.
  4. p.Arg1038Gly foi associado a características pigmentares leves de NF1, mas a uma escassez de neurofibromas e características frequentes da síndrome NF1-Noonan.
  5. Variantes sem sentido que afetam p.Met1149 foram associadas a um fenótipo leve caracterizado por características pigmentares, problemas frequentes de aprendizagem e características da síndrome NF1-Noonan.
  6. Variantes sem sentido que afetam p.Arg1276 foram associadas a uma frequência maior do que o esperado de malformações cardiovasculares, especialmente estenose pulmonar, fenótipo NF1-Noonan e neurofibromas espinhais sintomáticos.
  7. Variantes sem sentido que afetam p.Lys1423 foram associadas a frequências maiores do que o esperado de neurofibromas plexiformes, bem como de problemas de aprendizagem, malformações cardiovasculares (especialmente estenose pulmonar) e fenótipo NF1-Noonan.
  8. Várias variantes de sentido errado que afetam p.Arg1809 estão associadas a múltiplas manchas café com leite, mas à ausência de neurofibromas cutâneos ou neurofibromas plexiformes clinicamente aparentes, embora dificuldades de aprendizagem, baixa estatura e estenose pulmonar ocorram frequentemente.

Estudo recente de Garzon e colaboradores (2024) apresenta dados clínicos adicionais sobre 57 indivíduos com a síndrome de microdeleção NF-1, diagnosticados entre 1994 e 2024, durante a infância, adolescência e na idade adulta. Registraram 38/56 (67,9%) com características faciais dismórficas, 25/57 (43,8%) com neurofibromas plexiformes e 3/57 (5,2%) com tumores malignos da bainha dos nervos periféricos no período observado. As manifestações do neurodesenvolvimento mais registadas em indivíduos em idade escolar ou mais velhos incluíram 39/49 (79,6%) com atrasos no desenvolvimento, 35/49 (71,4%) com atrasos na fala expressiva e/ou receptiva, 33/41 (80,5%) com dificuldades de aprendizagem, e 23/42 (54,8%) com déficit de atenção/hiperatividade. Estavam disponíveis dados de testes de QI completos para 22 indivíduos (intervalo: 50-96). Dos 21 adultos desta coorte, 14/21 (66,7%) concluíram o ensino secundário e 4/21 (19,0%) tinham alguma experiência universitária. Os autores concluíram que os resultados cognitivos dos indivíduos com a síndrome de microdeleção NF-1 são potencialmente mais graves do que os descritos anteriormente, mas com  incidência similar de TDAH. Além disso, os gliomas da via ótica e tumores malignos da bainha dos nervos periféricos foram diagnosticados numa idade mais jovem na coorte estudada em comparação com a população geral população NF-1, provavelmente como resultado de uma maior monitorização nestes casos.4

Em crianças que apresentam características atípicas, como neurofibromas plexiformes isolados, glioma óptico ou displasia tibial, o teste genético para o gene NF1 também pode ser útil. Nestes casos, o exame genético no sangue geralmente é negativo porque as alterações genéticas podem ter ocorrido apenas no tecido afetado, sendo necessário o teste genético do tecido obtido por biópsia da lesão para identificar a variante patogênica, caracterizando mosaicismo somático.

Crianças que apresentam “NF1 segmentar” também podem ser diagnosticadas com mosaicismo somático por exame molecular do tecido afetado, seja da mancha cutânea ou das células de Schwann de neurofibromas. Este protocolo é útil para adultos que estão preocupados com a possibilidade de transmissão genética por meio do mosaicismo de mutação gonadal NF1 e desejam identificar a variante patogênica específica para futuros testes pré-natais. O diagnóstico molecular de mosaicismo geralmente não orienta o tratamento clínico.

 

Quadro 1: Resumo das recomendações sobre testes genético

 Teste genético para NF1:

  • pode confirmar um diagnóstico suspeito antes que um diagnóstico clínico seja possível;
  • pode diferenciar NF1 da síndrome de Legius, que é associada ao gene SPRED1;
  • pode ser útil em crianças que apresentam características atípicas;
  • geralmente não prevê complicações futuras; e
  • pode não detectar todos os casos de NF1; um teste genético negativo descarta o diagnóstico de NF1 com 95% (mas não 100%) de sensibilidade.

 

Aconselhamento genético

Um indivíduo com NF1 herdado de um dos progenitores com variante patogênica na linha germinativa ou por variante patogênica “de novo” tem 50% de chance de ter um filho com NF1 a cada gravidez.

Em contraste, pais não afetados de uma criança com uma variante patogênica “de novo” têm baixo risco de recorrência de ter outro filho com NF1, irmão da criança afetada. Se isto ocorrer, provavelmente trata-se de mosaicismo gonadal para NF1, que é muito raro.

 Fertilização in vitro e seleção de embriões

O diagnóstico molecular de pessoa com NF1 torna possível a fertilização in vitro com seleção de embriões sem a variante patogênica.

 

Referências

 

  • Antonio JR, Goloni-Bertollo EM, Trídico LA. Neurofibromatosis: chronological history and current issues. An Bras Dermatol. 2013;88(3):329-43
  • Miller DT, Freedenberg D, Schorry E, Ullrich NJ, Viskochil D, Korf BR; Council On Genetics; American College Of Medical Genetics And Genomics. Health Supervision for Children With Neurofibromatosis Type 1. Pediatrics. 2019 May;143(5):e20190660. doi: 10.1542/peds.2019-0660. PMID: 31010905.
  • Friedman JM. Neurofibromatosis 1. 1998 Oct 2 [Updated 2022 Apr 21]. In: Adam MP, Feldman J, Mirzaa GM, et al., editors. GeneReviews® [Internet]. Seattle (WA): University of Washington, Seattle; 1993-2024. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1109/
  • Garzon JP, Patete A, Aschbacher-Smith L, Qu’d D, Kelly-Mancuso G, Raski CR, Weisman AG, Hankins M, Sawin M, Kim K, Drackley A, Zeid J, Weaver KN, Hopkin RJ, Saal HM, Charrow J, Schorry E, Listernick R, Simpson BN, Prada CE. Expanding the phenotype of neurofibromatosis type 1 microdeletion syndrome. Am J Med Genet. 2024;e32095.

 

Aspectos genéticos das Schwannomatoses

Durante muitos anos, a NF2 foi confundida com a síndrome mais comum NF1, da qual deriva o seu nome. Nos anos 80, estas duas doenças foram finalmente diferenciadas quando estudos tumorais e análises de ligação localizaram os genes em cromossomas diferentes. O gene NF2 foi clonado em 1993.

Posteriormente outros genes, além do NF2, foram associados a schwannomas vestibulares. A sobreposição dos schwannomas vestibulares que ocorrem na Schwannomatose (SWN) relacionada com o LZTR1 e o mosaico NF2 mimetizando a SWN exigiu uma reavaliação dos critérios de diagnóstico existentes. Depois surgiram o gene SMARCB1 e mais recentemente o gene DGRC8.

Foi criado um comitê internacional para atualização dos critérios de diagnóstico atualizados para as schwannomatoses e atualmente cada doença é classificada de acordo com o gene específico que contém uma variante patogênica.

Por conseguinte, a NF2 passou a ser designada por SWN relacionada com o NF2. Além disso, o comitê recomendou que o termo “Schwannomatose” (SWN) fosse utilizado como um termo genérico para as condições que predispõem ao schwannoma.

Uma vantagem deste formato é que permite a adição de outros tipos de schwannomatoses quando e se novos genes forem identificados.

A recomendação atual é que o nome NF1 permaneça inalterado, e que a NF2 e o outro grupo de doenças relacionadas com a NF fossem renomeados da seguinte: schwannomatose relacionada com ao NF2 (anteriormente designada NF2), schwannomatose relacionada com ao SMACRB1, schwannomatose relacionada com LZTR1, schwannomatose relacionada com 22q, schwannomatose não especificada para doentes que não receberam testes genéticos e schwannomatose não classificada noutra parte para doentes em que os testes genéticos de sangue/saliva e tumores não conseguiram detectar uma variante patogênica.

A tabela 1 mostra o diagnóstico diferencial entre as diversas schwannomatoses.

 

Tabela 1 – Genes de interesse no diagnóstico diferencial da Schwannomatose relacionada à NF2

 

O gene NF2 e o mosaico somático

A NF2 é causada por alterações inativadoras no gene NF2, localizadas no cromossomo 22q12.2. O gene NF2 de 100 kb é codificado por 17 éxons, tendo sido descritas 10 isoformas resultantes de splicing alternativo em humanos. Além disso, as isoformas alternativas resultam frequentemente de alterações nos éxons C terminal 16 e 17. O crescimento dos schwannomas requer a inativação de ambos os alelos do gene NF2. Os tumores associados à NF2 formam-se quando alterações genéticas somáticas adicionais em células vulneráveis resultam na perda bi-alélica da função NF2 (hipótese de Knudson). No entanto, para promover a tumorigênese, as mutações em NF2 por si só podem ser insuficientes, sendo alterações genéticas adicionais são necessárias. O “segundo golpe” ocorre através da perda de todo o gene NF2 ou da maior parte do cromossoma 22 (2)

As mutações com truncamento da proteína são o evento germinativo mais frequente e causam a doença mais grave. Além disso, a presença de uma proteína truncada está associada a uma idade mais jovem ao diagnóstico e a uma maior prevalência de meningiomas, tumores da coluna vertebral e tumores dos nervos cranianos, exceto do VIII nervo (2).

As alterações patogênicas de NF2 apresentam uma penetrância de quase 100%. Cinquenta por cento dos doentes com NF2 apresentam sintomas e/ou manifestações neoplásicas até os 20 anos de idade, enquanto quase todos os doentes com NF2 apresentam sintomas até aos 60 anos de idade (2).

Suspeita-se que 50% dos casos de NF2 resultem de transmissão hereditária de um progenitor com NF2, enquanto os restantes parecem ser “de novo”, em doentes sem história familiar. Uma mutação pós-zigótica pode resultar em mosaicismo. Os sintomas da NF2 em mosaico são mais leves e frequentemente limitados a uma determinada área ou lado do corpo. As pessoas com mosaico podem apresentar schwannomas vestibulares unilaterais ou doença segmentar. 2

Tabela 1 – Genes de interesse no diagnóstico diferencial da Schwannomatose relacionada à NF2

Testes genéticos

O sequenciamento de NF2 detecta 75% dos casos e a análise de deleção/duplicação direcionada ao gene ou microarray cromossômico detecta 20%. Quando os achados clínicos sugerem o diagnóstico de NF2, as abordagens de testes genéticos moleculares podem incluir testes de gene único ou uso de um painel multigênico que inclua os demais genes relacionados às Schwannomatoses, e análise de microarranjos cromossômicos se necessário (1).

Os testes genéticos para a NF2 não são considerados clinicamente indispensáveis se o diagnóstico puder ser efetuado através de características clínicas. Por outro lado, o teste genético pode ser considerado clinicamente necessário nas seguintes condições:

1) O diagnóstico é clinicamente suspeito devido a sinais e sintomas da doença, mas precisa comprovação.

2) Exame dos familiares em risco sem sinais de doença quando um familiar foi diagnosticado com NF2, especialmente importante para os familiares de primeiro grau de doentes com NF2.

3) Os doentes jovens não cumprem os critérios de diagnóstico sem dados genéticos.

4) Um indivíduo assintomático que fez sequenciamento de exoma ou de genoma para outra indicação é identificado com uma variante patogênica no gene NF2, mas não apresenta características clínicas de NF2. Estes indivíduos e os seus familiares em risco devem ser encaminhados para um centro de referência em Schwannomatose, a variante deve ser determinada como constitucional (linha germinativa), mosaico ou somática, e devem receber aconselhamento genético.

 

Teste para mosaicismo somático:

Cerca de 25% a 50% dos indivíduos com uma variante patogênica de NF2 de novo têm mosaicismo somático para a variante. Esses indivíduos podem ter testes genéticos moleculares normais de NF2 em tecido não afetado (por exemplo, leucócitos); portanto, testes genéticos moleculares de tecido tumoral podem ser necessários para estabelecer a presença de mosaicismo somático.

Quando o DNA do tumor é testado, variantes patogênicas em ambos os alelos NF2 devem ser identificadas. Isso pode significar testar a perda (ou inativação) de um alelo NF2 avaliando a perda de heterozigosidade. Uma vez que ambas as variantes patogênicas NF2 são identificadas no tumor, o DNA do leucócito pode ser testado para determinar qual das variantes patogênicas é constitucional e qual é somática (ou seja, presente apenas no tumor).

 

ACONSELHAMENTO GENÉTICO

Os doentes com mutações germinativas do gene NF2 e dos demais associados às Schwannomatoses apresentam uma probabilidade de 50% de transmitir a doença aos seus filhos.

Pessoas com schwannomatoses em mosaico apresentam uma probabilidade reduzida de transmissão aos seus descendentes, devido à esperada ausência de alterações nas células germinativas (espermatozoides ou óvulos).

 Fertilização in vitro e seleção de embriões

O diagnóstico molecular de pessoa com schwannomatoses torna possível a fertilização in vitro com seleção de embriões sem a variante patogênica.

 

Referências:

 

1) Evans DG. NF2-Related Schwannomatosis. 1998 Oct 14 [Updated 2023 Apr 20]. In: Adam MP, Feldman J, Mirzaa GM, et al., editors. GeneReviews® [Internet]. Seattle (WA): University of Washington, Seattle; 1993-2024. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1201/

2) Tamura R, Yo M, Toda M. Historical Development of Diagnostic Criteria for NF2-related Schwannomatosis. Neurol Med Chir (Tokyo). 2024 Jun 19. doi: 10.2176/jns-nmc.2024-0067. Epub ahead of print. PMID: 38897938

 

 

 

 

Continuando a divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o a segunda parte do excelente texto da Dra. Vanessa Waisberg, doutora em oftalmologia, que tem sido uma colaboradora incansável do CRNF, atendendo pessoas com NF1 e Schwannomatose relacionada ao gene NF2, que foi justamente o tema de seu doutorado e prêmio nacional de oftalmologia. Agradecemos muito por mais esta colaboração e publicaremos a segunda parte (Problemas Oftalmológicos nas Schwannomatoses) na próxima semana.

Dr. Lor

 

 

Dra. Vanessa Waisberg

Oftalmologista com doutorado em

Medicina Molecular pela UFMG

 

Introdução

 

O olho e seus anexos estão frequentemente envolvidos nas Schwannomatoses, entretanto o envolvimento ocular é mais comum na Schwannomatose relacionada ao gene NF2 (SWN-NF2) antes denominada NF2.

Schwannomatose Relacionada ao gene NF2

Um espectro bem definido de manifestações oculares está associado à SWN-NF2. As anormalidades oculares associadas são catarata, hamartomas retinianos, membranas epirretinianas (MER), estrabismo e meningioma da bainha do nervo óptico, como veremos abaixo.

Em crianças com a forma mais grave da doença, as alterações oftalmológicas como estrabismo, catarata, membrana epirretiniana e hamartoma retiniano geralmente estão presentes antes da apresentação neurológica característica e o reconhecimento de tais alterações pode ajudar a reduzir o atraso no diagnóstico dos pacientes com SWN-NF2.

Catarata Juvenil

A catarata aparece em cerca de 60% a 80% dos pacientes e é o principal critério diagnóstico oftalmológico da doença. Tem aspecto característico, com localização subcapsular posterior e/ou cortical. As cataratas geralmente são identificadas na primeira ou segunda década e progridem lentamente ao longo da vida.

 

Figura 1 A –  Catarata subcapsular posterior em um paciente de 17 anos com SWN-NF2. B – Catarata em um paciente de 50 anos portador de SWN-NF2.

 

Hamartomas Retinianos

Os hamartomas de retina fazem parte dos critérios diagnósticos da SWN-NF2 desde 2021.  Hamartomas de retina são tumores benignos que evoluem lentamente. Geralmente são pequenos, estáveis e não comprometem a visão.

Os hamartomas são identificados no exame de fundo de olho e geralmente aparecem como lesões nodulares e esbranquiçadas, às vezes discretas, e estão associados às formas mais agressivas da doença.

Figura 2. Exemplos de hamartomas de retina em pacientes com SWN-NF2

 

 Membrana Epirretiniana

A membrana epirretiniana (MER) associada a SWN-NF2 tem caraterísticas únicas que a diferencia da MER que ocorrem de forma isolada em pacientes acima de 50 anos. A MER está associada às formas mais graves da NF2 e foi incluída como critério diagnóstico da SWN-NF2 em 2021.

Na SWN-NF2, a MER é espessa e possuiu um aspecto característico em forma de chama de vela que se estende para a cavidade vítrea. Sua localização mais comum é na região central da retina, a mácula, e tende a permanecer estável ao longo da vida, prejudicando pouco a visão, apesar de sua localização central.

 

 

Figura 3. Membrana epirretiniana em “chama de vela”.

 

Estrabismo

O estrabismo geralmente aparece nos primeiros anos de vida e muitas vezes é a primeira manifestação da SWN-NF2. O estrabismo aparece em cerca de 50% dos pacientes e geralmente está associado as formas graves da doença. O estrabismo pode ser restritivo, quando associado a tumores, ou paralítico, quando associado as paralisias do III, IV ou VI nervo craniano. O tratamento da ambliopia e os resultados cirúrgicos nem sempre são satisfatórios.

 

Meningioma da Bainha do Nervo Óptico

Os meningiomas da bainha do nervo óptico (MBNO) são tumores benignos que podem ser primários do nervo óptico ou serem secundários a um meningioma próximo ao nervo óptico. Na população geral os MBNO representam cerca de 1% de todos os meningiomas. A acuidade visual tipicamente reduz ao longo dos anos.

A maioria dos pacientes com MBNO associado à SWN-NF2 apresentam redução da mobilidade ocular e baixa acuidade visual precocemente. A acuidade visual geralmente fica reduzida no olho afetado e o tratamento na maioria dos casos só está indicado quando ocorre protrusão significativa do globo ocular.

 

 

Figura 4. Ilustração evidenciando a diferença do MBNO primário e do meningioma secundário a um meningioma adjacente.

 

Schwannomatoses não associadas ao geneNF2

O envolvimento ocular nas Schwannomatoses não associadas ao gene NF2 é pouco comum e ocorre pela presença de schwannoma orbitário ou palpebral, sendo os orbitários mais frequentes que os palpebrais.

Nos pacientes que apresentam sintomas como, dor, proptose, diplopia ou redução da acuidade visual, o tratamento é cirúrgico e existe risco de recorrência dos schwannomas orbitários.

As alterações oculares associadas à SWN-NF2, como a catarata juvenil, hamartoma de retina e MER, não são descritas nas outras Schwannomatoses.

 

Referências:

 

  1. Plotkin SR, Messiaen L, Legius E, Pancza P, Avery RA, Blakeley JO, Babovic-Vuksanovic D, Ferner R, Fisher MJ, Friedman JM, Giovannini M, Gutmann DH, Hanemann CO, Kalamarides M, Kehrer-Sawatzki H, Korf BR, Mautner VF, MacCollin M, Papi L, Rauen KA, Riccardi V, Schorry E, Smith MJ, Stemmer-Rachamimov A, Stevenson DA, Ullrich NJ, Viskochil D, Wimmer K, Yohay K; International Consensus Group on Neurofibromatosis Diagnostic Criteria (I-NF-DC); Huson SM, Wolkenstein P, Evans DG. Updated diagnostic criteria and nomenclature for neurofibromatosis type 2 and schwannomatosis: An international consensus recommendation. Genet Med. 2022 Sep;24(9):1967-1977.
  2. Kaye LDRothner ADBeauchamp GRMeyers SMEstes ML. Ocular findings associated with neurofibromatosis type II. 1992: 99 (9): 1424-9.
  3. Bosch MM, Boltshauser E, Harpes P, Landau K. Ophthalmologic findings and a long-term course in patients with neurofibromatosis type 2. Am J Ophthalmol 2006:141 (6): 1068-1077.
  4. Feucht M, Griffiths B, Niemüller I, Haase W, Richard G, Mautner VF. Neurofibromatosis 2 leads to higher incidence of strabismological and neuro-ophthalmological disorders. Acta Ophthalmol 2008: 86 (8): 882-886.
  5. Landau K, Yasargil GM. Ocular fundus in neurofibromatosis type 2. Br J Ophthalmol 1993: 77: 646-649.
  6. Meyers SM, Gutman FA, Kaye LD, Rothner AD. Retinal changes associated with neurofibromatosis 2. Trans Am Ophthalmol Soc. 1995: 93: 245- 257.
  7. Feutch M, Kluwe Lan, Mautner V, Richard G. Correlation of nonsense and frameshift mutations with severity of retinal abnormalities in neurofibromatosis 2. Arch Ophthalmol 2008: 126 (10): 1376-1380
  8. Sisk RA, Berrocal AM, Schefler AC, Dubovy SR, Bauer MS. Epirretinal membranes indicate a severe phenotype of neurofibromatosis type 2. Retina 2010: 30: 51-58.
  9. Evans, D.G., Mostaccioli, S., Pang, D. et al.ERN GENTURIS clinical practice guidelines for the diagnosis, treatment, management and surveillance of people with schwannomatosis. Eur J Hum Genet 30, 812–817 (2022).

 

 

 

Damos continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentando hoje o texto excelente de dois nutricionistas, Dra. Aline e Dr. Márcio, que realizaram seus mestrados e doutorados envolvendo pessoas atendidas em nosso CRNF e contribuíram de forma importante e original internacionalmente para nossos conhecimentos sobre os problemas nutricionais nas pessoas com NF1. Agradecemos a sua colaboração neste tema tão interessante em nossa comunidade.

Dr. Lor

 

 

Aline Stangherlin Martins e Marcio Leandro Ribeiro de Souza

Nutricionistas e Doutores

no Programa de Pós Graduação

em Ciências Aplicadas à Saúde do Adulto

da Faculdade de Medicina da UFMG

As características nutricionais na NF1 começaram a ser estudadas recentemente e ainda são pouco conhecidas. Muitos fatores e características relacionadas à nutrição ainda precisam ser investigados nessa doença. A pesquisa de Souza e colaboradores, realizada no Centro de Referência em Neurofibromatoses de Minas Gerais, foi o primeiro estudo publicado que avaliou aspectos da alimentação em indivíduos com NF1, mais precisamente o consumo alimentar e a ingestão de nutrientes em indivíduos com a doença (SOUZA et al., 2015). Segundo os autores, 72% dos pacientes não atingiram suas recomendações de energia, especialmente os homens. Também foi observado uma ingestão inadequada de vitamina D, magnésio, cálcio e vitamina B6, tanto em homens quanto mulheres com a doença, e 100% dos participantes consumiram excesso de sódio. Os pacientes com NF1 não consumiram quantidades adequadas de fibras alimentares, vitamina A e vitamina C e foi observado um consumo excessivo de gordura saturada e lipídios. É importante observar que esse estudo foi apenas descritivo e não houve comparação com indivíduos sem a doença. Os autores discutem que o perfil de ingestão alimentar é ruim na NF1, assim como também é observado na população em geral (SOUZA et al., 2015).

Em uma comparação de ingestão de nutrientes entre indivíduos com NF1 e controles não acometidos pela doença, Souza e colaboradores observaram que o grupo NF1 apresentou um consumo menor de cálcio, ferro e vitamina A e um consumo maior de sódio, ácidos graxos poli-insaturados e ácido linoleico (ômega 6), quando comparado ao consumo do grupo controle. Não houve diferença entre os grupos para o consumo dos demais nutrientes. Nutrientes como cálcio, ferro, vitamina A, sódio e ômega 6 são relacionados normalmente com a saúde óssea, porém nesse estudo não houve correlação entre a ingestão de nutrientes e as características de baixa massa óssea e baixa densidade mineral óssea na NF1, observadas nesse estudo (SOUZA et al., 2020a).

Enquanto os estudos citados anteriormente avaliaram o consumo de nutrientes de forma isolada, Vilela e colaboradores avaliaram o padrão alimentar de adultos brasileiros com NF1. Nesse estudo, os autores observaram que 53,3% dos indivíduos com NF1 apresentaram um padrão alimentar ocidental, caracterizado por um consumo maior de alimentos não saudáveis, como margarina, maionese, sobremesas, frituras, embutidos, bebidas artificiais e alcoólicas. Nesse estudo, os indivíduos com NF1 e padrão alimentar ocidental apresentaram área muscular do braço menor que no grupo com padrão alimentar saudável, indicando que a alimentação ou dieta pode contribuir, mesmo em partes, para o fenótipo muscular comumente observado em indivíduos com NF1 (VILELA et al., 2020).

Enquanto estudos de avaliação da alimentação na NF1 são escassos, a maior parte dos estudos nessa doença apresentam parâmetros antropométricos como índice de massa corporal (IMC), peso, estatura e perímetro cefálico como características do estado nutricional nessa população, porém as prevalências e valores dessas variáveis não apresentam um consenso entre os estudos e, portanto, requerem uma investigação padronizada (SZUDEK; BIRCH; FRIEDMAN, 2000; TROVO-MARQUI et al., 2005; SOUZA et al., 2009; PETRAMALA et al., 2012).

A baixa estatura é mais frequente em indivíduos com NF1 quando comparados com pessoas sem a doença (MARTINS et al., 2016; MARTINS et al., 2018; SOUZA et al., 2019; SOUZA et al., 2020a). Souza e colaboradores encontraram 60% de baixa estatura (percentil menor que 5) e 54% de macrocrania (percentil maior que 95) em seu estudo com 183 pacientes com idades entre 1 e 67 anos comparada com curvas e tabelas para a população não acometida pela doença (SOUZA et al., 2009). Esses valores de baixa estatura e macrocrania diferem um pouco de outras pesquisas na NF1, todas estas realizadas com faixas etárias diferentes. Szudek e seus colaboradores encontraram 13% de baixa estatura e 24% de macrocrania em 569 crianças brancas americanas com NF1, o que resultou na elaboração de curvas de crescimento desses dois parâmetros para essa população (SZUDEK; BIRCH; FRIEDMAN, 2000). Trovó-Marqui e colaboradores também observaram baixa estatura em 40% dos seus pacientes com NF1, considerando valores de percentil menor que 3 e macrocrania em 51% dos indivíduos com a doença (percentil maior que 98) (TROVO-MARQUI et al., 2005). No estudo de Souza e colaboradores (2016), a prevalência de baixa estatura foi de 28,3%.

Na NF1, o IMC também apresenta valores diferentes quando se comparam os estudos. Petramala e colaboradores observaram IMC reduzido em 70 indivíduos com NF1 quando comparados a 40 voluntários sem a doença. As taxas de desnutrição, ou seja, indivíduos com IMC menor que 18,5 kg/m2, não foram descritas no estudo. Esse mesmo estudo mostrou apenas 5% de baixa estatura e 5% de macrocrania nos indivíduos avaliados (PETRAMALA et al., 2012). Rodrigues e colaboradores demonstraram estatura significativamente mais baixa para homens e mulheres com NF1 quando comparados a voluntários sem a doença. Esse mesmo estudo ainda encontrou diferença significativa com relação ao IMC, uma vez que o IMC de mulheres com NF1 foi maior que o IMC de controles saudáveis, contrariando o estudo de Petramala e colaboradores (2012) citado anteriormente, que encontrou IMC reduzido em indivíduos com NF1 comparados ao grupo controle (RODRIGUES et al., 2013).

O estudo de Koga e colaboradores buscou avaliar as características antropométricas (estatura e IMC) de 96 adultos japoneses com NF1 comparados a 288 voluntários não acometidos pela doença. A estatura foi menor na NF1 comparada aos controles. Quando estratificado por idade, as diferenças foram estatisticamente significativas para homens com idade entre 20 e 49 anos e mulheres de 30 a 39 anos. Por sua vez, o IMC dos homens com NF1 foi menor que o grupo controle. Não houve diferença entre as mulheres (KOGA et al., 2014). Essas mesmas características também foram confirmadas em outro estudo que buscava avaliar características metabólicas, nutricionais e musculares em japoneses com NF1 (KOGA; YOSHIDA; IMAFUKU, 2016). É interessante observar que existem divergências de resposta quando se analisa homens ou mulheres com NF1 para IMC e a justificativa para essa diferença precisa ser melhor investigada.

Martins e colaboradores encontraram menor peso e menor estatura em indivíduos com NF1 comparados com o grupo controle. Não houve diferenças no IMC, uma vez que os indivíduos foram pareados por essa variável (MARTINS et al., 2018). Outros estudos também não encontraram diferenças no IMC de indivíduos com NF1 quando comparados com pessoas sem a doença (SOUZA et al., 2019; SOUZA et al., 2020a). O estudo de Souza e colaboradores demonstrou que o baixo peso esteve presente em 10% dos voluntários avaliados e o excesso de peso em 31,7%. O IMC médio dos indivíduos com NF1 (23,86 ± 4,73 kg/m2) nesse estudo foi classificado como normal (eutrófico), da mesma forma que foi demonstrado no estudo de Petramala e colaboradores, com IMC médio de 22,5 ± 4,3 kg/m2, também em voluntários com NF1 (PETRAMALA et al., 2012; SOUZA et al., 2016).

De uma maneira geral, percebe-se que peso e estatura baixos são características clínicas comuns na NF1 com bastante variação nas prevalências entre os estudos, porém uma melhor investigação sobre os compartimentos corporais é necessária. Quanto à composição corporal na NF1, os estudos são ainda mais escassos e com resultados discrepantes. O estudo de Souza e colaboradores é um dos poucos estudos que abordaram especificamente a composição corporal na NF1, embora tenha usado métodos mais simples (dobras cutâneas e equações preditivas) para essa avaliação, e não utilizou um grupo controle, o que limita as conclusões. A área muscular do braço foi considerada baixa em 43,3% dos voluntários desse estudo, achado presente em 51,7% dos homens e 35,5% das mulheres. O percentual de gordura foi classificado como alto em 30% da amostra (SOUZA et al., 2016). Stevenson e colaboradores, em estudo realizado na Universidade de Utah, utilizaram a tomografia computadorizada periférica quantitativa para comparar os ossos e a musculatura esquelética de 40 crianças com NF1 e 380 voluntários não acometidos pela doença, com idades entre 5 e 18 anos. Este estudo demonstrou que crianças portadoras de NF1 apresentam menor área de secção transversal muscular que seus controles, porém sem maiores detalhamentos quanto à fisiopatologia deste achado (STEVENSON et al., 2005).

O método considerado padrão-ouro para avaliação da composição corporal é a absorciometria com raios-X de dupla energia (DXA). Estudos usando DXA para avaliação da massa magra ou composição corporal na NF1 não são encontrados facilmente. A maior parte dos estudos que utilizam a densitometria nessa doença avaliam apenas as características ósseas na doença, sem detalhamento dos compartimentos corporais. Dulai e colaboradores usaram a DXA em 23 crianças com NF1 com idades entre 5 e 17 anos, e o objetivo principal era avaliar a densidade mineral óssea que foi menor nestes voluntários. Os autores citam que a massa magra total ajustada pela altura foi normal, mas com uma diminuição do conteúdo mineral ósseo relativo à massa magra (DULAI et al., 2007). O estudo de Souza e colaboradores (2019) avaliou a composição corporal de adultos com NF1 através do DXA e não observou diferenças para percentual de gordura, massa gorda e massa magra quando comparados com indivíduos sem a doença. Porém a massa magra apendicular ajustada pelo IMC foi menor nos indivíduos com NF1. Esse estudo também demonstrou massa óssea e força muscular reduzidas em indivíduos com NF1, características comumente observadas nessa população (SOUZA et al., 2019).

Esses resultados divergentes entre os estudos reforçam a importância de uma investigação padronizada desses achados e de estudos que busquem entender as diferenças. Estudo em modelo animal encontrou os mesmos resultados e reforçou esses achados antropométricos e metabólicos observados nos indivíduos com NF1 (TRITZ et al., 2021).

O estudo de Souza e colaboradores demonstrou um gasto energético de repouso (GER) aumentado em indivíduos com NF1 após ajuste por peso ou massa magra ou massa magra apendicular (SOUZA et al., 2019). A hipótese inicial dos autores era que o GER fosse menor em indivíduos com NF1, uma vez que são indivíduos menores em tamanho (menor peso e estatura) e com menor massa muscular, características também demonstradas neste estudo, porém o GER aumentado foi observado na NF1 quando comparados com indivíduos sem a doença. O GER é influenciado por fatores como massa muscular, massa gorda, peso, idade, sexo, níveis de adipocinas como leptina e adiponectina, alterações metabólicas em processos patológicos, como hipo ou hipertireoidismo, entre outros (NIELSEN et al., 2000; JOHNSTONE et al., 2005; HALL et al., 2012; PSOTA; CHEN, 2013). Esse aumento de GER assemelha-se ao estudo de Leoni e colaboradores, realizado com a Síndrome de Costello, também uma Rasopatia, no qual os autores observaram um aumento de GER em indivíduos acometidos pela doença (LEONI et al., 2016). As causas para esse aumento de GER na NF1 precisam ser melhor investigadas e discutidas.

Pensando na assistência ao indivíduo com NF1 pelos profissionais de saúde, o estudo de Souza e colaboradores comparou 8 equações preditivas comumente usadas na prática clínica para estimar o GER com a calorimetria indireta (padrão-ouro) e observou que todas elas subestimam o GER em indivíduos com NF1 (SOUZA et al., 2020b). Em outro estudo, Souza e colaboradores fizeram uma comparação de equações que usam bioimpedância elétrica ou dobras cutâneas para avaliação da composição corporal com o método padrão-ouro DXA e observaram que as equações de bioimpedância elétrica apresentaram melhor adequação e acurácia, embora todas precisem ser usadas com cautela na NF1 (SOUZA et al., 2020c).

Alguns nutrientes são estudados de forma isolada na NF1. Um estudo demonstrou que indivíduos com NF1 apresentaram níveis séricos mais baixos de vitamina B12 quando comparados com indivíduos não acometidos pela doença (AYDIN; BUCAK, 2021). Outro nutriente comumente estudado na NF1 é a vitamina D. Alguns estudos observaram níveis reduzidos de vitamina nessa população e alguns estudos estudam discutem a importância dessa vitamina para o indivíduo com NF1, uma vez que pode atuar na saúde muscular e óssea, comumente afetados nos pacientes com essa doença (LAMERT et al., 2006; TUCKER et al., 2009; RICCARDI et al., 2020). Porém uma meta-análise recente não encontrou diferenças estatísticas nos níveis de vitamina D na NF1 e os autores sugerem que as alterações ósseas na NF1 podem ser resultantes de um mecanismo independente de vitamina D (KASPIRIS et al., 2024). Outro estudo demonstrou que os níveis de oito aminoácidos estavam alterados em indivíduos com NF1. Os autores demonstraram que arginina, glutamina, asparagina, serina e aspartato estavam aumentados nos indivíduos com a doença, enquanto cistina e prolina estavam reduzidos (OZ; KOYUNCU; GONEL, 2022).

Associado as características nutricionais já demonstradas, pesquisadores do CRNF observaram uma menor incidência de pacientes com diabetes Mellitus tipo 2 (DM) nos pacientes atendidos. Esse dado chamou a atenção dos profissionais, uma vez que o DM é uma doença altamente prevalente na população brasileira. Em revisão da literatura, verificou-se que dados apontavam para uma menor ocorrência de DM em pacientes com NF1 (ZAKA-UR-RAB; CHOPRA, 2005; OZHAN; OZGUVEN; ERSOY, 2013; MADUBATA et al., 2015).

Foram encontrados dois estudos apresentando relatos de caso envolvendo indivíduos com NF1, mas ambos relatavam que a associação entre DM1 e NF1 é pouco comum (ZAKA-UR-RAB; CHOPRA 2005; OZHAN; OZGUVEN; ERSOY, 2013). Um estudo desenvolvido a partir da análise de banco de dados, mostrou que pessoas com NF1 apresentaram uma chance significativamente menor de ter DM do que pessoas sem a doença (OR:0,4, IC95%: 0,3 – 0,4). Nesse estudo, foram incluídos pacientes com DM tipo1 e DM tipo 2 (MADUBATA et al., 2015).

Com objetivo de esclarecer sobre a menor frequência de diabetes em pacientes com NF1, Martins e colaboradores avaliaram a glicemia de jejum de 57 pacientes atendidos no CRNF. Os pacientes selecionados com NF1 foram pareados com controles não-NF1 selecionados do Estudo Longitudinal Brasileiro de Adultos Saúde de acordo com sexo, idade (35–74 anos) e índice de massa corporal  (IMC) na proporção de 1:3. Em ambos os grupos, foram excluídos indivíduos com DM. O nível mediano de glicemia de jejum no grupo NF1 (86 mg/dl (intervalo, 56-127 mg/dl)) foi inferior ao do grupo de controle não-NF1 (102 mg/dl (intervalo, 85–146 mg/dl)) (P<0,001). A prevalência de glicemia de jejum >100 mg/dl no grupo NF1 (16%) foi menor do que no grupo controle não-NF1 (63%) (P<0,05). A chance de um alto nível de glicemia de jejum foi 89% menor no grupo NF1 (odds ratio, 0,112; IC 95%, 0,067–0,188) (P<0,05). Os autores concluíram que, adultos com NF1 apresentaram menores níveis de glicemia de jejum e menor prevalência de alto nível de glicemia de jejum em comparação com controles não-NF1 (MARTINS et al., 2016).

Diante dos dados que apontavam para menor frequência de DM e menor glicemia de jejum em pacientes com NF1, Martins e colaboradores desenvolveram uma pesquisa com objetivo de comparar a resistência à insulina (RI), que é um preditor para o desenvolvimento de diabetes, e alguns aspectos metabólicos que possuem relação com DM de pacientes com NF1 e indivíduos sem a doença. Foram avaliados 40 pacientes com NF1 pareados por sexo, idade e IMC a 40 controles da comunidade. Amostras de sangue foram coletadas para avaliação bioquímica. Avaliação do modelo de homeostase adiponectina (HOMA-AD), modelo de avaliação de homeostase resistência à insulina (HOMA-IR) e razão adiponectina/leptina (RAL) foram usados ​​para identificar RI. Foram avaliados também os níveis de adipocitocinas leptina, visfatina, resistina e adiponectina. Os pesquisadores observaram que o valor HOMA-AD foi significativamente menor e a RAL significativamente maior no grupo NF1. Os níveis de glicemia de jejum, leptina e visfatina de pacientes com NF1 foram significativamente mais baixos e os níveis de adiponectina foram significativamente mais elevados do que os dos controles. Os autores concluíram que os níveis mais baixos de glicemia de jejum, leptina, visfatina e HOMA-AD, e níveis mais elevados de adiponectina e ALR podem estar relacionados ao aumento da sensibilidade à insulina e menor ocorrência de diabetes mellitus tipo 2 em pacientes com NF1 (MARTINS et al., 2018).

Em 2020, um estudo realizado por Kallionpää e colaboradores com 1410 pacientes, também observou menores taxas de DM2 em pacientes com NF1, corroborando as pesquisas realizadas no CRNF–MG (KALLIONPAA et al., 2021).

Estudos de intervenção nutricional na NF1 ou mesmo estudos que testaram a utilização de dieta ou nutrientes isolados na observação de características clínicas da doença são escassos. Como exemplo, pode-se citar o ômega 3. Mashour e colaboradores demonstraram in vitro que a utilização de ácidos graxos, principalmente ácido docosaexaenoico (DHA) e ácido araquidônico, pode representar possíveis substâncias reguladoras do desenvolvimento de TMBNP, resultantes da malignização de neurofibromas plexiformes (MASHOUR et al., 2005).

Um fenótipo comumente observado na NF1 é a força muscular reduzida, observado também no estudo de Souza e colaboradores (SOUZA et al., 2019). Segundo Sullivan e colaboradores, em um estudo com modelo animal, a perda da neurofibromina no músculo esquelético resulta em uma miopatia metabólica associada com acúmulo de gordura intramiocelular, aumento de triglicerídeos e aumento da atividade da ácido graxo sintase, e desregulação da função mitocondrial nesses músculos (SULLIVAN et al., 2014). Ainda pensando em prováveis mecanismos para explicar esse fenótipo de força muscular reduzida na NF1, Summers e colaboradores analisaram biópsias musculares de 6 crianças com NF1 e observaram fibrose e infiltração de células mononucleares, além de um considerável acúmulo de lipídio intramiocelular em todas as amostras, que apresentou correlação com redução da expressão da neurofibromina. A partir dessas observações, os autores testaram modelos animais que reproduziram todas as características patológicas observadas nas biópsias musculares humanas. Os animais apresentaram também acúmulo de lipídio intramiocelular que foi fortemente correlacionado com uma fraqueza muscular. Os autores, na sequência, testaram uma dieta enriquecida com ácidos graxos de cadeia média, reduzida em ácidos graxos de cadeia longa (AGCL) e aumentada em carnitina na dose de 300mg/kg/dia nesses modelos animais. Após 8 semanas, no grupo que recebeu AGCM e carnitina, houve um aumento de 45% na força muscular e redução de 71% no acúmulo de lipídio intramiocelular (SUMMERS et al., 2018). Essa associação da L-carnitina com ácidos graxos de cadeia média confirmou esses achados em um estudo clínico de fase 2 com crianças com NF1 e os autores sugerem que mais estudos em humanos testem essa estratégia para recuperação da força muscular (VASILJEVSKI et al., 2020; VASILJEVSKI et al., 2021). E um estudo em modelo animal observou que essa estratégia pode contribuir para melhorar a qualidade e porosidade óssea na NF1, o que precisa ser confirmado em humanos (O’DONOHUE et al., 2024).

Por fim, existem ainda estudos, por exemplo, associando constipação com a NF1, o que requer mais estudos (SRIDHAR et al., 2013; PEDERSEN et al., 2013; EJERSKOV et al., 2017). Outro estudo avaliou a presença de transtornos alimentares, como bulimia e anorexia, em indivíduos com NF1, uma vez que alterações dermatológicas da doença podem contribuir para distorções ou insatisfações com a imagem corporal (CHIAVARINO et al., 2023). Provavelmente no futuro novos achados e associações entre a doença e aspectos nutricionais podem aparecer e mais estudos se fazem necessários.

 

REFERÊNCIAS

 

AYDIN, H.; BUCAK, I.H. Neurofibromatosis type 1 and vitamin B12. Journal of the College of Physicians and Surgeons Pakistan, v. 31, n. 3, p. 353-355, 2021.

 

CHIAVARINO, F. et al. Eating disorders in Young patients with neurofibromatosis type 1. Journal of Paediatrics and Child Health, v. 59, n. 5, p. 723-728, 2023.

 

DULAI, S. et al. Decreased bone mineral density in neurofibromatosis type 1: results from a pediatric cohort. Journal of Pediatric Orthopedics, v. 27, n. 4, p. 472-475, 2007.

 

EJERSKOV, C. et al. Constipation in adults with neurofibromatosis type 1. Orphanet Journal of Rare Diseases, v. 12, n. 1, p. 139, 2017.

 

HALL, K.D. et al. Energy balance and its components: implications for body weight regulation. The American Journal of Clinical Nutrition, v. 95, n. 4, p. 989-994, 2012.

 

JOHNSTONE, A.M. et al. Factors influencing variation in basal metabolic rate include fat-free mass, fat mass, age, and circulating thyroxine but not sex, circulating leptin, or triiodothyronine. The American Journal of Clinical Nutrition, v. 82, n.5, p. 941-948, 2005.

 

KALLIONPÄÄ, R.A. et al. Haploinsufficiency of the NF1 gene is associated with protection against diabetes. Journal of Medical Genetics, v. 58, n. 6, p. 378-384, 2021.

 

KASPIRIS, A. et al. Bone mineral density, vitamin D and osseous metabolism indices in neurofibromatosis type 1: a systematic review and meta-analysis. Bone, v. 180, p. 116992, 2024.

 

KOGA, M. et al. Anthropometric characteristics and comorbidities in Japanese patients with neurofibromatosis type 1: a single institutional case-control study. The Journal of Dermatology, v. 41, n. 10, p. 885-889, 2014.

 

KOGA, M.; YOSHIDA, Y; IMAFUKU, S. Nutritional, muscular and metabolic characteristics in patients with neurofibromatosis type 1. The Journal of Dermatology, v. 43, n. 7, p. 799-803, 2016.

 

LAMMERT, M. et al. Vitamin D deficiency associated with number of neurofibromas in neurofibromatosis 1. Journal of Medical Genetics, v.43, n. 10, p. 810-813, 2006.

 

LEONI, C. et al. Understanding growth failure in Costello Syndrome: increased resting energy expenditure. The Journal of Pediatrics, v. 170, p. 322-24, 2016.

 

MADUBATA, C.C. et al. Neurofibromatosis type 1 and chronic neurological conditions in the United States: an administrative claims analysis. Genetics in Medicine, v. 17, n. 1, p. 36-42, 2015.

 

MARTINS A.S. et al. Lower fasting blood glucose in neurofibromatosis type 1. Endocrine Connections, v. 5, p. 28-33, 2016.

 

MARTINS A.S. et al. Increased insulin sensitivity in individuals with neurofibromatosis type 1. Archives of Endocrinology and Metabolism, v.62, n. 1, p. 41-46, 2018.

 

MASHOUR, G.A. et al. Differential modulation of malignant peripheral nerve sheath tumor growth by omega-3 and omega-6 fatty acids. Oncogene, v. 24, p. 2367-2374, 2005.

 

NIELSEN, S. et al. Body composition and resting energy expenditure in humans: role of fat, fat-free mass and extracelular fluid. International Journal of Obesity and Related Metabolic Disorders, v. 24, n. 9, p. 1153-1157, 2000.

 

O’DONOHUE, A.K. et al. Dietary intervention rescues a bone porosity phenotype in a murine model of neurofibromatosis type 1 (NF1). PLos One, v. 19, n. 6, p. e0304778, 2024.

 

OZ, O.; KOYUNCU, I.; GONEL, A. A pilot study for investigation of plasma amino acid profile in neurofibromatosis type 1 patients. Combinatory Chemistry & High Throughput Screening, v. 25, n. 1, p. 114-122, 2022.

 

OZHAN, B.; OZGUVEN, A. A.; ERSOY, B. Neurofibromatosis type 1 and diabetes mellitus: an unusual association. Case Reports in Endocrinology, v. 2013, p. 689107, 2013.

 

PEDERSEN, C.E. et al. Constipation in children with neurofibromatosis type 1. Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, v. 56, n. 2, p. 229-232, 2013.

 

PETRAMALA, L. et al. Bone mineral metabolism in patients with neurofibromatosis type 1. Archives of Dermatological Research, v. 304, n. 4, p. 325-331, 2012.

 

PSOTA, T.; CHEN, K.Y. Measuring energy expenditure in clinical populations: rewards and challenges. European Journal of Clinical Nutrition, v. 67, n. 5, p. 436-442, 2013.

 

RICCARDI, C. et al. Understanding the biological activities of vitamin D in type 1 neurofibromatosis: new insights into disease pathogenesis and therapeutic design. Cancers (Basel), v. 12, n. 10, p. 2965, 2020.

 

RODRIGUES, L.O. et al. Non-invasive endothelial function assessment in patients with neurofibromatosis type 1: a cross-sectional study. BMC Cardiovascular Disorders, v. 13, p. 18, 2013.

 

SOUZA, J.F. et al. Neurofibromatose tipo 1: mais comum e grave do que se imagina. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 55, n. 4, p. 394-399, 2009.

 

SOUZA, M.L.R. et al. Body composition in adults with neurofibromatosis type 1. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 62, n. 9, p. 831-836, 2016.

 

SOUZA, M.L.R et al. Nutrient intake in neurofibromatosis type 1: a cross-sectional study. Nutrition, v. 31, n. 6, p. 858-862, 2015.

 

SOUZA, M.L.R. et al. Increased resting metabolism in neurofibromatosys type 1. Clinical Nutrition ESPEN, v. 32, p. 44-49, 2019.

 

SOUZA, M.L.R. et al. Reduced bone mineral content and density in neurofibromatosis type 1 and its association with nutrient intake. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 66, n. 5, p.666-672, 2020a.

 

SOUZA, M.L.R. et al. Resting energy expenditure in neurofibromatosis type 1 : indirect calorimetry versus predictive equations. Journal of Human & Clinical Genetics, v. 2, n. 1, p. 9-14, 2020b.

 

SOUZA, M.L.R. et al. Assessment of adiposity in neurofibromatosis type 1 : comparison between dual energy X-ray absorptiometry and conventional methods. Journal of Human & Clinical Genetics, v. 2, n. 1, p. 15-22, 2020c.

 

SRIDHAR, H. et al. Chronic Constipation Caused by Neurofibromatous Proliferation in A Case of Von Recklinghausen’s Disease – A Case Report. Journal of Clinical and Diagnostic Research, v. 7, n. 9, p. 2001-2003, 2013.

 

STEVENSON, D.A. et al. Case control study of the muscular compartments and osseous strength in neurofibromatosistype1 using peripheral quantitative computed tomography. Journal of Musculoskeletal & Neuronal Interactions, v. 5, n. 2, p. 145-149, 2005.

 

SULLIVAN, K. et al. NF1 is a critical regulator of muscle development and metabolism. Human Molecular Genetics, v. 23, n. 5, p. 1250-1259, 2014.

 

SUMMERS, M.A. et al. Dietary intervention rescues myopathy associated with neurofibromatosis type 1. Human Molecular Genetics, v. 27, n. 4, p. 577-588, 2018.

 

SZUDEK, J.; BIRCH, P.; FRIEDMAN, J.M. Growth in North American white children with neurofibromatosis 1 (NF1). Journal of Medical Genetics, v. 37, n. 12, p. 333-338, 2000.

 

TRITZ, R. et al. Nf1 heterozygous mice recapitulate the anthropometric and metabolic features of human neurofibromatosis type 1. Translational Research, v. 228, p. 52-63, 2021.

 

TROVÓ-MARQUI, A.B. et al. High frequencies of plexiform neurofibromas, mental retardation, learning difficulties, and scoliosis in Brazilian patients with neurofibromatosis type 1. Brazilian Journal of Medical and Biological Research, v. 38, n. 9, p. 144-147, 2005.

 

TUCKER, T. et al. Bone health and fracture rate in individuals with neurofibromatosis 1 (NF1). Journal of Medical Genetics, v. 46, n. 4, p.259-265, 2009.

 

VASILJEVSKI, E.R. et al. Evaluating modified diets and dietary supplement therapies for reducing muscle lipid accumulation and improving muscle function in neurofibromatosis type 1 (NF1). PLoS One, v. 15, n. 8, p. e0237097, 2020.

 

VASILJEVSKI, E.R. et al. L-carnitine supplementation for muscle weakness and fatigue in children with neurofibromatosis type 1: a phase 2a clinical trial. American Journal of Medical Genetics Part A, v. 185, n. 10, p. 2976-2985, 2021.

 

VILELA, D.L.S. et al. Dietary patterns of Brazilian adults with neurofibromatosis type 1. Revista Chilena de Nutrición, v. 47, n. 5, p. 772-781, 2020.

 

ZAKA-UR-RAB, Z.; CHOPRA, K. Diabetes mellitus in neurofibromatosis I: an unusual presentation. Indian Pediatrics, v. 42, n. 2, p. 185-186, 2005.

 

 

Em mais uma continuidade da divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o texto completo e didático da Dra. Vanessa Waisberg, doutora em oftalmologia, que tem sido uma colaboradora incansável do CRNF, atendendo pessoas com NF1 e Schwannomatose relacionada ao gene NF2, que foi justamente o tema de seu doutorado e prêmio nacional de oftalmologia. Agradecemos muito por mais esta colaboração e publicaremos a segunda parte (Problemas Oftalmológicos nas Schwannomatoses) na próxima semana.

Dr. Lor

 

 

Dra. Vanessa Waisberg

Oftalmologista com doutorado em

Medicina Molecular pela UFMG

Introdução

 

O olho e seus anexos estão frequentemente envolvidos nos pacientes com Neurofibromatose tipo 1 (NF1). Algumas dessas manifestações oculares, como os nódulos de Lisch, os gliomas de vias ópticas, os neurofibromas plexiformes e os nódulos de coroide são característicos da doença e fazem parte dos critérios diagnósticos da NF1 .

Enquanto os nódulos de Lisch não oferecem risco a saúde ocular, os gliomas ópticos e os neurofibromas palpebrais precisam de acompanhamento e podem eventualmente comprometer a visão dos pacientes.

Outros achados oculares podem ser encontrados em portadores de NF1, mas não são considerados critérios diagnósticos.

 

Nódulos de Lisch

Os nódulos de Lisch foram descritos pela primeira vez em 1937 pelo oftalmologista austríaco Karl Lisch. Eles são as manifestações oculares mais comuns e mais bem conhecidas da NF1.

O nódulos de Lisch (Figura 1)  são pequenas lesões elevadas, bem delimitadas, de coloração que varia entre o amarelo e o marrom, que podem ser discretas ou evidentes e aparecem na superfície da íris de cerca de 95% dos pacientes adultos com NF1. Histologicamente, os nódulos de Lisch são hamartomas, tumores de crescimento lento e benigno. O número e o tamanho dos nódulos de Lisch aumentam com a idade. Eles são incomuns antes dos dois anos de idade e aos dez anos de idade é possível identificar essas lesões em cerca de 70% dos pacientes.

 

Figura 1 – Variações dos nódulos de Lisch

 

Neurofibromas plexiformes orbitários e periorbitários.

A maioria dos neurofibromas (ver capítulo sobre neurofibromas) orbitários e periorbitários (NFO) se desenvolve ao longo das ramificações do nervo trigêmeo. Os neurofibromas isolados de pálpebra superior podem assumir a forma de S e geralmente causam leve ptose sem obstruir o eixo visual. Os neurofibromas localizados na pálpebra e região periorbitária podem causar ptose e levar a ambliopia por privação ou ambliopia refracional. Ambliopia é a redução da acuidade visual causada por interação binocular anormal durante o período de desenvolvimento visual. Os neurofibromas orbitários com ou sem envolvimento palpebral invadem a órbita lateral e raramente podem invadir estruturas intracranianas.

A incidência dos NFO em crianças com NF1 é menor que 10%. Apesar dos NFO serem congênitos, eles podem não ser evidentes logo após o nascimento. A maioria é identificada nos primeiros anos de vida. Toda criança com assimetria periorbitária ou proptose unilateral deve ser avaliada para descartar NFO. Não existe indicação de biopsia para confirmar o diagnóstico de NFO nas crianças que já possuem o diagnóstico de NF1.Toda criança diagnosticada com NFO independente do diagnóstico de NF1 deve realizar ressonância  magnética (RM) do encéfalo e da órbita para confirmar o diagnóstico de NFO e definir sua extensão. A necessidade de nova RM depende da progressão clínica.

 

Figura 2 – Diferentes apresentações do neurofibroma palpebral

 

Manejo oftalmológico

Recomenda-se que crianças com NFO realizem exame oftalmológico a cada seis meses durante os primeiros oito anos de vida, que é o período de desenvolvimento visual e é também o período que os NFO geralmente apresentam as maiores taxas de crescimento.

Os principais problemas oftalmológicos relacionados aos NFO são ambliopia, estrabismo, glaucoma e neuropatia óptica compressiva.

O manejo do estrabismo nas crianças com NFO é complexo. O oftalmologista deve priorizar o tratamento não cirúrgico da ambliopia, incluindo a correção dos erros refracionais e tratamento oclusivo. O tratamento cirúrgico do estrabismo deve ser considerado nos primeiros anos de vida quando a gravidade do estrabismo prejudica o tratamento da ambliopia. Uma abordagem conservadora inicial permite que o tratamento cirúrgico seja realizado quando o crescimento do NFO tenha diminuído e o processo geral do quadro esteja mais estável.

Indicações de tratamento

Após o diagnóstico, os NFO devem ser  acompanhados através de exame oftalmológico periódico e RM. Tumores estáveis podem ser acompanhados clinicamente. Nem todos os tumores irão progredir ou causar sintomas significativos. Quando se observar piora clínica está indicado realizar RM.

Até recentemente o tratamento cirúrgico era o principal tratamento disponível para  os NFO sintomático. Quando o tumor pode ser ressecado completamente a cirurgia geralmente é o tratamento de escolha. Infelizmente a cirurgia é desafiadora em muitos casos de NFO e  os resultados cirúrgicos geralmente não são satisfatórios a longo prazo devido à característica infiltrava do tumor e sua tendência a recorrer.

Nos últimos anos, o tratamento com quimioterápico oral se tornou uma opção de tratamento para pessoas com NF1 maiores que 2 anos com neurofibromas plexiformes inoperáveis  Alguns pacientes apresentam regressão parcial do tumor com o tratamento.

Muitos fatores influenciam a indicação do tratamento, como o tamanho do tumor, a localização, a taxa de crescimento, a idade do paciente, o risco de complicações irreversíveis e a gravidade dos sintomas. Alguns casos podem ser observados, outros podem ter indicação de cirurgia, tratamento  quimioterápico,  ou uma combinação dos dois.

 

Gliomas de Vias Ópticas

Gliomas de vias ópticas (GO) ocorrem em 5% a 25% das crianças com NF1. Eles podem aparecer em qualquer parte da via óptica e acometer um ou os dois nervos ópticos, o quiasma, as estruturas retro quiasmáticas como o hipotálamo e as radiações ópticas. Tipicamente, apresentam pouca tendência ao crescimento e muitas crianças permanecem assintomáticas. Raramente esses tumores podem ser agressivos. O motivo do comportamento agressivo de alguns GO ainda é desconhecido.

Nos gliomas assintomáticos a conduta é acompanhamento oftalmológico. Quando se observar redução na acuidade visual que não possa ser atribuída a outras causas, como erro refracional, ambliopia ou outros problemas anatômicos do olho, está indicado realizar ressonância magnética.

As principais indicações para realizar o tratamento do GO são piora clinica e aumento progressivo do GO. A piora clínica pode ser piora da acuidade visual, piora da proptose, sintomas neurológicos, perda da visão de cores ou disfunção endócrina.  A primeira linha de tratamento é a quimioterapia. Radioterapia e cirurgia raramente são indicados.

Figura 3 – Localização e imagens de glioma das vias ópticas

 

Alterações de Coroide

 As alterações da coroide, que é a camada vascular da parede ocular,  foram incluídas recentemente como critério diagnóstico devido a sua alta especificidade e sensibilidade para NF1, mas não oferecem risco para a visão.

As alterações de coroide da NF1 não são detectadas através do exame tradicional de fundo de olho.  Elas são identificadas com o exame de tomografia de coerência óptica (OCT), que produz imagens da retina e da coroide com a luz infra vermelha. As alterações de coroide aparecem como nódulos hiper refletivos e podem ser numerosos ou raros.

Outros Achados Oftalmológicos

– Glaucoma: o glaucoma na NF1 ocorre em cerca de 1% dos pacientes. Geralmente é unilateral e na maioria das vezes está associado a um neurofibroma palpebral ou periorbitário e ao ectrópio uveal, que é uma alteração congênita da íris. Nos glaucomas que ocorrem precocemente o tratamento geralmente é cirúrgico, semelhante ao tratamento do glaucoma congênito.  Nos casos mais tardios o tratamento com colírios pode ser tentado. A acuidade visual fica comprometida no olho afetado na maioria dos casos.

– Alterações da retina: o comprometimento da retina na NF1 é raro, mas tumores como hamartomas astrocíticos, hamartomas retinianos, hemangiomas capilares e tumores vasoproliferativos já foram descritos.

– Erros refracionais: a prevalência de miopia leve a moderada (-0,50 a -6,0 dioptrias) é um pouco maior que na população geral.  A prevalência da alta miopia, astigmatismo e hipermetropia é semelhante à da população geral.

 

Referências:

  1. Kinori M, Hodgson N, Zeid JL. Ophthalmic manifestations in neurofibromatosis type 1. Surv Ophthalmol. 2018 Jul-Aug;63(4):518-533.
  2. Abdolrahimzadeh B, Piraino DC, Albanese G, Cruciani F, Rahimi S. Neurofibromatosis: an update of ophthalmic characteristics and applications of optical coherence tomography. Clin Ophthalmol. 2016 May 13;10:851-60.
  3. Akinci A, Acaroglu G, Guven A, Degerliyurt A. Refractive errors in neurofibromatosis type 1 and type 2. Br J Ophthalmol. 2007 Jun;91(6):746-8. doi: 10.1136/bjo.2006.109082.
  4. Legius E, Messiaen L, Wolkenstein P, Pancza P, Avery RA, Berman Y, Blakeley J, Babovic-Vuksanovic D, Cunha KS, Ferner R, Fisher MJ, Friedman JM, Gutmann DH, Kehrer-Sawatzki H, Korf BR, Mautner VF, Peltonen S, Rauen KA, Riccardi V, Schorry E, Stemmer-Rachamimov A, Stevenson DA, Tadini G, Ullrich NJ, Viskochil D, Wimmer K, Yohay K; International Consensus Group on Neurofibromatosis Diagnostic Criteria (I-NF-DC); Huson SM, Evans DG, Plotkin SR. Revised diagnostic criteria for neurofibromatosis type 1 and Legius syndrome: an international consensus recommendation. Genet Med. 2021 Aug;23(8):1506-1513.
  5. Thavikulwat AT, Edward DP, AlDarrab A, Vajaranant TS. Pathophysiology and management of glaucoma associated with phakomatoses. J Neurosci Res. 2019 Jan;97(1):57-69.
  6. Armstrong AE, Belzberg AJ, Crawford JR, Hirbe AC, Wang ZJ. Treatment decisions and the use of MEK inhibitors for children with neurofibromatosis type 1-related plexiform neurofibromas. BMC Cancer. 2023 Jun 16;23(1):553.
  7. Avery RA, Katowitz JA, Fisher MJ, Heidary G, Dombi E, Packer RJ, Widemann BC; OPPN Working Group. Orbital/Periorbital Plexiform Neurofibromas in Children with Neurofibromatosis Type 1: Multidisciplinary Recommendations for Care. Ophthalmology. 2017 Jan;124(1):123-132.
  8. Ragge NK, Falk RE, Cohen WE, Murphree AL. Images of Lisch nodules across the spectrum. Eye (Lond). 1993;7 ( Pt 1):95-101.
  9. Lohkamp LN, Parkin P, Puran A, Bartels UK, Bouffet E, Tabori U, Rutka JT. Optic Pathway Glioma in Children with Neurofibromatosis Type 1: A Multidisciplinary Entity, Posing Dilemmas in Diagnosis and Management Multidisciplinary Management of Optic Pathway Glioma in Children with Neurofibromatosis Type 1. Front Surg. 2022 May 3;9:886697.
  10. Sellmer L, Farschtschi S, Marangoni M, Heran MKS, Birch P, Wenzel R, Mautner VF, Friedman JM. Serial MRIs provide novel insight into natural history of optic pathway gliomas in patients with neurofibromatosis 1. Orphanet J Rare Dis. 2018 Apr 23;13(1):62.

 

Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o texto esclarecedor da Dra. Cinthia Vila Nova Santana, doutora em genética , que vem colaborando com nossos conhecimentos sobre as pessoas com NF1. Muito obrigado por mais esta colaboração, que é uma necessidade dos profissionais de saúde que trabalham com doenças genéticas.

Dr. Lor

 

 

Cinthia Vila Nova Santana

Biomédica, Doutora em Genética

Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Fundação ProAR

 

O desenvolvimento da engenharia genética na década de 1970 marcou o início de uma era importante na medicina. Pela primeira vez, pesquisadores foram capazes de manipular moléculas de DNA através de técnicas como a clonagem e reação em cadeia da polimerase (PCR), o que tornou possível o estudo de genes de interesse medicinal e biotecnológico. Desde então, muitos avanços aprimoraram as técnicas de biologia molecular, possibilitando o estudo dos genes não apenas isolados, mas também no organismo como um todo.

O primeiro relato de terapia gênica se deu em 1990, em uma paciente com uma deficiência imunológica grave provocada por uma condição genética rara (Anderson, 1990). Essa técnica envolvia a inserção de cópias funcionais do gene responsável pela produção de uma enzima ausente ou defeituosa. Embora esse tratamento tenha mostrado resultados promissores, também revelou desafios significativos, como a possibilidade de reações adversas, eficácia limitada e, até mesmo, risco de morte.

Anos mais tarde, as pesquisadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier anunciaram, em 2012, uma nova técnica de edição de genomas (CRISPR) que iria revolucionar o campo da terapia gênica. Essa descoberta conferiu, em 2020, o prêmio Nobel em Química para essas duas pesquisadoras (The Nobel Foundation, 2020). A nova metodologia reacendeu a esperança de cura para doenças genéticas, como as neurofibromatoses, que são provocadas por erros em um local específico no nosso DNA. Nesse capítulo, vamos entender um pouco mais sobre terapia gênica e como o método pode influenciar no tratamento da Neurofibromatose do tipo 1 (NF1).

 

Tratamentos genéticos e suas possibilidades na NF1

Antes de falarmos sobre tratamentos genéticos (ou terapia gênica), vamos compreender alguns conceitos. O nosso DNA contém genes onde estão armazenadas as instruções para a fabricação de proteínas. É como se os genes fossem o manual de instruções para a montagem de peças ─ as proteínas ─ e essas peças fazem o trabalho necessário para garantir o bom funcionamento do nosso corpo. Quando alguma instrução está defeituosa, temos proteínas que não funcionam corretamente, ou até mesmo que não são nem produzidas, e isso pode acarretar doenças genéticas como, por exemplo, a fibrose cística, anemia falciforme, beta talassemia, e as neurofibromatoses. Os tratamentos genéticos, por sua vez, têm como objetivo corrigir esses erros no DNA (também chamados de mutações), a fim de tratar uma doença (Anguela & High, 2019).

A NF1 é uma doença genética, resultante da mutação no gene que produz a proteína neurofibromina, presente em vários tipos celulares (especialmente em neurônios e nervos periféricos) e tem como função controlar o crescimento das células. Nas pessoas com NF1, essa proteína está ausente ou defeituosa, o que gera uma proliferação e um crescimento celular descontrolado, característico dos tumores (neurofibromas) observados na doença (Brems et al., 2009; Gutmann et al., 2017). Até o momento, não existe cura para a NF1, apenas tratamentos das condições específicas que surgem em cada paciente.

Mas, então, você poderia se perguntar: se o problema está na ausência da neurofibromina, por que não tomamos a neurofibromina artificial para correção da NF1? Existem alguns fatores a se considerar.

Primeiramente, esta é uma proteína grande (com cerca de 327 kDa e 2818 aminoácidos) e com uma conformação complexa (Nordlund et al., 1993; Upadhyaya et al., 2008), o que dificulta a sua síntese em laboratório.

Além disso, essa proteína é importante desde a vida intrauterina para o desenvolvimento do bebê, por isso muitas manifestações clínicas da doença, como as manchas café com leite, por exemplo, já estão presentes ao nascimento. Assim, a administração da neurofibromina após o nascimento não seria capaz de reverter as consequências da ausência dessa proteína em estágios iniciais do desenvolvimento.

Somando-se a isso, cerca de metade dos casos de NF1 são resultantes de mutações novas, quando não há histórico familiar (Mckeever et al., 2008), e, portanto, o diagnóstico da doença não é conhecido durante a gestação, o que inviabilizaria um possível tratamento.

Nesse contexto, terapias genéticas surgem como uma esperança de tratamento, e quem sabe até mesmo cura, para a NF1. Vejamos abaixo alguns dos avanços e pesquisas que estão sendo realizadas nessa área.

 

Terapia gênica direta – Substituição do gene defeituoso

 

A terapia gênica direta para NF1 busca corrigir a mutação ou substituir o gene NF1 defeituoso por uma cópia funcional (Leier et al., 2020), visando restaurar a função da neurofibromina e reduzir o crescimento dos tumores e outras manifestações associadas à doença. Essa parece ser uma excelente alternativa de tratamento, no entanto, alguns desafios ainda precisam ser superados para que a substituição do gene seja uma realidade.

Como já vimos, o NF1 é um gene grande, com cerca de 350 kb, e complexo (Pasmant et al., 2015), o que dificulta consideravelmente sua manipulação em laboratório. Pesquisadores conseguiram menos de 10% de sucesso nas taxas de transfecção, isto é, incorporação do gene funcional dentro das células (Bai et al., 2019). Além disso, o sistema de entrega do gene funcional ainda não está bem estabelecido para a NF1. Opções de entrega como a utilização de vetores virais, nanopartículas, exosomos e polímeros ainda não conseguem acomodar o tamanho do gene da NF1 em seu sistema. Imagine tentar transportar um bolo de casamento de 7 andares em uma bicicleta, é muito difícil conseguir entregar o bolo íntegro no local da festa.

 

CRISPR – Edição do genoma

 

Alternativamente à substituição do gene, a edição de parte do genoma se torna uma opção mais plausível no caso da NF1. Existem três abordagens principais para edição do DNA:

  • utilização de nucleases dedo de zinco (ZFN, do inglês zinc finger nucleases);
  • uso de nucleases efetoras semelhantes a ativadores de transcrição (TALENs, do inglês transcription activator-like effector nucleases);
  • sistema CRISPR-Cas (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats).

As duas primeiras utilizam como domínio de reconhecimento do DNA estruturas proteicas (dedos de zinco e proteínas TAL – transcription activator-like, respectivamente), ao passo que o sistema CRISPR-Cas utiliza o pareamento das bases nitrogenadas (adenina com timina e citosina com guanina), o que confere maior especificidade a essa metodologia.

Desde que foi descrito como ferramenta de edição de genoma em 2012 (Jinek et al., 2012), o sistema CRISPR-Cas vem sendo amplamente utilizado devido à sua simplicidade, eficácia e versatilidade (Wang & Doudna, 2023). Vamos entender um pouco mais sobre ele.

CRISPR acontece naturalmente em bactérias, como um mecanismo de defesa contra infecções por vírus (Figura 1) (Mojica et al., 2005). De maneira geral, quando um vírus infecta uma bactéria, ele injeta seu material genético dentro dela. Parte desse material é então incorporado no DNA da bactéria como um novo espaçador do sistema CRISPR. Vamos imaginar que a bactéria é uma casa que foi invadida pelo vírus. As câmeras de segurança conseguem identificar esse vírus e guardar a sua imagem nos arquivos (espaçadores do sistema CRISPR). Essa imagem é impressa e entregue aos seguranças para que fiquem alertas em caso de nova tentativa de invasão pelo vírus. No caso da bactéria, a sequência do vírus é, então, transcrita (“impressa”, isto é, a informação é passada de DNA para RNA) e processada para gerar os RNAs de CRISPR (crRNAs), como observado na Figura 1. Estes, por sua vez, associam-se a uma proteína Cas, que irá cortar o material genético do vírus invasor utilizando o crRNA como molde para esse silenciamento em infecções futuras (Wang & Doudna, 2023).

Figura 1: Representação esquemática do sistema CRISPR numa célula procariota. Com uma infecção por vírus, a bactéria incorpora parte desse material genético em seu próprio genoma, como um espaçador do sistema CRISPR (estágio 1). Essa informação será transformada (transcrita) em um pré-crRNA (estágio 2) e então processada para que, em caso de uma nova infecção viral, o crRNA maduro possa clivar (destruir) o material genético do vírus (estágio 3), impedindo o sucesso da infecção.

Inspirados nesse sistema, os pesquisadores começaram a trabalhar na possibilidade de utilizar CRISPR como ferramenta para edição de genomas. Após anos de estudo, o grupo liderado por Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier descobriu como realizar esse feito que iria revolucionar o campo das ciências biomédicas. Eles identificaram que para editar o genoma com CRISPR eram necessários basicamente três componentes (Figura 2) (Jinek et al., 2012):

  • RNA guia: é a combinação do crRNA (onde está a sequência complementar ao alvo) com o tracrRNA (contribui para a estabilidade da estrutura e seu reconhecimento pela enzima Cas);
  • Enzima Cas (do inglês CRISPR associated): essa enzima possui a capacidade de cortar o DNA na região específica identificada pelo RNA guia. Existem várias enzimas descritas hoje em dia, mas a primeira delas foi a Cas9;
  • DNA alvo com a sequência PAM: o DNA alvo é a sequência de interesse que será editada. Próximo a ela, está o motivo adjacente ao protoespaçador ou PAM (do inglês, Protospacer Adjacent Motif), que é uma sequência curta (cerca de 2 a 5 nucleotídeos) essencial para a ancoragem do complexo Cas/RNA guia. A sequência PAM funciona como uma bandeira para confirmação que aquela região do DNA alvo é realmente onde deve acontecer a edição.

 

 

Figura 2: Representação esquemática do sistema CRISPR como ferramenta de edição do genoma. Basicamente são necessários apenas três componentes, o RNA guia formado pela combinação do crRNA e o tracrRNA, a enzima Cas9 e o DNA alvo juntamente com a sequência PAM.

 

De maneira geral, o que acontece na edição do genoma é a entrega do complexo contendo o RNA guia acoplado à enzima Cas, para o tecido que necessita da edição. Um dos métodos mais comuns de entrega é através de vetores virais, que consistem em vírus modificados para não causarem doença, assim como por nanopartículas, exosomos, eletroporação, entre outros métodos de transporte.

Diversas adaptações foram realizadas nesse sistema para permitir uma atuação mais ampla na edição do genoma. Por exemplo, é possível modificar uma base nitrogenada sem necessariamente clivar o DNA utilizando proteínas acopladas à Cas, ou ativar e desativar genes, regular a expressão de genes através de modulação epigenética (afrouxando ou condensando o DNA para deixá-lo mais ou menos disponível para a maquinaria de transcrição da célula), entre outras aplicações [para maiores detalhes, ver revisão de (Chavez et al., 2023)].

Inúmeros estudos utilizam o sistema CRISPR como ferramenta de edição genética na busca pelo tratamento de doenças, mas, até o momento, apenas uma terapia gênica com essa ferramenta foi aprovada para uso em pacientes. No final de 2023, o Reino Unido, seguido dos EUA, aprovaram a terapia com CRISPR para tratamento da anemia falciforme e beta talassemia (Food and Drug Administration (FDA), 2023), após anos de pesquisas e acompanhamento de pacientes. Os resultados são bastante promissores e nos dão esperança para que, em breve, essa metodologia possa ser empregada no tratamento de outras doenças.

No que se refere à NF1, ainda existem poucos estudos com essa metodologia. De maneira geral, a literatura mostra a utilização da ferramenta CRISPR para criar organismos modelos experimentais da doença, a fim de que pesquisas mais aprofundadas possam ser realizadas para melhor entendimento da doença e busca de alvos terapêuticos. Contudo, até então, não existem publicações com o uso de CRISPR no tratamento da NF1.

Afinal, existe cura da NF1 com terapia gênica?

Leier e colaboradores e Staedtke e colaboradores resumem, em seus artigos de revisão, possibilidades de terapias genéticas para a NF1 (Leier et al., 2020; Staedtke et al., 2024). A terapia gênica é sim um grande avanço na medicina, no entanto, existem algumas limitações. É importante destacar que o tamanho e complexidade do gene NF1, a dificuldade com o sistema de entrega (vetores virais e não virais), o aspecto sistêmico da doença que afeta múltiplos órgãos e tecidos, a importância da neurofibromina desde a vida uterina, o diagnóstico tardio e a alta taxa de mutações novas em pessoas sem histórico familiar são alguns dos fatores que dificultam os avanços para o tratamento genético da NF1. Apesar disso, a ciência está caminhando em busca desse tratamento e espera-se que, em breve, novas possibilidades se tornem realidade.

 

Referências

Anderson, W. F. (1990). September 14, 1990: The Beginning. Human Gene Therapy, 1(4), 371–372. https://doi.org/10.1089/hum.1990.1.4-371

Anguela, X. M., & High, K. A. (2019). Entering the Modern Era of Gene Therapy. Annual Review of Medicine, 70(1), 273–288. https://doi.org/10.1146/annurev-med-012017-043332

Bai, R. Y., Esposito, D., Tam, A. J., McCormick, F., Riggins, G. J., Wade Clapp, D., & Staedtke, V. (2019). Feasibility of using NF1-GRD and AAV for gene replacement therapy in NF1-associated tumors. Gene Therapy, 26(6), 277–286. https://doi.org/10.1038/s41434-019-0080-9

Brems, H., Beert, E., de Ravel, T., & Legius, E. (2009). Mechanisms in the pathogenesis of malignant tumours in neurofibromatosis type 1. The Lancet Oncology, 10(5), 508–515. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(09)70033-6

Chavez, M., Chen, X., Finn, P. B., & Qi, L. S. (2023). Advances in CRISPR therapeutics. In Nature Reviews Nephrology (Vol. 19, Issue 1, pp. 9–22). Nature Research. https://doi.org/10.1038/s41581-022-00636-2

Food and Drug Administration (FDA). (2023, December 8). FDA Approves First Gene Therapies to Treat Patients with Sickle Cell Disease. Https://Www.Fda.Gov/News-Events/Press-Announcements/Fda-Approves-First-Gene-Therapies-Treat-Patients-Sickle-Cell-Disease.

Gutmann, D. H., Ferner, R. E., Listernick, R. H., Korf, B. R., Wolters, P. L., & Johnson, K. J. (2017). Neurofibromatosis type 1. Nature Reviews Disease Primers, 3, 17004. https://doi.org/10.1038/nrdp.2017.4

Jinek, M., Chylinski, K., Fonfara, I., Hauer, M., Doudna, J. A., & Charpentier, E. (2012). A Programmable Dual-RNA – Guided DNA Endonuclease in Adaptive Bacterial Immunity. Science (New York, N.Y.), 337(August), 816–822. https://doi.org/10.1126/science.1225829

Leier, A., Bedwell, D. M., Chen, A. T., Dickson, G., Keeling, K. M., Kesterson, R. A., Korf, B. R., Marquez Lago, T. T., Müller, U. F., Popplewell, L., Zhou, J., & Wallis, D. (2020). Mutation-Directed Therapeutics for Neurofibromatosis Type I. In Molecular Therapy Nucleic Acids (Vol. 20, pp. 739–753). Cell Press. https://doi.org/10.1016/j.omtn.2020.04.012

Mckeever, D., Mckeever, K., Shepherd, C. W., Crawford, H., & Morrison, P. J. (2008). An epidemiological, clinical and genetic survey of Neurofibromatosis type 1 in children under sixteen years of age. In Ulster Med J (Vol. 77, Issue 3). www.ums.ac.uk

Mojica, F. J. M., Díez-Villaseñor, C., García-Martínez, J., & Soria, E. (2005). Intervening sequences of regularly spaced prokaryotic repeats derive from foreign genetic elements. Journal of Molecular Evolution, 60(2), 174–182. https://doi.org/10.1007/s00239-004-0046-3

Nordlund, M., Gu, X., Shipley, M. T., & Ratner, N. (1993). Neurofibromin is enriched in the endoplasmic reticulum of CNS neurons. The Journal of Neuroscience : The Official Journal of the Society for Neuroscience, 13(4), 1588–1600. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8463837

Pasmant, E., Parfait, B., Luscan, A., Goussard, P., Briand-Suleau, A., Laurendeau, I., Fouveaut, C., Leroy, C., Montadert, A., Wolkenstein, P., Vidaud, M., & Vidaud, D. (2015). Neurofibromatosis type 1 molecular diagnosis: what can NGS do for you when you have a large gene with loss of function mutations? European Journal of Human Genetics, 23(5), 596–601. https://doi.org/10.1038/ejhg.2014.145

Staedtke, V., Anstett, K., Bedwell, D., Giovannini, M., Keeling, K., Kesterson, R., Kim, Y. R., Korf, B., Leier, A., McManus, M. L., Sarnoff, H., Vitte, J., Walker, J. A., Plotkin, S. R., & Wallis, D. (2024). Gene-targeted therapy for neurofibromatosis and schwannomatosis: The path to clinical trials. Clinical Trials, 21(1), 51–66. https://doi.org/10.1177/17407745231207970

The Nobel Foundation. (2020, October 7). The Nobel Prize. Https://Www.Nobelprize.Org/Prizes/Chemistry/2020/Press-Release/.

Upadhyaya, M., Kluwe, L., Spurlock, G., Monem, B., Majounie, E., Mantripragada, K., Ruggieri, M., Chuzhanova, N., Evans, D., Ferner, R., Thomas, N., Guha, A., & Mautner, V. (2008). Germline and Somatic NF1 Gene Mutation Spectrum in NF1-Associated Malignant Peripheral Nerve Sheath Tumors (MPNSTs). Human Mutation, 29, 74–82. https://doi.org/10.1002/humu

Wang, J. Y., & Doudna, J. A. (2023). CRISPR technology: A decade of genome editing is only the beginning. Science, 379(6629). https://doi.org/10.1126/science.add8643

 

Outras informações sobre este tema em nosso site:

https://amanf.org.br/2016/04/crispr-nf/

https://amanf.org.br/2015/12/selecionar-bebes-sem-nf/

https://amanf.org.br/2016/02/novidade-no-dna-das-pessoas-com-nf1/

https://amanf.org.br/2016/03/pergunta-188-por-que-nao-dar-neurofibromina-para-quem-tem-nf1/

https://amanf.org.br/2016/09/reproducao-assistida/

https://amanf.org.br/2018/08/novas-mutacoes/

https://amanf.org.br/2019/04/quando-sera-cura-neurofibromatoses/

https://amanf.org.br/2019/05/reuniao-174-da-amanf-discutiu-novo-tratamento-genetico-a-festa-junina-e-outros-assuntos/

 

 

 

Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o excelente texto de um grupo de neurocientistas da Universidade Federal de Minas Gerais, que tem participado há muitos anos do desenvolvimento dos nossos conhecimentos sobre as pessoas com NF1.

Muito obrigado por mais esta colaboração, que já nasce como uma referência fundamental para a população brasileira.

Dr. Lor

 

Danielle de Souza Costa (Ph.D.)

Jonas Jardim de Paula (Ph.D.)

Débora Marques de Miranda (M.D., Ph.D)

Neuropsicologia da NF1

A Neurofibromatose Tipo 1 (NF1) é uma condição genética que afeta o sistema nervoso central e periférico frequentemente associada a déficits cognitivos (até 80% dos casos), sendo as dificuldades de aprendizagem uma das adversidades mais comuns no quadro (Hyman et al. 2005). Apesar de déficits cognitivos serem uma característica chave da NF1, o perfil de comprometimentos tem se mostrado bastante heterogêneo (Crow et al., 2022). Variáveis sociodemográficas (p.ex., idade, sexo, escolaridade e nível de educação dos pais) não impactam significativamente o perfil de déficits cognitivos na NF1 e os comprometimentos são difusos e salientes ao longo da vida (Crow et al., 2022).

Pessoas com NF1 enfrentam um risco aumentado de desenvolver comprometimentos cognitivos e disfunções motoras (Gutmann et al., 2012). A inteligência é encontrada na faixa média-inferior (ou seja, QI ≈ 85–90) e a taxa de Deficiência Intelectual (i.e., QI ≤70 e baixa funcionalidade) é maior que na população em geral (6%–7%) (Lehtonen et al., 2013). Outra característica marcante é o comprometimento de funções executivas (Beaussart et al., 2018), além de déficits de desempenho acadêmico, habilidade visuoespacial, atenção e funcionamento psicossocial (Lehtonen et al., 2013). É comum que as dificuldades cognitivas sejam evidentes já na infância, entre os 3 e 5 anos de idade (Williams et al., 2009). Apesar de o comprometimento cognitivo ser perceptível em vários domínios na NF1, não existe um perfil cognitivo claro associado à condição (Crow et al., 2022).

Em metanálise, Crow e colegas (2022) encontraram que as maiores diferenças em magnitude de efeito entre pessoas com NF1 e controles foram nos escores de inteligência (geral, de execução e verbal) e em habilidades visuoespaciais. Diferenças menores e moderadas, foram encontradas tanto para habilidades não verbais (memória de longo prazo não verbal, memória de curto prazo não verbal, velocidade de processamento, fluência não verbal, planejamento e função motora) quanto verbais (memória de trabalho verbal e linguagem receptiva). Diferenças progressivamente menores e pequenas foram observadas em linguagem expressiva, controle de interferência, atenção, mudança de conjunto (flexibilidade), fluência fonêmica, memória de trabalho não verbal, inibição de resposta, memória de longo prazo verbal, emoção, memória de curto prazo verbal, fluência semântica e tomada de decisão. Essa relativa falta de especificidade de comprometimento em dimensões cognitivas (p.ex., não verbais vs. verbais) tem sido atribuída à inteligência moderadamente mais baixa na NF1 (geralmente 1DP abaixo da média), aos déficits visuoespaciais e nas funções executivas, bem como às dificuldades de aprendizagem (Cutting et al., 2004).

Apesar das habilidades visuoespaciais serem as mais frequentemente e fortemente afetadas na NF1, além da inteligência, atenção especial tem sido dada aos déficits nas funções executivas talvez pelo seu impacto funcional mais amplo. As funções executivas (FEs; também chamadas de controle executivo ou controle cognitivo) referem-se a uma família de processos mentais top-down necessários quando você precisa se concentrar e prestar atenção, quando agir automaticamente ou confiar no instinto ou intuição seria imprudente, insuficiente ou impossível (Diamond, 2013). Há um consenso de que existem três funções executivas principais: inibição [controle inibitório, incluindo autocontrole (inibição comportamental) e controle de interferência (atenção seletiva e inibição cognitiva)], memória de trabalho e flexibilidade cognitiva (também chamada de mudança de conjunto, flexibilidade mental ou mudança de conjunto mental e intimamente ligada à criatividade). A partir dessas, são construídas as FEs de ordem superior, como raciocínio, resolução de problemas e planejamento. As FEs são habilidades essenciais para a saúde mental e física; sucesso na escola e na vida; e desenvolvimento cognitivo, social e psicológico (Diamond, 2013).

Em metanálise, Beaussart e colegas (2018) apontam que dificuldades executivas são uma característica central na NF1, pelo menos em crianças e adolescentes. As dificuldades são maiores e moderadas nos domínios memória de trabalho e planejamento/resolução de problemas e menores e pequenas para controle inibitório e a flexibilidade cognitiva. A disfunção executiva parece ser maior com o aumento da idade (diferente da metanálise de Crow et al, 2022), enquanto o tipo de ferramenta de avaliação, desempenho intelectual, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade e a composição do grupo controle não parecem afetar os resultados das funções executivas.

As principais características neuropsicológicas da NF1 foram sintetizadas na Tabela 1. Os resultados são baseados principalmente na metanálise de Crow e colaboradores (2022) – a mais recente e abrangente até o momento – junto a informações específicas de outros estudos citados neste capítulo. Organizamos a tabela com base na classificação mais recente das funções cognitivas propostas pelo Manual Estatístico-Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-5-TR – APA, 2020) que adota a nomenclatura “domínios neurocognitivos”. Complementamos esta organização os tópicos inteligência geral e desempenho escolar.

Transtornos do Neurodesenvolvimento na NF1

Transtornos do neurodesenvolvimento ocorrem com frequência na NF1, como o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) (30–50%), dificuldades de aprendizagem (30%–60%) e Transtorno do Espectro Autista (TEA) (25%–30%) (Ferner, 2007; Garg et al., 2012; Garg et al., 2013; Pride, Payne, & North, 2012).

Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH)

O TDAH é um transtorno da autorregulação caracterizado por um padrão extremo e persistente de desatenção (p.ex., descuido, desatenção, desinteresse, não terminar tarefas, desorganização, procrastinação, perder coisas, esquecimento, distração) e/ou hiperatividade-impulsividade (agitação, não ficar sentado, inquietação, barulhento, estar “a mil”, falar demais, precipitação, dificuldade para esperar, interrompe/intromete) (APA, 2022). Levantamentos populacionais sugerem que o TDAH ocorre na maioria das culturas em cerca de 5% das crianças e 2,5% dos adultos (APA, 2022).

O TDAH é um fenótipo comportamental frequentemente encontrado na NF1. Estudos encontram que 23% a 50% das crianças com NF1 atendem aos critérios para o TDAH (Barton & North, 2004; Huijbregts et al., 2010; Hyman et al., 2006; Isenberg et al., 2013; Mautner, Kluwe, Thakker, & Leark, 2002; Templer et al., 2013). Pacientes com NF1 e TDAH parecem ter um desempenho acadêmico mais baixo e mais transtornos específicos de aprendizagem do que pacientes apenas com NF1 (Hachon, Iannuzzi, & Chaix, 2011; Payne et al., 2012). Crianças com NF1 e TDAH apresentam um perfil de déficit de atenção e funções executivas semelhante ao de crianças com TDAH primário, mas com um tempo de resposta mais lento, aumentando as dificuldades de aprendizagem (Routier et al., 2024).

O metilfenidato, uma medicação estimulante comum para o TDAH, tem demonstrado consistentemente eficácia positiva no tratamento de déficits cognitivos e sintomatologia relacionada ao TDAH na NF1 (Lidzba et al., 2014; Loin-François et al., 2014; Mautner et al., 2002), embora déficits atencionais e nas funções executivas existam na NF1 independentemente da comorbidade com o TDAH (Loin-François et al., 2020).

Transtorno do Espectro Autista (TEA)

Outra alteração de neurodesenvolvimento que vem sendo corroborada como mais prevalente e grave em comparação com a população não afetada pela NF1 é o Transtorno do Espectro Autista (TEA) (Chisholm et al., 2018). O TEA é caracterizado por déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos (reciprocidade social, comunicação não verbal e relacionamentos) e por padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, incluindo fala ou outro comportamento repetitivo, insistência na mesmice, interesses restritos e alterações sensoriais (APA, 2022).

Em metanálise, Chisholm e colaboradores (2018) encontraram que as dificuldades no funcionamento social na NF1 variam de moderadas a altas, incluindo habilidades sociais reduzidas e comportamentos pró-sociais diminuídos, bem como dificuldades sociais aumentadas, como isolamento e menor aceitação pelos pares. Déficits na percepção de emoções em crianças e adultos com NF1, especialmente ao identificar emoções negativas como raiva e medo, já foram descritas, além de menor capacidade na atribuição de estados mentais. Os autores também descrevem que a sintomatologia do TEA na NF1 em comparação com amostras controle é significativamente maior (tamanho de efeito grande). Sobre a prevalência do TEA em si na NF1, apenas dois estudos foram identificados, apontando prevalência de 25% (Garg et al. 2013; Plasschaert et al. 2015). Nesses estudos, em comparação com pessoas com TEA idiopático, pessoas com NF1 apresentam menos comportamentos estereotipados e melhor contato visual (Garg et al. 2013; Morris et al. 2016; Plasschaert et al. 2015). Se a natureza dos sintomas de TEA na NF1 é diferente daquela na condição idiopática, é uma questão a ser esclarecida.

Dificuldades de aprendizagem e transtornos específicos de aprendizagem

Aproximadamente 70% dos pacientes com NF1 experimentam baixo desempenho acadêmico devido a dificuldades de aprendizagem ou problemas comportamentais (Hyman et al., 2005).

Os déficits de leitura são prevalentes na NF1 (50% a 67%) (Orraca-Castillo et al., 2014; Watt, Shores, & North, 2008) e as dificuldades em testes de linguagem associadas à leitura são maiores em crianças com NF1 do que em crianças com um transtorno específico de aprendizagem (Cutting, Koth, & Denckla, 2000). Medidas de inteligência, decodificação e precisão de leitura, além de medidas laboratoriais e comportamentais de atenção influenciam o desempenho de crianças com e sem NF1 em compreensão de leitura (Biotteau et al., 2021).

Num estudo envolvendo 32 estudantes com NF1(Orraca-Castillo et al., 2014), encontrou-se que a frequência da dislexia foi de 50%, enquanto a de discalculia de 18,8%. Os mecanismos relacionados à dislexia e à discalculia na NF1 foram déficits em estratégias lexicais e fonológicas e baixa recuperação de fatos numéricos. Além disso, a eficiência em estratégias lexicais/fonológicas e aritmética mental foram preditores significativos das diferenças individuais na conquista da leitura e da matemática, respectivamente. No estudo, não foram encontrados déficits em capacidades numéricas básicas na amostra.

Embora os déficits de leitura e processos subjacentes sejam mais frequentes, em metanálise, o déficit em aritmética e escrita (grande) foi maior do que em leitura (moderado) (Crow et al., 2022).

Conclusão

Em conjunto, esses achados sugerem uma interrupção dos processos de neurodesenvolvimento típicos na NF1, ressaltam a importância da neurofibromina no desenvolvimento normal do cérebro e demonstram que esforços devem ser feitos para avaliar e abordar a morbidade cognitiva em pacientes com NF1 em conjunto com as melhores práticas existentes.

 

Dificuldades cognitivas em pacientes com NF1, repercussões clínicas e transtornos do neurodesenvolvimento associados

 

Domínio cognitivo Habilidades específicas Magnitude do déficit* Características clínicas Transtornos de Neurodesenvolvimento Correlacionados
Inteligência QI Geral Alta Deficiência intelectual, problemas de aprendizagem, dificuldades laborais, dificuldades na resolução de problemas Deficiência intelectual, Atraso Global do Desenvolvimento
QI Verbal Alta
QI Executivo Alta
Perceptomotor Habilidades visuoespaciais Alta Dificuldades de orientação espacial, discriminação esquerda-direita, busca visual de informações, esquema corporal, coordenação motora reduzida. Dificuldades com conteúdo escolar visual (ex.: mapas, geometria, artes e gráficos). Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação, Transtorno Não-Verbal de Aprendizagem
Fluência não-verbal Moderada
Controle motor Moderada
Atenção Complexa Velocidade de processamento Moderada Dificuldades em estabelecer, manter e controlar o foco atencional. Nível de alerta/responsividade reduzido. Redução da velocidade de processamento (mental) e lentificação psicomotora (comportamento. Transtorno do Déficit de Atenção-Hiperatividade, Síndrome do Desengajamento Cognitivo (Sluggish Cognitive-Tempo)
Controle de interferência Moderada
Atenção sustentada Moderada
Linguagem e Comunicação Linguagem receptiva Moderada Dificuldades articular e expressar corretamente a linguagem. Problemas de compreensão na linguagem oral ou escrito. Dificuldades na comunicação social e interação com os pares. Transtorno da Linguagem, Transtorno da Fala, Gagueira, Transtorno da Pragmática (comunicação social).
Linguagem expressiva Moderada
Fluência verbal semântica Sem déficit
Fluência verbal fonêmica Sem déficit
Linguagem e Aprendizagem Memória de longo prazo (verbal) Sem déficit Dificuldades em recordar eventos recentes (episódios), problemas na junção de múltiplas informações na memória (conteúdo, local e tempo), dificuldades em manter informações mentalmente. Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade, Transtorno Específico de Aprendizagem (Dislexia e Discalculia)
Memória de longo prazo (não-verbal) Moderada
Memória de curto prazo (verbal) Sem déficit
Memória de curto prazo (não-verbal) Moderada
Funções Executivas Memória de trabalho (verbal) Moderada Dificuldades na resolução de problemas práticos no dia a dia. Desorganização, falta de planejamento, rigidez cognitiva, distratibilidade e procrastinação. Dificuldades no aprendizado de conteúdos complexos. Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade, Transtorno do Espectro Autista, Deficiência Intelectual e Atraso Global do Desenvolvimento.
Memória de trabalho (visuoespacial) Leve
Planejamento Moderada
Flexibilidade cognitiva Leve
Controle inibitório Leve
Tomada de decisão Sem déficit
Cognição Social Processamento emocional Leve Dificuldades no reconhecimento e interpretação de informações sociais e emocionais, dificuldades nos relacionamentos sociais. Transtorno do Espectro Autista, Transtorno da Pragmática
Percepção social Leve
Cognição social Moderada
Habilidades Escolares Matemática Alta Dificuldades no aprendizado e das habilidades escolares básicas (leitura, escrita e matemática). Redução da fluência de leitura e escrita. Dificuldades de compreensão de texto. Problemas na resolução de cálculos aritméticos e algébricos Transtorno Específico de Aprendizagem (Dislexia, Discalculia e Disgrafia)
Leitura Moderada
Escrita Alta

            Magnitude estimada com base nos resultados da metanálise de Crow e colaboradores (2022) e demais estudos referenciados neste capítulo.

           

Referências

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5th ed., text rev.). Washington, DC: Author.

Barton, B, & North, K. (2004). Social kills of children with neurofibromatosis type 1. Developmental Medicine & Child Neurology, 46, 553-563

Beaussart M-L, Barbarot S, Mauger C, & Roy A. (2018). Systematic review and meta-analysis of executive functions in preschool and school-age children with Neurofibromatosis type 1. Journal of International Neuropsychological Society, 24, 977–994. 10.1017/S1355617718000383

Biotteau, M., Tournay, E., Baudou, E., Destarac, S., Iannuzzi, S., Faure-Marie, N., … & Chaix, Y. (2021). Reading comprehension impairment in children with neurofibromatosis type 1 (NF1): The need of multimodal assessment of attention. Journal of Child Neurology, 36(8), 625-634.

Chisholm, A. K., Anderson, V. A., Pride, N. A., Malarbi, S., North, K. N., & Payne, J. M. (2018). Social function and autism spectrum disorder in children and adults with neurofibromatosis type 1: a systematic review and meta-analysis. Neuropsychology Review, 28, 317-340.

Crow, A. J., Janssen, J. M., Marshall, C., Moffit, A., Brennan, L., Kohler, C. G., … & Moberg, P. J. (2022). A systematic review and meta‐analysis of intellectual, neuropsychological, and psychoeducational functioning in neurofibromatosis type 1. American Journal of Medical Genetics Part A, 188(8), 2277-2292.

Cutting LE, Clements AM, Lightman AD, Yerby-Hammack PD, & Denckla MB (2004). Cognitive profile of neurofibromatosis type 1: Rethinking nonverbal learning disabilities. Learning Disabilities Research & Practice, 19(3), 155–165.

Cutting LE, Koth CW, Denckla MB. How children with neurofibromatosis type 1 differ from “typical” learning disabled clinic attenders: nonverbal learning disabilities revisited. Dev Neuropsychol. 2000;17(1):29-47

Diamond, Adele (2013). Executive Functions. Annual Review of Psychology, 64(1), 135–168. doi:10.1146/annurev-psych-113011-143750

Ferner RE (2007). Neurofibromatosis 1 and neurofibromatosis 2: A twenty first century perspective. The Lancet Neurology, 6, 340–351. 10.1016/S1474-4422(07)70075-3

Garg S, Green J, Leadbitter K, Emsley R, Lehtonen A, Evans G, & Huson SM (2013). Neurofibromatosis type 1 and autism spectrum disorder. Pediatrics, 132, 1642–1648. 10.1542/ peds.2013-1868

Garg S, Lehtonen A, Huson SM, Emsley R, Trump D, Evans DG, & Green J. (2012). Autism and other psychiatric comorbidity in neurofibromatosis type 1: Evidence from a population-based study. Developmental Medicine and Child Neurology, 55, 139–145. 10.1111/dmcn.12043

Garg, S., Green, J., Leadbitter, K., Emsley, R., Lehtonen, A., Evans, D.G., & Huson, S. M. (2013). Neurofibromatosis type 1 and autism spectrum disorder. Pediatrics, 132(6), e1642–e1648.

Gutmann DH, Parada LF, Silva AJ, & Ratner N. (2012). Neurofibromatosis type 1: Modeling CNS dysfunction. Journal of Neuroscience, 32(41), 14087–14093. 10.1523/JNEUROSCI.324212.2012

Hachon C, Iannuzzi S, Chaix Y. Behavioural and cognitive phenotypes in children with neurofibromatosis type 1 (NF1): the link with the neurobiological level. Brain Dev 2011;33(1):52–61

Huijbregts, S., Swaab, H., & de Sonneville, L. (2010). Cognitive and motor control in neurofibromatosis type I: Influence of maturation and hyperactivity-inattention. Developmental Neuropsychology, 35, 737-751

Hyman, S. L., Shores, A., & North, K. N. (2005). The nature and frequency of cognitive deficits in children with neurofibromatosis type1. Neurology, 65(7), 1037–1044.

Hyman, S., Arthur, E., & North, K. N. (2006). Learning disabilities in children with neurofibromatosis Type 1: Subtypes, cognitive profile, and attention-deficit-hyperactivity disorder. Developmental Medicine & Child Neurology, 48, 973-977.

Lehtonen A, Howie E, Trump D, & Huson SM (2013). Behaviour in children with neurofibromatosis type 1: Cognition, executive function, attention, emotion, and social competence. Developmental Medicine and Child Neurology, 55(2), 111–125. 10.1111/j.14698749.2012.04399.x

Lidzba K, Granstroem S, Leark RA, Kraegeloh-Mann I, & Mautner VF (2014). Pharmacotherapy of attention deficit in neurofibromatosis type 1: Effects of cognition. Neuropediatrics, 45(4), 240–246. 10.1055/s-0034-1368117

Loin-François L, Gueyffier F, Mercier C, Gérard D, Herbillon V, Kemlin I, Kemlin I, Rodriguez D, Ginhoux T, Peyric E, Coutinho V, Bréant V, des Portes V, Pinson S, Combemale P, Kassaï B, & Réseau NF1 Rhône Alpes Auvergne-France. (2014). The effect of methylphenidate on neurofibromatosis type 1: A randomised, double-blind, placebo-controlled, crossover trial. Orphanet Journal of Rare Diseases, 9, 1–8. 10.1186/s13023-014-0142-4

Loin-François L, Herbillon V, Peyric E, Mercier C, Gérard D, Ginhoux T, Coutinho V, Kemlin I, Kassai B, Desportes V, & Michael GA (2020). Attention and executive disorders in neurofibromatosis 1: Comparison between NF1 with ADHD symptomatology (NF1 + ADHD) and ADHD per se. Journal of Attention Disorders, 24(13), 1807–1823.

Mautner, V. F., Kluwe, L., Thakker, S. D., & Leark, R. A. (2002). Treatment of ADHD in neurofibromatosis type 1. Developmental Medicine & Child Neurology, 44, 164-170

Morris, S. M., Acosta, M. T., Garg, S., Green, J., Huson, S., Legius, E., etal. (2016). Disease burden and symptom structure of autism in Neurofibromatosis type 1: A study of the international NF1-ASD consortium team (INFACT). JAMA Psychiatry, 73(12), 1276–1284.

Orraca-Castillo M, Estavez-Parez N., Reigosa-Crespo V. Neurocognitive profiles of learning-disabled children with neurofibromatosis type 1. Front Hum Neurosci. 2014;8:386.

Payne JM, Arnold SS, Pride NA, North KN. Does attention-deficithyperactivity disorder exacerbate executive dysfunction in children with neurofibromatosis type 1? Dev Med Child Neurol 2012; 54(10):898–904

Plasschaert, E., Descheemaeker, M.-J., Van Eylen, L., Noens, I., Steyaert, J., & Legius, E. (2015). Prevalence of autism spectrum disorder symptoms in children with neurofibromatosis type 1. American Journal of Medical Genetics Part B: Neuropsychiatric Genetics,168(1), 72–80.

Pride, N.A., Payne, J.M., & North, K.N. (2012). The impact of ADHD on the cognitive and academic functioning of children with NF1. Developmental Neuropsychology, 37(7),590–600.

Routier, L., Querné, L., Fontaine, C., Le Moing, A. G., & Berquin, P. (2024). Distinct attentional and executive profiles in Neurofibromatosis type 1: is there difference with primary attention deficit-hyperactivity disorder? European Journal of Paediatric Neurology.

Templer, A., Titus, J., & Gutmann, D. (2013). A neuropsychological perspective on attention problems in neurofibromatosis type 1. Journal of Attention Disorders, 17, 489-496.

 

 

 

 

 

 

Dando continuidade à divulgação online dos capítulos escritos para a Edição Comemorativa dos 20 anos do CRNF, a ser lançada em novembro de 2024, apresentamos o cardiologista Jorge Sette, que tem nos auxiliado a compreender melhor os problemas cardiovasculares nas pessoas com NF1.

Agradecemos a sua participação com este texto bem fundamentado e atualizado.

Dr. Lor

 

 

Jorge Cavalcante Bezerra Sette

Cardiologista

 

Cerca de  4% das pessoas com NF1 apresentam uma complicação vascular importante que pode ser tratada com eficiência e para identificar esta complicação basta apenas uma ação muito simples, que pode salvar uma vida: medir a pressão arterial regularmente.

Um aumento relativamente recente da pressão arterial em pessoas com NF1, especialmente em crianças, jovens e adultos jovens, deve fazer o médico pensar em duas causas importantes: 1) a estenose da artéria renal e 2) um tumor chamado feocromocitoma.

Vejamos primeiro a estenose da artéria renal.

 

As artérias renais são vasos sanguíneos que levam o sangue aos rins, para que o sangue seja filtrado e algumas substâncias em excesso sejam eliminadas (por exemplo, ácidos e nitrogênio) na urina. Para que o sangue seja filtrado, é preciso que ele chegue aos rins com uma determinada pressão, que é fornecida pelo bombeamento do coração.

Em cerca de 2% das pessoas com NF1 pode ocorrer um defeito (chamado de displasia fibromuscular) na tubulação das artérias renais, que causa um estreitamento, o qual faz com que a pressão do sangue fique menor naquele rim que recebe o sangue da artéria estreitada. Como o sangue chega com menor pressão do que a necessária para a filtração, o próprio rim produz substâncias que forçam o aumento da pressão arterial.

O resultado desse estreitamento, então, é que a pressão arterial, aquela que deve ser medida com os aparelhos de pressão comuns durante os controles regulares anuais, aumenta acima dos limites normais para a idade, a estatura e o sexo da pessoa.

Se a pressão arterial permanecer aumentada durante muito tempo, o coração, os rins, as artérias cerebrais e as artérias dos olhos podem ser danificadas e problemas graves podem acontecer, como infarto no coração, incapacidade de os rins filtrarem o sangue,  derrames cerebrais e perdas na visão. Por isso, a hipertensão arterial deve ser tratada.

Felizmente, na NF1, há a possibilidade de tratarmos o defeito na artéria renal e assim a hipertensão pode ser curada em cerca de 75% das pessoas. O tratamento consiste na realização de uma angiografia, ou seja, num exame de imagem para visualizarmos o calibre e o formato das artérias renais, para comprovação do estreitamento e sua localização. Geralmente, faz-se um cateterismo por meio de anestesia local e passagem da sonda por uma das artérias das pernas.

Em seguida, durante o próprio procedimento do exame de imagem, na maioria dos casos, insufla-se um balão que consegue reestabelecer o fluxo de sangue ao rim. Caso haja alguma complicação, coloca-se um anel metálico especial de dilatação (stent) na região estreitada, recuperando-se parcialmente o calibre da artéria renal.

Este tratamento, a angioplastia trans luminal, deve ser o primeiro a ser tentado, pois apresenta  88% de bons resultados.

Quando o anel de dilatação não é possível ou não funciona, ou o estreitamento retorna, pode ser necessário o autotransplante do rim, ou seja, uma cirurgia que desconecta o rim da sua artéria obstruída e o reconecta a outra artéria sadia. Infelizmente, em alguns poucos casos, pode ser necessária a remoção de um dos rins para tratar a hipertensão.

Portanto, segundo o grupo da Dra. Rosalie Ferner, de Manchester (2011), o tratamento da hipertensão arterial secundária à estenose da artéria renal na NF1 é uma combinação de medicação anti-hipertensiva, angioplastia com balão da artéria renal e cirurgia.

Por isso tudo, a medida da pressão arterial é obrigatória, indispensável, fundamental e pode salvar uma vida em 2% dos pacientes com NF1 durante os controles anuais.

 

Outra causa de hipertensão: o feocromocitoma

 

A outra metade dos casos de hipertensão recente nas pessoas com NF1 acontece por causa do aparecimento de um tipo de tumor chamado feocromocitoma.

Este nome complicado, feocromocitoma, indica que é um tumor (oma) formado por células (cito) que são coradas (cromo) numa cor escura (feo). Estas células fazem parte do sistema nervoso, e ficam agrupadas na parte central de duas glândulas localizadas sobre os rins: as suprarrenais. Elas produzem alguns hormônios, incluindo a adrenalina, uma substância que todos conhecem ligada às emoções e aos exercícios, que ativa algumas funções no organismo, como o estado de alerta mental, os batimentos cardíacos e a produção de suor.

Nas pessoas com NF1, a deficiência de neurofibromina aumenta a chance de células do sistema nervoso e da pele crescerem desordenadamente formando tumores, por isso estas células produtoras de adrenalina também podem crescer mais do que o necessário, formando tumores em 2% das pessoas com NF1, em geral a partir dos 15 anos de idade, mas com maior frequência em torno dos 35 anos.

Quando ocorrem, os feocromocitomas geralmente são benignos (90%) e podem se apresentar com sintomas que significam o excesso de adrenalina no sangue. As pessoas com feocromocitomas podem apresentar sintomas em 50% das vezes e, quando apresentam, quase sempre são transitórios:

Os três principais sintomas são:

1)     Crises de aumento da pressão arterial em repouso ou hipertensão sustentada por vários dias;

2)     Palpitações (sensação de coração acelerado);

3)     Dor de cabeça – que pode ser leve ou intensa;

4)     Suor abundante sem relação com a temperatura do ambiente; pode estar acompanhada de tremor, fraqueza e falta de ar.

É importante lembrar que as crises de ansiedade, que afetam qualquer pessoa, inclusive aquelas com NF1, podem se manifestar exatamente com os mesmos sinais e sintomas, o que às vezes faz passar desapercebido um feocromocitoma.

Suspeitando da presença deste tumor, devemos medir a produção dos derivados da adrenalina na urina colhida durante 24 horas, chamadas de catecolaminas urinárias (ácido vanilmandélico, adrenalina, noradrenalina, metanefrina). Este exame é mais confiável quando a urina é colhida durante os sintomas acima.

Quando o exame urinário vem positivo, o próximo passo é realizar exames de imagem para localizar o tumor para guiar o tratamento cirúrgico. Em casos em que a suspeita clínica seja alta, mas o exame de urina esteja normal, outros exames são necessários. Os mais sensíveis são a ressonância magnética e a tomografia computadorizada com a emissão de pósitrons (PET CT), capazes de descobrir mesmo os menores tumores de até 1 cm. Este último exame pode auxiliar na descoberta de feocromocitomas também localizados fora do local mais comum que são as suprarrenais, como, por exemplo, no intestino, onde são chamados de tumores carcinoides.

A maioria dos feocromocitomas ocorre nas glândulas suprarrenais, mas 10% deles podem ocorrer nos intestinos, na artéria aorta (no arco aórtico ou no órgão de Zuckerkandl) e no mediastino.

Confirmada a presença do feocromocitoma (ou dos carcinoides), estamos diante de uma urgência de tratamento, que deve ser realizado por profissionais experientes neste problema.  O tratamento é cirúrgico e envolve uma preparação de cerca de 7 dias para conter os efeitos da adrenalina em excesso (com bloqueadores alfa e beta) antes da retirada dos tumores, que podem estar presentes em ambos os rins.

É preciso lembrar que os feocromocitomas ignorados podem ameaçar a vida, especialmente durante cirurgias e durante a gravidez.

Os casos mais graves, quando os feocromocitomas são malignos (10%), devem ser tratados com cirurgia e quimioterapia associada.

Mais uma vez, lembramos que é importante medir a pressão arterial de todas as pessoas com NF1 regularmente e, também, não esquecer de questionar os pacientes sobre os principais sintomas que possam dar pista ao diagnóstico (dor de cabeça, palpitação e suor aumentado).

 

E quando a pressão está aumentada sem uma causa definida na NF1?

 

Como vimos acima, as pessoas com NF1 correm maior risco de apresentarem dois problemas que causam aumento da pressão arterial: displasia da artéria renal (com estenose ou obstrução do fluxo de sangue para um ou os dois rins) e feocromocitoma (um tumor capaz de produzir adrenalina).

No entanto, um estudo procurou saber se as crianças com NF1 apresentam pressão arterial maior do que a população infantil sem a doença (ver aqui artigo em inglês: AQUI ).

O grupo orientado por Shay Ben-Shachar mediu a pressão arterial 3 vezes em 224 crianças com NF1, metade meninas, com idade em torno de 9 anos. Os resultados da pressão arterial foram classificados de acordo com a idade, o sexo e o percentil da altura de cada uma delas, em normais (menor do que o percentil 85%), pré-hipertensos (entre os percentis 85 a 95%) e hipertensos (maior que o percentil 95%).

Os resultados mostraram que em torno de 13% das crianças com NF1 eram pré-hipertensas e outras 13% eram hipertensas, o que significa que a hipertensão arterial é dez vezes mais frequente em crianças com NF1 do que na população em geral.

Outro achado importante do estudo foi que a hipertensão era maior na primeira medida (20%) do que na terceira, por isso devemos repetir a medida quando encontramos valores altos da primeira vez.

As condições do estudo não permitiram aos autores confirmar ou excluir as alterações vasculares nas crianças com hipertensão, assim, ainda não sabemos a definição exata da causa da hipertensão arterial nas crianças com NF1, mas levantaram a hipótese de que a pressão arterial aumentada faça parte das características da NF1. Esta hipótese merece ser mais estudada no futuro.

De qualquer forma, este estudo confirma e aumenta a necessidade de vigilância sobre a pressão arterial de pessoas com NF1, pois se não for tratada a hipertensão arterial pode causas complicações, inclusive fatais.

Portanto, não se esqueça de medir a pressão arterial pelo menos uma vez por ano.